Mais do que um Eclipse
Olá leitor!
Segue abaixo uma matéria publicada na “Revista Pesquisa
FAPESP” (edição 191) destacando que segundo o estudo de uma equipe
internacional de astrofísicos comandada por brasileiros colapso de ventos
estelares prolonga apagão cíclico da estrela Eta Carinae.
Duda Falcão
CIÊNCIA - CAPA
Mais do que um Eclipse
Colapso de ventos estelares prolonga
apagão cíclico da estrela Eta Carinae
Marcos Pivetta
Edição Impressa 191
Janeiro 2012
© NASA, ESA, N. Smith, The Hubble Heritage Team
A estrela Eta Carinae (quadrado pontilhado) fica a 7.500 anos-luz da Terra, na nebulosa de Carina |
A natureza da brutal e periódica perda de luminosidade da
enigmática estrela gigante Eta Carinae, que a cada cinco anos e meio deixa de
brilhar por aproximadamente 90 dias consecutivos em certas faixas do espectro
eletromagnético, em especial nos raios X, pode ter sido finalmente desvendada
por uma equipe internacional de astrofísicos comandada por brasileiros. O
pesquisador Augusto Damineli e o pós-doutor Mairan Teodoro, ambos da
Universidade de São Paulo (USP), analisaram dados registrados por cinco telescópicos
terrestres situados na América do Sul durante o último apagão do astro,
ocorrido entre janeiro e março de 2009, e colheram evidências de que esse
evento literalmente obscuro esconde, a rigor, dois fenômenos distintos embora
entrelaçados — e não apenas um, como acreditava boa parte dos astrofísicos.
Primeiro, há uma espécie de eclipse das emissões de raios
X desse sistema que, a rigor, é binário, composto de duas estrelas muito
grandes: a principal e maior, a Eta Carinae A, com cerca de 90 massas solares,
e a secundária, dois terços menor e dez vezes menos brilhante, a Eta Carinae
B. O bloqueio da emissão é causado pela passagem da estrela de maior em
frente ao campo de visão de um observador situado na Terra. Esse fenômeno, já
razoavelmente conhecido e estudado, dura cerca de um mês, não mais do que isso.
Como explicar então os outros 60 dias de apagão? A resposta, segundo Damineli e
Teodoro, reside na existência de um segundo mecanismo que prolonga a perda de
brilho em raios X do sistema Eta Carinae.
Assim que termina o eclipse, as duas estrelas estão a
caminho do periastro, o ponto mais próximo entre suas órbitas, da ordem de 230
milhões de quilômetros. Os ventos estelares da Eta Carinae maior, um jato de
partículas que escapa permanentemente de sua superfície, passam a dominar o
sistema binário, aprisionam os ventos estelares da estrela menor e os empurram
de volta contra a superfície da Eta Carinae B. Nesse momento, ocorre o que os
astrofísicos chamam de colapso da zona de colisão dos ventos das duas estrelas,
que até então estava em equilíbrio.
Em termos de emissão de luz, duas são as consequências do
colapso dos ventos, uma proposição teórica até agora nunca observada de fato:
estender a duração, às vezes por mais dois meses, da perda de brilho na faixa
dos raios X e — eis a grande novidade — promover uma emissão no espectro do
ultravioleta. Ou seja, em meio ao apagão em raios X, há um clarão no
ultravioleta, que até agora não havia sido reportado. “Os dois fenômenos estão
misturados e criam um quadro complexo”, explica Damineli, que há mais de duas
décadas estuda a Eta Carinae. “Se eles ocorressem em separado, seria mais fácil
divisá-los.”
O novo trabalho dos brasileiros fornece uma explicação
mais detalhada da dinâmica de mecanismos envolvidos na cíclica e temporária
redução de luminosidade da Eta Carinae, a estrela mais estudada da Via Láctea
depois do Sol e uma das maiores e mais luminosas que se conhece. De forma
esquemática, o primeiro mês dos costumeiros 90 dias de apagão em raios X poderia
ser creditado na conta do eclipse e os dois meses seguintes, ao mecanismo de
colapso dos ventos estelares. As evidências apontam nesse sentido, mas as coisas
não são tão simples assim.
Se o apagão tem data para começar, parece nem sempre ter
para terminar. O último, por exemplo, iniciou-se em 11 de janeiro de 2009, como
previsto, mas se prolongou por somente 60 dias, um mês a menos do que o
esperado. “Não há necessariamente dois apagões iguais”, afirma Teodoro. “O
eclipse parece se estender por cerca de 30 dias, mas o processo de colapso dos
ventos estelares tem duração variável.” Aparentemente, esse segundo fenômeno
pode durar algo entre 30 e 60 dias.
