Terra de Gigantes (2)

Olá leitor!

Segue abaixo um interessante artigo (o terceiro da série "Viagem do Homem à Lua Completa 50 anos") escrito pelo Dr. José Bezerra Pessoa Filho (ex-servidor do IAE) e publicado na edição de Abril do ”Jornal do SindCT“, vale a pena conferir.

Duda Falcão

ESPAÇO

Viagem à Lua completa 50 anos

Terra de Gigantes

Por Dr. José Bezerra Pessoa Filho*
Jornal do SindCT
Edição nº 78
Abril de 2019

“Quando tivermos dominado a arte do voo, não haverá com certeza falta de pioneiros humanos para a viagem ao espaço. Criemos navios e velas adequadas ao éter celeste e haverá inúmera gente sem medo dos desertos vazios. Enquanto isso, preparemos, para os bravos viajantes, mapas dos corpos celestes. É o que farei para a Lua e vós para Júpiter.”

O texto acima foi extraído de Diálogo com o Mensageiro das Estrelas, no qual Kepler agradecia a Galileu pelo recebimento de seu livro O Mensageiro das estrelas (1610). Para os amantes das ciências espaciais, a parte sublinhada do texto remete ao filme Os Eleitos, que apresenta o início do programa espacial tripulado dos EUA. Embalado por suas ideias lunáticas, Kepler escreveria Sonho, publicado em 1634, após sua morte.

Em 1685, durante o processo de elaboração dos Principias (1687), Newton publicou Sistema do mundo. Um dos seus auxiliares da época afirmou que o seu chefe parecia possuído e fora de si enquanto escrevia os Principias. Não era para menos, Newton estava estabelecendo a conexão entre Terra de Gigantes e O Mundo dos Sonhos. A figura é do original da obra de Newton sendo o texto um resumo adaptado.

“Os pontos A, F e B estão situados na superfície da Terra, enquanto o ponto C representa o seu centro. O ponto V está situado no topo de uma montanha, a partir da qual um corpo é arremessado horizontalmente da esquerda para direita, com diferentes velocidades. Os efeitos do atrito com a atmosfera terrestre são desprezados. As linhas curvas VD, VE, VF e VG representam as trajetórias dos corpos lançados com velocidades horizontais crescentes a partir do ponto V. A trajetória curva exibida pelos corpos é o resultado da composição de dois movimentos: um horizontal, com velocidade constante, e outro vertical, resultante da ação da gravidade terrestre. Se aumentarmos a velocidade inicial progressivamente, haverá uma situação em que o corpo retornará ao ponto V, de onde foi lançado. Em função da hipótese de que o meio não oferece resistência ao movimento, a partir dessa velocidade o corpo permanecerá girando em torno da Terra indefinidamente. Se elevarmos a altitude da montanha, poderemos obter diferentes trajetórias, como aquelas representadas na figura. A obtenção de trajetórias circulares ou elípticas dependerá da altitude da montanha e da velocidade inicial com a qual o corpo é arremessado horizontalmente.”

Sem querer, Newton lançava a ideia dos satélites artificiais. Coisa de Gigante! A obra de Newton deu asas à imaginação de Júlio Verne, gênio francês que escreveu Da Terra à Lua (1865) e Ao redor da Lua (1870). A primeira obra descreve as razões para ir à Lua e o desenvolvimento dos meios necessários para a viagem de ida, haja vista que não haveria volta. Os 3 bravos viajantes iriam colonizar a Lua. Na falta de foguete, Verne usou um canhão para arremessar a cápsula a 60.000 km/h. O segundo livro descreve a viagem de ida e, ainda que não fosse o objetivo inicial da missão, o retorno à Terra. As semelhanças com as missões Apollo, notadamente a Apollo 13, são extraordinárias. A versão eletrônica das duas obras pode ser obtida em um único arquivo em http://www.virtualbooks.com.br/v2/ebooks/pdf/00853.pdf. Imperdível!

