Por Que a Renúncia Recíproca de Responsabilidade?
Olá leitor!
Segue abaixo mais um artigo escrito pelo Sr. Jose Monserrat
Filho e postado dia (20/12) no site do “Jornal da Ciência” do SBPC.
Duda Falcão
Artigo
Por Que a Renúncia Recíproca
de Responsabilidade?
José Monserrat
Filho*
Jornal da Ciência
20/12/2013
O princípio jurídico da renúncia recíproca de
responsabilidade surgiu e foi amplamente adotado nos EUA com o nome de
"Cross-waiver of responsibility and liability". O termo
"responsabilidade" na prática legal americana tem dois conceitos: o
de "responsibility" como "responsabilidade de Estado" e de
"liability" como responsabilidade civil.
Isso significa que o princípio da renúncia
recíproca de responsabilidade pode ser utilizado tanto nas relações entre
Estados e governos, como nas relações civis e comerciais entre pessoas físicas
e jurídicas, sempre que impere, em ambos os casos, uma aliança de interesses
fortemente entrelaçados.
Hoje, esse princípio está também incorporado à
legislação espacial francesa, sendo, igualmente, admitido e aplicado por muitos
países e corporações que conduzem importantes programas espaciais.
No momento em que o Brasil se empenha em fortalecer
a cooperação com antigos e novos parceiros e internacionalizar suas atividades
espaciais, com base no interesse mútuo e no desenvolvimento conjunto de
tecnologias, é preciso que o princípio em questão seja melhor conhecido.
A ideia de renúncia recíproca de responsabilidade
nasceu e ganhou projeção por um motivo lógico e natural: os projetos de
atividades espaciais são, em geral, extremamente dispendiosos e de altíssimo
risco. Justamente por isso, os prêmios dos seguros do setor costumam ser tão
caros.
Um caso emblemático de renúncia de responsabilidade
está na estrutura jurídica múltipla que regula a Estação Espacial
Internacional, liderado pelo acordo intergovernamental que une 14 países e uma
organização internacional (Canadá, Estados Unidos, Japão, Rússia, Agência
Espacial Europeia (ESA) e onze de seus países membros - Bélgica, Dinamarca,
Espanha, França, Holanda, Itália, Noruega, Reino Unido, Suécia e Suíça). Essa
estrutura tem como ápice o Acordo Intergovernamental (IGA) assinado, em 28 de
janeiro de 1998, pelos 14 países e pela ESA.
O Art. 1º do Acordo define seu objetivo principal:
"Este é um acordo-quadro internacional de caráter cooperativo e de longo
prazo, baseado em parceria genuína, para elaborar o projeto detalhado e
promover o desenvolvimento, o funcionamento (operação) e a utilização de uma
estação espacial civil, habitada permanentemente, com propósitos pacíficos, em
conformidade com o direito internacional."
Após o acordo-quadro, vem uma segunda linha de
acordos chamados de "Memorandos de Entendimento" (MoU), firmados
entre as partes, nos quais se descrevem, com mais detalhes, as funções e
responsabilidades de cada parte.
A terceira linha de documentos reúne os contratos
ou acordos concluídos que estabelecem os direitos e os deveres das partes,
inclusive o acordo-quadro comercial assinado, em 2005, entre as agências
espaciais dos EUA e da Rússia, NASA e a ROSCOSMOS, que estipula os termos e
condições, com base nos quais a NASA adquire lugares para seus tripulantes no
foguete Soyuz, bem como o espaço necessário para o transporte de carga pelo
lançador Progresso, não tripulado.
E a quarta linha inclui os acordos de
regulamentação que executam e completam os MoUs acima referidos. Entre eles,
está o Código de Conduta da Estação Espacial, de 1998, que define a jurisdição
penal, a norma que proíbe o assédio pessoal, e outras regras de conduta que
ordenam o comportamento dos tripulantes da Estação, independentemente de seus
países de origem.
