O Coração da Via Láctea
Olá leitor!
Segue abaixo um artigo publicado na edição 200 (outubro de
2012) da “Revista Pesquisa FAPESP” destacando que o
maior levantamento de estrelas já feito por uma equipe internacional de 12
pesquisadores liderados
por brasileiro e por argentino reconstitui a região central da galáxia.
Duda Falcão
CIÊNCIA
O Coração da Via Láctea
Maior levantamento de estrelas já feito reconstitui
a
região central da galáxia
IGOR ZOLNERKEVIC
Edição 200
Outubro de 2012
© IGNACIO TOLEDO / VVV SURVEY / ESO
Quando o assunto
é imagem em alta definição, o nível de exigência dos astrônomos ultrapassa de
longe o de qualquer cinéfilo. Para analisar o máximo possível de estrelas do
chamado bojo galáctico – a porção mais interna e mais cheia de estrelas da
nossa galáxia, a Via Láctea –, uma equipe internacional de 12 pesquisadores
liderados pelo brasileiro Roberto Saito e pelo argentino Dante Minniti, ambos
da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Chile, analisou um retrato de 190
mil por 170 mil pixels dessa região, apresentado nestas páginas. A imagem,
produzida pelo astrônomo chileno Ignacio Toledo, do Observatório Alma, é tão
grande que seriam necessários 6 mil aparelhos de TV de alta definição para
exibi-la em sua máxima resolução.
O retrato do
coração da Via Láctea revela uma população de estrelas onde se poderiam
encontrar planetas parecidos com a Terra e promete ajudar a entender como
nasceu a galáxia. Também fortalece a hipótese de que no bojo galáctico, a
região central, parecida com uma bola de futebol americano, há dois grandes
adensamentos de estrelas que assumem a forma de um imenso X. A análise da nova
imagem gerou um catálogo com informações sobre a posição e o brilho de 84
milhões de estrelas. Já houve levantamentos maiores, mas, segundo Saito, ainda
não se tinha analisado um conjunto tão grande de estrelas de uma só vez.
Em resolução
máxima, a nova imagem ocupa 200 gigabytes de memória em um computador. Por
causa da quantidade de dados, não havia conexão de internet que bastasse para
transferi-la sem erros do Chile – onde foi obtida ao longo de mais de um ano de
observações feitas pelo telescópio de
quatro metros Vista, do Observatório Europeu Austral (ESO) – para o
Reino Unido, onde foi sintetizada pelos pesquisadores da Universidade de
Cambridge. Por essa razão, foi necessário levá-la e trazê-la de volta de avião.
A partir do
novo catálogo das estrelas do bojo, o time de pesquisadores, que inclui os
astrônomos brasileiros Márcio Catelan, da PUC chilena, e Beatriz Barbuy e Bruno
Dias, da Universidade de São Paulo, produziu um gráfico relacionando a
intensidade do brilho das estrelas com a cor de sua luz, o chamado diagrama
cor-magnitude, publicado em agosto deste ano na Astronomy & Astrophysics.
Estudando a distribuição dos astros nesse diagrama, os astrônomos inferiram a
massa, a idade e a localização das estrelas na galáxia e caracterizaram a
população de estrelas do bojo.
Os 84 milhões de
estrelas são uma fração ínfima das centenas de bilhões que constituem a Via
Láctea. Mais de um terço delas está apinhado no bojo, enquanto o restante,
incluindo o Sol, se distribui nos braços espirais que formam a parte externa do
disco da galáxia.
© NASA /
JPL-CALTECH
Não foi fácil enxergar as estrelas do bojo. O brilho
delas é muito tênue, a concentração é elevada e uma enorme quantidade de gás e
poeira bloqueia a passagem da luz que emitem. O telescópio Vista só conseguiu
detectar esse número tão elevado por captar a radiação infravermelha emitida
pelas estrelas que consegue atravessar o nevoeiro de gás e poeira. “Somente
levantamentos no infravermelho podem enxergar o bojo e, portanto, são
fundamentais para a compreensão de como a Via Láctea se formou”, comenta Kátia
Cunha, astrônoma do Observatório Nacional especialista no assunto.
Censo Estelar
Os pesquisadores confirmaram que a maioria das estrelas
do bojo são gigantes vermelhas, astros idosos nos últimos estágios de suas
vidas, o que condiz com a ideia mais aceita de que o bojo foi a primeira região
da galáxia a se formar. Dentre essas gigantes se destacam as red clump giants, um tipo de
estrela com cor e brilho muito bem conhecidos. “Isso faz com que elas possam
ser usadas como indicadores de distância”, explica Saito. “Se o brilho delas
parece fraco é indicação de que estão distantes e, se parece forte, é porque
estão próximas.”
Usando as red clumps, Saito
e seus colegas mapearam o bojo e confirmaram uma conclusão de levantamentos
anteriores: o centro da galáxia contém duas regiões em que a concentração de
estrelas é mais elevada. Cada uma dessas regiões tem a forma de uma barra e
elas se cruzam desenhando um X (ver Pesquisa
FAPESP nº 188). Mas descobriram algo novo:
as pernas do X são muito mais longas do que se pensava.
Os astrônomos também identificaram uma série de estrelas
anãs vermelhas que, por conta de seu brilho fraco, estavam além do limite de
detecção dos levantamentos anteriores. “Elas são pequenas, com um décimo do
tamanho do Sol, e devem ser as estrelas mais comuns da galáxia”, comenta Saito.
Segundo o pesquisador, as anãs vermelhas atualmente são as estrelas da moda
porque é fácil detectar em torno delas planetas pequenos e rochosos como a
Terra. O próprio telescópio Vista deve, até 2014, buscar variações no brilho
dessas estrelas provocadas pela passagem de planetas na frente delas.
“Hoje existem pelo menos dois cenários para explicar a
formação do bojo, que, por sua vez, está intimamente ligado à formação de
outras partes da galáxia”, diz a astrônoma brasileira Cristina Chiappini, do
Instituto Leibniz de Astrofísica, em Potsdam, Alemanha. Uma visão é que o bojo
pode ter se formado pela aglutinação de galáxias menores nos primeiros bilhões
de anos de vida do Universo. A explicação alternativa é que essa formação
ocorreu mais lentamente, resultado de instabilidades no movimento de rotação do
disco galáctico, onde há mais gás, poeira e estrelas jovens. “O importante é
que os diferentes cenários resultam no surgimento de estrelas com propriedades
químicas e físicas distintas”, explica Cristina.
Ela e Kátia ressaltam que o catálogo produzido por Saito
e seus colaboradores abre caminho para levantamentos espectroscópicos em larga
escala, que analisam a composição química de um grande número de estrelas simultaneamente,
fornecendo assim dados para se testar as teorias de formação da Via Láctea.
Artigo científico
SAITO, R. K. et al. Milky Way
demographics with the VVV survey I. The 84-million star colour-magnitude
diagram of the Galactic bulge. Astronomy & Astrophysics.
28 ago. 2012.
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP - Edição 200 - Outubro de 2012
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