23 de julho de 1930: Hermann Oberth e Klaus Riedel segurando
um tradicional foguete a propulsão sólida. Atrás e a direita
de Klaus Riedel o jovem von Braun.

Em 1902, o francês Georges Méliès lançou o filme Viagem à Lua, baseado nos livros Da Terra à Lua e Os primeiros homens na Lua (1901), de H. G. Wells. Cor e som ficaram por conta da imaginação dos expectadores, e, a partir do final do século XIX, Ciência, Literatura, Ficção e Cinema se entrelaçaram de tal modo a transformar sonho em realidade. Baseadas nas conquistas da Ciência, as obras de ficção ligavam o presente ao futuro, substituindo mitos por sonhos. Arthur Clarke (1917-2008), autor do magnífico 2001: Uma odisséia no espaço profetizou: “Nossa civilização é a soma de todos os sonhos das gerações anteriores. Se os homens deixarem de sonhar, acabará a história de nossa raça.” Sem utopias abraçamos a desesperança, o ceticismo e o misticismo. O resultado é a distopia! Por isso, vivamos O Mundo dos Sonhos.

Caso você esteja cético quanto ao poder dos sonhos, saiba que as obras do gigante Júlio Verne, Pai da Ficção Científica, inspiraram, além de Santos Dumont, Kostantin Tsiolkovsky (1857-1935), Robert Goddard (1882-1945), Hermann Oberth (1894-1989), Sergei Korolev (1907-1966), Valentin Glushko (1908-1989) e Wernher von Braun (1912-1977), os principais responsáveis por nossas viagens à Lua. Para saber mais sobre esses gigantes, sugere-se o excelente livro do professor Ronaldo Mourão: Astronáutica – Do sonho à realidade.

O russo Kostantin Tsiolkovsky foi um modesto professor de matemática na Rússia czarista. Por ter ficado quase surdo quando criança, ele foi alfabetizado pela mãe e se tornou autodidata. Em 1903 ele publicou Exploração do espaço com reatores, no qual previa o uso de motores-foguetes propulsados a hidrogênio e oxigênio líquidos, para realização de voos interplanetários. É de sua autoria também a famosa equação do foguete, que estima o ganho de velocidade de um foguete na ausência de atrito atmosférico e gravidade. Em sua obra Um trem cósmico de foguetes (1929), Tsiolkovsky concluiu que para atingir a velocidade orbital de 8.000 m/s seriam necessários foguetes com múltiplos estágios. Coube também a ele prever o uso de giroscópios para guiagem, bem como a necessidade de refrigeração da câmara de combustão dos foguetes. Em 1935, ano de sua morte, ele publicaria Sobre a Lua. Seu trabalho só foi reconhecido depois do estabelecimento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), quando ele foi eleito membro da Academia Soviética de Ciências e passou a receber um salário do Estado, permitindo-lhe abandonar o magistério e dedicar-se à pesquisa. Conhecido como o Pai da Cosmonáutica, ele jamais construiu ou lançou um foguete, mas sonhou com a colonização de outros mundos, tendo registrado: “A Humanidade não ficará confinada à Terra para sempre. Cautelosamente no princípio, ela explorará os limites da atmosfera e, em seguida, conquistará todo o espaço em torno do Sol.”

Em 1924 a URSS iniciou formalmente suas atividades com foguetes. Sete anos depois foi criado o Grupo de Pesquisas em Propulsão a Jato (GIRD), do qual fazia parte Sergei Korolev, um gênio ucraniano. Foi em 17 de agosto de 1933 que ele e seu grupo lançaram o primeiro foguete à propulsão líquida (gasolina e oxigênio líquido). Com 2,5 m de comprimento e 17 cm de diâmetro o GIRD-9 tinha 18 kg e, nesse voo de 18 segundos, atingiu 400 m de apogeu, ante os 5 km previstos. Em outubro de 1933 o GIRD foi unido ao Laboratório de Gasdinâmica (GDL) para criar o Instituto de Propulsão a Jato (RNII), que uniu os talentos de Korolev e Valentin Glushko, que acabariam condenados à prisão durante o grande expurgo de Stalin.

