Pode um País Colonizar a Lua?
Olá leitor!
Segue abaixo mais um artigo do José Monserrat Filho postado hoje
(30/01) no site da “Agência Espacial Brasileira (AEB)” analisando se um país
pode colonizar a Lua.
Notícias
Pode um País Colonizar a Lua?
José Monserrat Filho*
30/01/2012
Em 1865, o escritor francês Júlio Verne (1828-1905), aclamado como
visionário e precursor da ficção científica, lançou o livro “De la Terre à la
Lune” (Da Terra à Lua¹),
narrando a irônica história do “Clube do Canhão”, com sede em Baltimore, Estado
de Maryland, EUA. Fora criado ao longo da Guerra de Secessão (entre o Norte
liberal e o Sul escravagista) por veteranos oficiais heróis da Artilharia. Mas
deixemos o próprio Júlio Verne contar:
“Muitos ficaram no campo de batalha, e seus nomes constavam no
livro de honra do Clube do Canhão. Dos que voltaram, quase todos traziam a
marca da indiscutível bravura. Muletas, pernas de pau, braços articulados, mãos
de gancho, maxilares de borracha, cabeças com pedaços de prata, narizes de
platina, nada faltava à coleção. E o já citado Pitcairn [perito em
estatística] também calculou que no Clube do Canhão havia um braço para quatro
pessoas e somente uma perna para cada seis.
“Mas os valentes artilheiros não se importavam com isso e ficavam
orgulhosos quando o boletim da guerra destacava que o número de vítimas havia
sido dez vezes maior do que a quantidade de projéteis atirados.
“Um dia, porém, triste e lamentável dia, a paz foi assinada pelos
sobreviventes da guerra, as detonações foram cessando aos poucos, os morteiros
se calaram, os obuses receberam uma mordaça, os canhões voltaram para os
arsenais, as balas foram empilhadas, as lembranças sangrentas se apagaram, os
magníficos algodoeiros começaram a crescer nos campos adubados, as roupas de
luto foram eliminadas juntamente com a dor da perda, e o Clube do Canhão
mergulhou numa inatividade profunda. (…)
“– É desolador – suspirou uma noite o bravo Tom Hunter, enquanto
suas pernas de pau queimavam na lareira.
“– E não existe nenhuma perspectiva de guerra! – disse o famoso J.
T. Maston [inventor de um “extraordinário morteiro”], coçando a cabeça com mão
de gancho.
”Diante de tamanho descalabro, em que “pairava sobre o clube a
ameaça de dissolução”, o Presidente Impey Barbicane, “um homem de 40 anos,
calmo, frio, austero e de temperamento inquebrantável”, “nortista
colonizador... um ianque dos pés à cabeça”, convocou as centenas de associados
e disse a eles ter pesquisado se “dentro da nossa especialidade, não poderíamos
realizar uma grande experiência digna do século XIX”. “E, com meus estudos,
adquiri a convicção de que teremos sucesso numa operação que pode parecer
impraticável a qualquer outro país... Esse projeto é digno de vocês, é digno do
Clube do Canhão e terá repercussão mundial.” E anunciou: “Conquistaremos a Lua,
que se juntará aos Estados que formam o nosso grande país!”
O projeto consistia em construir nada menos que um gigantesco
canhão (de 68 mil ton), o maior de todos os tempos, para lançar três corajosos
“viajantes” à Lua.
Não revelarei como terminou a insólita experiência, para não
furtar do leitor o prazer de ler até o fim o famoso livro de Júlio Verne.
Desta alegórica e divertida ficção do século XIX, passemos, num
salto de 147 anos, a uma não menos alegórica e divertida realidade do século
XXI.
No final deste janeiro de 2012, Newt Gingrich, pré-candidato
republicano a presidente dos EUA, em plena campanha, não só prometeu criar até
2020 uma base dos EUA na Lua, como, em especial, previu que “quando houver 13
mil americanos vivendo na Lua, eles poderão fazer uma petição para que [o
assentamento] vire um Estado americano”.²
Em 1865, a hipótese de os EUA fundarem um Estado na Lua até
poderia ser política e legalmente admissível, embora não houvesse a mais ínfima
possibilidade tecnológica e financeira para tanto.