Esse cenário intrincado foi descrito em detalhes num
artigo aceito para publicação no Astrophysical Journal
(ApJ). Além de Damineli e Teodoro,
que são os principais autores do estudo, o trabalho é assinado por outros 24
pesquisadores do Brasil, América do Sul, Europa, Estados Unidos e
Austrália. Dados obtidos no Observatório Austral de Pesquisa Astrofísica
(Soar), situado em Cerro Pachón, nos Andes chilenos — iniciativa da qual o
Brasil é um dos sócios e um dos mais potentes telescópios usados no estudo —,
foram fundamentais para registrar indícios dos fenômenos envolvidos no apagão
da Eta Carinae. Damineli é o coordernador de um projeto temático da FAPESP que
permitirá a instalação no Soar de um espectrógrafo de alta resolução, o Steles.
© Raios X (parte amarela da imagem)
NASA/CXC/GSFC/M.Corcoran et al.;
óptico (em azul) NASA/STScI
A Eta Carinae é um sistema formado por duas estrelas dentro de uma nuvem de gás e poeira |
Moribunda, Explosiva e Casada
Um dos corpos celestes mais fascinantes da Via Láctea, a Eta Carinae
está situada a 7.500 anos-luz da Terra, na constelação austral de Carina, à
direita do Cruzeiro do Sul. Nas classificações dos astrofísicos, aparece como
uma estrela supergigante da raríssima classe das variáveis luminosas azuis que
hoje contabiliza umas poucas dezenas de membros, mas que deve ter sido comum no
início do Universo. É um objeto colossal e longínquo, não visível a olho nu,
embora um observador treinado possa localizá-lo nas noites de inverno ou outono
com um bom binóculo. O diâmetro da estrela principal do sistema é igual à
distância que separa a Terra do Sol. Sua luminosidade é ainda mais
impressionante, aproximadamente 5 milhões de vezes maior do que a do Sol.
Quando sofre seu cíclico apagão a cada cinco anos e meio, deixa de emitir, nas
faixas de raios X, ultravioleta e rádio, uma energia equivalente à de 20 mil
sóis.
A Eta Carinae se torna uma estrela ainda mais especial por reunir outros
predicados pouco comuns. Com apenas 2,5 milhões de anos de existência, cerca de
1.800 vezes mais nova do que o Sol, já é um astro moribundo e potencialmente
explosivo. Deve literalmentte ir pelos ares na forma de uma hipernova a
qualquer momento entre hoje e alguns milhares de anos. “Sua morte deverá
produzir uma explosão de raios gama, o tipo de evento mais energético que
ocorre no Universo”, afirma Damineli. Há meros 170 anos, a megaestrela entrou
aparentemente numa fase terminal e turbulenta, no auge de sua decadência. Desde
então, como nos anos 1840 e em menor escala na década de 1890, sofre grandes
erupções em que perde matéria da ordem de dezenas de massas solares e aumenta
temporariamente seu brilho. Em 1843, a Eta Carinae se tornou visível a
olho nu durante o dia por meses e quase tão luminosa quanto Sirius, a estrela
mais brilhante do céu noturno, que se encontra muito próxima à Terra, a uma
distância de no máximo 30 anos-luz.
Naquela época, também em consequência da erupção, a megaestrela ganhou
um traço que dificulta ainda mais a sua observação: uma densa nuvem de gás e
poeira, no formato de dois lóbulos e denominada Homúnculo, passou a envolvê-la.
“A Eta Carinae é um objeto particularmente difícil de ser estudado”, comenta o
astrofísico Ross Parkin, da Universidade Nacional da Austrália, especialista em
criar modelos computacionais que tentam reproduzir a interação dos ventos
estelares de sistemas binários e coautor do artigo (uma de suas simulações foi
usada no trabalho dos brasileiros). “É complicado vê-la, pois está imersa
nesse envelope massivo de poeira.”
O nome de Damineli está ligado à história desse misterioso objeto
celeste. Contra a opinião de muitos, teve a primazia de defender, há quase 20
anos, a ideia de que a Eta Carinae era um sistema com duas estrelas, em vez de
apenas uma, e que essa dupla de astros luminosos sofria um apagão periódico. “A
Eta Carinae não era apenas gorda, era também casada”, diz o professor do
Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, com
seu talento para cunhar frases tão engraçadas quanto informativas. “Dou todo o
crédito dessas descobertas ao Damineli, que foi o primeiro a perceber isso”,
diz o veterano pesquisador Theodore Gull, do Goddard Space Flight Center, da
Nasa.