Há de se convir que o perfeito entrosamento desse
complexo sistema de acordos, contratos e regulamentações é absolutamente
fundamental para garantir o funcionamento, a segurança e os resultados
esperados do gigantesco projeto.
Agora imagine o que poderia ocorrer se cada parte
desse emaranhado tivesse o direito de acionar qualquer das outras partes, em
função de algum sinistro, contrariedade ou suspeita, em busca de indenização
por supostos danos materiais ou morais sofridos?
O próprio projeto poderia entrar em colapso, não
importando sua relevância efetiva e o montante de recursos já investidos. Daí a
racionalidade e a necessidade da cláusula de renúncia recíproca de
responsabilidade, assegurando que nenhuma de suas partes abrirá processo por
responsabilidade contra qualquer uma das demais partes. A razão central é não
prejudicar, não paralisar, não atrasar, não encarecer, não inviabilizar, nem
impedir o desenvolvimento do projeto como um todo.
O cruzamento de processos por responsabilidade
entre as muitas partes de um empreendimento espacial pode ser fatal para seu
andamento, seus resultados e seu próprio futuro.
Partes e participantes, no caso, são as pessoas
jurídicas estatais ou privadas e pessoas físicas engajadas, direta ou
indiretamente num projeto de atividade espacial: podem ser ministérios, agências,
autarquias, organizações governamentais ou não governamentais, empresas
estatais ou privadas, contratadas ou subcontratadas, além de especialistas e
profissionais de qualquer tipo.
Em havendo um sinistro, grande ou pequeno - segundo
a regra da renúncia recíproca de responsabilidade -, cada parte se compromete a
cobrir seus próprios prejuízos, mantendo a firme disposição de não afetar o
conjunto do projeto, considerado de interesse mais geral. Pela regra, as partes
reconhecem claramente que projetos espaciais são inerentemente de risco, sejam
quais forem os cuidados e precauções adotados na preparação dos projetos e na
operação de seus sistemas espaciais.
Não por acaso, a renúncia recíproca de
responsabilidade tornou-se "um princípio comum incorporado aos acordos da
indústria espacial, por meio do qual as partes concordam em estabelecer a
renúncia recíproca de responsabilidade entre os contratantes (clientes), os
contratados e subcontratados, e o provedor do lançamento", como salientam
os juristas alemães Lesley Jane Smith e Ingo Bumann, editores do livro
"Contracting for Space", de 428 páginas, obra indispensável no setor,
baseado na longa e rica experiência da prática contratual acumulada pela
comunidade espacial europeia.
No capítulo 5 do livro, sobre "Os princípios
do direito internacional e sua relevância para os contratos da indústria
espacial", Lesley Jane Smith salienta um detalhe muito significativo:
"Uma possível questão aberta refere-se à pergunta sobre o que poderia
acontecer em caso de ausência de uma legislação de apoio aos acordos de
renúncia de responsabilidade. O cenário mais provável é que os parceiros de um
contrato incluiriam tais acordos em seus contratos sobre atividades espaciais,
sem a garantia de que a cláusula não pudesse ser invalidada em um litígio
judicial."
O leitor mais atendo poderia indagar se há exceções
ao princípio da renúncia recíproca de responsabilidade. Há, sim. Mas são
reconhecidamente limitadas a circunstâncias muito especiais, em casos, por
exemplo, de evidente e absoluta má fé ou dolo. Não chegam a pôr em xeque o
princípio em si, que hoje - pode-se dizer - parece definitivamente consolidado,
sobretudo na área espacial.
* José
Monserrat Filho é chefe da
Assessoria de Cooperação Internacional da AEB, vice-presidente da Associação
Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial, e diretor honorário do Instituto
Internacional de Direito Espacial, membro pleno da Academia Internacional de
Astronáutica
Fonte: Site do Jornal da Ciência da SBPC - 20/12/2013
Comentários
Postar um comentário