Durante a I Guerra Mundial Dr. Robert Goddard trabalhou para o exército americano com foguetes a propulsão sólida. Finda a guerra, regressou à Universidade de Clark, onde era professor. Em 1919, ele publicou Um método para alcançar alturas extremas. Nessa obra Goddard avaliou diversos motores-foguetes a propelente sólido, concluindo pela inviabilidade deles para uma viagem à Lua. Ao final da obra Goddard apresentou o cálculo da massa mínima de propelente necessária para levar 454 gramas ao espaço. Para verificar sua teoria, ele propôs o arremesso de uma carga de pólvora em direção à Lua. Ao impactá-la, ela geraria um clarão observável por um telescópio aqui da Terra. Enquanto parte da mídia o apelidou de Homem da Lua, o The New York Times, de 13 de janeiro de 1920, sugeriu que Goddard não entendia a 3a Lei de Newton, em referência ao fato de que, no vácuo, não haveria “reação” à ação dos gases escapando do foguete. Em Astronáutica: do sonho à realidade Rogério Mourão explica: “admitia-se (erroneamente) que os foguetes se deslocavam porque os gases ejetados apoiavam-se sobre o ar da atmosfera, o que não ocorreria no vácuo do espaço.”

Robert Goddard com o seu foguete lançado em 1926.

Em 14 de março de 1926, Goddard lançou um foguete de 7,3 kg, propelido a gasolina e oxigênio, a 61 metros de altura, num salto de 2,5 segundos. A frase de Neil Armstrong ao caminhar na Lua definiria bem o feito de Goddard: “Um pequeno passo para o homem, mas um grande salto para a humanidade.” A partir de 1929, Godard recebeu apoio da Fundação Guggenheim e se instalou com sua equipe de 6 pessoas no deserto do Novo México, EUA. Lá eles lançaram foguetes supersônicos, equipados com sistema de guiagem e controle e câmaras de combustão alimentadas por turbobombas.

Em 1934 foi criada a Sociedade Americana de Foguetes e, no ano seguinte, um grupo de estudantes de pós-graduação do professor húngaro Theodore von Kármán (1881–1963) iniciou estudos com foguetes. Do Esquadrão Suicida, como o grupo ficou conhecido no Caltech, fizeram parte Frank Malina (1912-1981) e Hsue-Shen Tsien (1911 - 2009), que se tornaria Pai do Programa Espacial Chinês, após sua expulsão dos EUA em 1955. Coube a von Kármán definir a altitude de 100 km como a fronteira entre a atmosfera terrestre e o espaço exterior, conhecida como a Linha de Kármán.

Goddard não recebeu apoio compatível às suas realizações, mas como um sonhador ele seguiu adiante e considerava sua vida fascinante. Durante a II Guerra Mundial ele foi trabalhar para a Marinha dos EUA, mas logo adoeceu. O reconhecimento ao seu legado, incluindo 214 patentes em foguetes, só viria após a sua morte em 1945. Em vida provou a veracidade de seu discurso de formatura no ensino médio (1904), quando afirmou: ‘‘É difícil dizer o que é impossível, pois o sonho de ontem é a esperança de hoje e a realidade de amanhã”.