Já em 2012, – há mais de 40 anos, portanto, daquele inesquecível
dia 19 de junho de 1969 quando os primeiros astronautas americanos pisaram na
Lua – é bastante constrangedor para um homem público, sobretudo americano,
ignorar o Tratado do Espaço3,
de 1967, que proíbe os países de se adonarem do espaço exterior e de qualquer
corpo celeste, a começar pela Lua. Esse acordo foi aprovado por unanimidade
pela Assembleia Geral das Nações Unidas e já ratificado por mais de 100 países
envolvidos com programas espaciais, inclusive os EUA.
Eis o texto oficial do Art. 2º do Tratado do Espaço: “O Espaço cósmico,
inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação
nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer
outro meio.”
Diante deste princípio jurídico internacional obrigatório, como
acreditar que um grupo de cidadãos de um país – por mais numeroso que seja –
possa ser considerado como legalmente competente para sequer solicitar a
transformação de seu assentamento lunar em Estado ou Província de seu Estado de
origem?
O pré-candidato republicano Newt Gingrich parece não saber ou
prefere desprezar o princípio hoje reconhecido universalmente de que o espaço
cósmico e os corpos celestes (Lua, Marte e todos os outros) não podem pertencer
a nenhum país e a ninguém – são o que já o Direito Latino considerava “Res communis
omnium”, ou seja, coisas de uso comum, acessível a todos.
É claro que todos os países, inclusive os EUA, podem estabelecer
um assentamento na Lua, segundo o Art. 1º do Tratado do Espaço, que determina:
“O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, poderá ser
explorado e utilizado livremente por todos os Estados sem qualquer
discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o direito
internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos
celestes.”
Explorar (que, no caso, significa estudar, conhecer profundamente)
e utilizar os recursos da Lua – as duas ações não habilitam nenhum país ou
empresa a tornar-se dono, proprietário, soberano da área do assentamento lunar.
Tanto que o já mencionado Art. 2º, logo a seguir, consagrou o princípio da
não-apropriação.
Em se tratando de regulamentar as atividades dos Estados na Lua,
há que considerar, além do Tratado do Espaço, o Acordo da Lua4, aprovado por
aclamação pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1979, inclusive com o
voto favorável dos EUA, mas que conta hoje com apenas três assinaturas e 13
ratificações. Os países com mais destaque nas atividades espaciais não
ratificaram esse acordo, entre eles os EUA. Mesmo assim, sua longa discussão (cerca
de 10 anos) e parcial adoção representam uma experiência muito rica que não
pode ser deixada de lado no momento em que se retomarem as negociações para a
ampla regulamentação específica ainda pendente sobre como os países poderão
explorar, coletar e utilizar os recursos lunares – algo que talvez comece a
ocorrer dentro de 20 a 30 anos.
De qualquer forma, não há a mínima indicação de que a comunidade
internacional venha um dia a concordar com a eliminação do princípio da
“não-apropriação” do espaço e dos corpos celestes. Isso representaria um
retrocesso à época da formação dos impérios coloniais, que, felizmente, já
estão no museu da história.
Daí o ridículo que soa hoje pregar a criação de uma colônia ou de
um Estado na Lua.
Referências
1) Verne, Júlio, Da Terra à Lua; tradução e adaptação de Maria Alice de
Sampaio Dori. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2005.
2) Folha
de S. Paulo, 28 de janeiro de 2012, p. A16.
3) Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados
na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, inclusive a Lua e demais Corpos
Celestes, aberto à assinatura em 27 de janeiro de 1967, em vigor desde 10 de
outubro do mesmo ano; e ratificado pelo Brasil em 5 de março de 1969.
4) Acordo que Regula as Atividades dos Estados na Lua e
em Outros Corpos Celestes, aberto à assinatura em 18 de dezembro de 1979, em
vigor desde 11 de julho de 1984; não assinado, nem ratificado pelo Brasil.
* Chefe da Assessoria de
Cooperação Internacional da AEB
Fonte: Site da Agência Espacial Brasileira (AEB)
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