O inesperado brilho em ultravioleta em meio ao apagão de raios X em 2009
foi detectado pelos brasileiros de forma indireta, por meio do registro de uma
fraca emissão numa linha espectral do gás hélio ionizado, a Hell4686 A. A medição
de valores positivos para essa linha é uma espécie de assinatura espectral de
que existe uma fonte de raios ultravioleta no lugar observado. “O sinal do
hélio ionizado que vimos durante o apagão de 2009 é apenas 20% maior do que o
limite capaz de ser medido por telescópios”, diz Damineli. “Mas ele equivale ao
brilho de 10 mil sóis no ultravioleta extremo.” A captação do sinal também foi
facilitada pelo cerco à Eta Carinae que Teodoro coordenou há dois anos, quando
cinco telescópios observaram a estrela em distintos momentos. Tudo isso explica
por que nos três apagões precedentes que também foram acompanhados pela
comunidade científica (1992, 1997 e 2003) não haviam sido reportadas emissões
nessa linha espectral.
Como há mesmo um clarão no ultravioleta durante o
apagão em raios X, a melhor explicação para essa ocorrência é a queda dos
ventos estelares da Eta Carinae sobre sua irmã menor. “Acho que há uma
evidência muito boa de que isso ocorre por um pequeno período de tempo durante
o periastro”, afirma o astrofísico americano Michael Corcoran, do Goddard Space
Flight Center, um dos coautores do trabalho com os brasileiros. Seu colega
Nathan Smith, da Universidade do Arizona, outro estudioso dessa estrela, tem
uma opinião semelhante. “Os autores do estudo fizeram um trabalho muito
cuidadoso e mediram a linha de emissão do hélio ionizado de uma forma
consistente”, diz Smith, que não participa do artigo na ApJ. “A análise
deles parece mesmo apoiar a conclusão de que a zona de colisão dos ventos
despenca temporariamente sobre a estrela secundária.”
Entender as interações entre os ventos estelares
das duas Eta Carinae, a maior e a menor, parece ser essencial para desvendar os
fenômenos envolvidos no apagão. Trata-se de um jogo de empurra-empurra
desigual, travado por dois contendores bem distintos. Também presente no Sol, o
vento estelar é um mecanismo de perda de matéria na forma de um jato de
partículas em geral eletricamente carregadas, como prótons e elétrons liberados
por um gás ionizado. Por esse mecanismo, a grande Eta Carinae deixa escapar num
único dia uma quantidade de massa equivalente à da Terra. Seu vento é bastante
denso e viaja a 600 quilômetros por segundo no espaço. “Ele é cinco vezes mais
lento do que o vento da estrela secundária, que tem um caráter mais rarefeito”,
explica Teodoro.
Durante a maior parte do tempo, os ventos das duas
Eta Carinae estão em equilíbrio. Eles se encontram num ponto entre as duas
estrelas e essa colisão produz ondas de choque que resultam em emissões de
raios X. São essas emissões que deixam de ser captadas da Terra durante o
apagão da estrela. Quando as duas estrelas se aproximam demais, o jogo de
forças pende claramente para o astro maior. O vento da estrela principal, que
funciona como uma parede em relação ao jato de partículas da estrela menor,
arremessa de volta o vento da Eta Carinae B. É o tal colapso da região de
choque dos ventos estelares, o fenômeno que leva a uma fugaz emissão de
ultravioleta em meio ao apagão em raios X.
Segundo dados da astrofísica alemã Andrea Mehner, do
Observatório Europeu do Sul (ESO), no Chile, o vento da estrela se tornou mais
rarefeito nos últimos 10 anos e diminuiu sua densidade em um terço. No entanto,
as observações de Damineli não corroboram essa interpretação. Para ele, a
densidade do vento da Eta Carinae principal não variou muito na última década.
Uma boa chance de colher mais informações sobre o tema polêmico será durante o
próximo apagão da estrela, marcado para começar em julho de 2014, quando muitos
telescópios voltam a mirar seus espelhos para o astro gigantesco.
© Ross Parkin
Choque dos ventos estelares |
A Dinâmica
do Apagão
A zona de choque dos ventos estelares produz emissões de
raios X (fig. 1). A cada 5,5 anos, quando
as estrelas atingem o ponto mais próximo de suas órbitas (periastro), as
emissões deixam de ser visíveis (fig. 2).
A estrela maior passa pelo campo de visão da Terra e provoca um eclipse. A
proximidade faz o vento da Eta Carinae A engolfar e empurrar o da estrela menor
de volta (fig. 3). O fenômeno prolonga o
apagão em raios X e causa uma emissão de ultravioleta.
Artigo Científico
TEODORO, M. et al. He II 4686 in Eta Carinae: collapse of
the wind-wind collision region during periastron passage. The Astrophysical Journal. No
prelo.
O Projeto
Steles: espectrógrafo de alta resolução para o Soar
nº 2007/02933-3
Modalidade
Projeto Temático
Coordenador
Augusto Damineli – IAG/USP
Investimento
R$ 1.373.456,33 (FAPESP)
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP - Edição 191 - Janeiro
2012
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