Aos 11 anos, o romeno Hermann Oberth ganhou da mãe Da Terra à Lua e Ao Redor da Lua. Leu-os até sabê-los de cor, concluindo que a aceleração inicial oferecida pelo tiro do canhão de Verne mataria os tripulantes da espaçonave. Dedicou sua vida a mudar essa realidade e, em 1923, submeteu à Universidade de Heidelberg, Alemanha, sua proposta de tese de doutorado intitulada O foguete no espaço interplanetário, recusada por ser utópica. Oberth publicou-a em livro, no qual preconizou: I) No atual estágio da ciência e da tecnologia, é possível construir máquinas capazes de ascender além dos limites da atmosfera terrestre; II) Com refinamentos, essas máquinas atingirão velocidades tais que não cairão de volta à superfície da Terra, e poderão até mesmo deixar o campo gravitacional da Terra; III) Essas máquinas poderão transportar pessoas; e IV) Sob certas condições, a construção dessas máquinas pode até se tornar lucrativa. Diferentemente de Tsiolkovsky e Goddard, Oberth formou uma geração de discípulos brilhantes e, caso único dentre os gigantes, ele viveu a concretização de quase todas as suas previsões, incluindo os lançamentos da Apollo 11 (1969) e o do ônibus espacial Challenger (1985), assistidos ao vivo por ele.

O trabalho de Oberth incendiou a imaginação de seus contemporâneos e levou à fundação da VfR, sigla para Sociedade para Viagem ao Espaço, da qual faria parte um jovem da aristocracia alemã de nome Wernher von Braun (1912-1977). A VfR ficou ativa entre 1927 e 1933, estabelecendo, como em nenhum outro país, as fundações das ciências espaciais. Em 14 de março de 1931 Johannes Winkler, primeiro presidente da VfR, lançou o primeiro foguete a propulsão líquida (metano e oxigênio) da Europa. Com 5 kg de massa e 60 cm de comprimento, o Huckel-Winkler 1 tinha apogeu nominal de 500 m. Oberth ainda prestaria assessoria técnica ao aclamado diretor alemão, Fritz Lang, na produção do filme Frau in Mond (A Mulher na Lua), que estreou em Berlim em 15 de outubro de 1929. Foi Fritz Lang quem introduziu a contagem regressiva no lançamento de foguetes. Dez dias depois ocorreria a quebra da bolsa de valores nos EUA. A crise econômica decorrente deteriorou ainda mais a situação da economia alemã. Com a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, os foguetes passaram a ter caráter estratégico para o exército, razão pela qual as atividades da VfR foram proibidas e alguns de seus membros incorporados às pesquisas militares alemãs.

Se você chegasse a Berlim na primeira quinzena de agosto de 1936, teria a impressão de que vivíamos tempos de harmonia entre os povos. Como mais uma herança dos gregos, celebrávamos os Jogos Olímpicos. Hitler via o evento como uma oportunidade de demonstrar a superioridade da raça ariana. A Alemanha liderou o quadro de medalhas, mas quem manteve acesa a chama civilizatória foi o atleta negro americano Jesse Owens, com 4 medalhas de ouro.

E chegamos a 1938. Enquanto nos EUA estreava Branca de Neve e os Sete Anões, na Europa tropas alemãs invadiam a Áustria. Na Alemanha, ocorria A Noite dos Cristais, que marcava o início da onda de perseguição sistemática aos judeus. Infelizmente, não é possível chegar à Lua sem passar pela Era dos Extremos, período no qual destruiríamos parte do monumento civilizatório que tínhamos erguido nos últimos séculos. É difícil nos olharmos no espelho sem nos envergonharmos pelo que fizemos. Que ao menos nos sirva de reflexão!

*Dr. José Bezerra Pessoa Filho é servidor aposentado, tendo dedicado 31 anos de sua vida profissional ao Instituto de Aeronáutica e Espaço


Fonte: Jornal do SindCT - Edição 78ª - Abril de 2019 – Págs. 10 e 11

Comentário: Pois é, mais um interessante artigo escrito pelo Dr. José Bezerra Pessoa Filho relacionado com a comemoração dos 50 anos do voo do homem a Lua. Parabenizo ao Dr. Bezerra pela interessante iniciativa e caso o leitor queira ler ou rever o segundo artigo da série, clique aqui.

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