Espaço Como Propriedade Privada e Teatro de Guerra?
Olá leitor!
Segue abaixo mais um artigo sobre Direito Espacial escrito
pelo Sr. José Monserrat Filho e postado ontem (23/02) pelo companheiro André
Mileski em seu blog “Panorama Espacial”.
Duda Falcão
Espaço Como Propriedade Privada
e Teatro de Guerra?
José Monserrat Filho*
23/02/2014
“Agora é o momento para algumas considerações sobre o
poder econômico
privado e sua autonomia, entendida como tendência de
escapar das garras do
direito (nacional e internacional) centrado no estado e
de empregar a
auto-regulação.”Luigi Condorelli e Antonio Cassese¹
Há duas crescentes pressões no
jogo da política espacial no mundo de hoje, que se relacionam fortemente. Uma
força o estabelecimento no espaço e nos corpos celestes do direito de
propriedade privada, no interesse de grandes corporações. A outra força a
instalação de armas no espaço, o que pode convertê-lo no quarto campo de
batalha, além da terra, do mar e do espaço aéreo.
O artigo “Leis de propriedade
na Lua: uma necessidade futura?”, de Boris Pavlischev, publicano na última
5ª-feira, 20 de fevereiro, pelo jornal “Voz da Russia”, de Moscou, reflete a
pressão para mudar o regime jurídico vigente, que começou a ser articulado logo
no início da Era Espacial – inaugurada com o voo do Sputnik-1 em 4 de outubro
de 1957.
Esse regime foi consolidado pelo
Tratado do Espaço de 1967, hoje ratificado por 102 países, assinado por 26 e,
além disso, considerado costume válido na prática para todos os demais países
(cerca de 67), pois nenhum deles manifestou qualquer restrição ao tratado nos
47 anos de sua vigência. (Admite-se atualmente a existência de, pelo menos, 195
países.)
Pelo Art. II do Tratado do
Espaço de 1967, “o espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes,
não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por
uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio.” Esse princípio é de tal forma
abrangente que não deixa margem a qualquer outra interpretação. Não há lacunas.
Estão proibidos todos os modos e possibilidades de propriedade privada no
espaço e nos corpos celestes, a começar pela Lua, para cuja exploração
industrial e comercial voltam-se agora inúmeros projetos empresariais.
Tal regra se harmoniza
perfeitamente com os dois parágrafos do Art. I do Tratado do Espaço:
1) “A exploração e o uso do
espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira
o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu
desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a
humanidade.”; e
2) “O espaço cósmico, inclusive
a Lua e demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado livremente por
todos os Estados sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em
conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a
todas as regiões dos corpos celestes.”
Daí que o espaço e os corpos
celestes são “áreas de uso comum”. Há um caso similar aqui na Terra. A
Antártica também é “área de uso comum” pelo Tratado de 1959, pois nenhum Estado
pode exercer ali sua soberania.
Esse, portanto, é o quadro legal
em vigor: o espaço e os corpos celestes são inapropriáveis. É possível mudar o
Tratado do Espaço?
Legalmente, sim. Pelo Art. XV,
“qualquer Estado Parte pode propor emendas ao presente Tratado. As emendas
entrarão em vigor para cada Estado Parte que as aceite logo que sejam aceitas
pela maioria dos Estados Partes no Tratado e, posteriormente, para cada um dos
outros Estados Partes na data da sua aceitação das referidas emendas.”
Politicamente, a história é
diferente. A esmagadora maioria de seus Estados-Membros, inclusive grandes
potências como os Estados Unidos e a Rússia, não concorda com emendar o
Tratado. Qualquer alteração, no caso, exigiria amplo consenso, que hoje não
existe nem é previsível.
Como mudar, então, o Tratado?
Eis a questão que enfrentam neste momento todos os empresários e interessados
em introduzir o direito de propriedade privada no espaço e nos corpos celestes.
Talvez por isso eles estejam aumentando a pressão neste sentido. Mas seus
argumentos são frágeis, insustentáveis, quando não primariamente equivocados.
Boris Pavlischev começa seu
artigo dizendo que o Tratado do Espaço “terá provavelmente de ser alterado para
incluir a atividade de empresários privados”. Certo? Errado. As atividades
espaciais de empresários privados já estão previstas no Tratado. Basta ler seu
artigo VI: “Os Estados-Partes do Tratado têm a responsabilidade internacional
das atividades nacionais realizadas no espaço cósmico, inclusive na Lua e
demais corpos celestes, quer sejam elas exercidas por organismos governamentais
ou por entidades não-governamentais, e de velar para que as atividades
nacionais sejam efetuadas de acordo com as disposições anunciadas no presente
Tratado. As atividades das entidades não-governamentais no espaço cósmico,
inclusive na Lua e demais corpos celestes, devem ser objeto de uma autorização
e de uma vigilância contínua pelo respectivo Estado-Parte do Tratado.”
Onde se lê “entidades
não-governamentais”, leia-se “empresas privadas”, e tudo fica mais claro. Como
efeito desse artigo, as entidades não-governamentais (empresas privadas) só
podem atuar no espaço e nos corpos celestes com “autorização” e sob “vigilância
contínua” de seus respectivos Estados. Isso evidentemente pode limitar a ação
das empresas privadas, obrigando-as a respeitar o Tratado. Como se sabe,
sobretudo as grandes corporações privadas costumam ter aversão a
regulamentações e preferem agir com a maior liberdade possível.
Segundo Boris Pavlischev, o
empresário norte-americano Robert Bigelow acredita que os futuros assentamentos
privados e as empresas de extração de matérias-primas na Lua provocarão
disputas territoriais entre os seus proprietários. Dono da Bigelow Aerospace
Company, ele projeta e constrói módulos infláveis para habitações, que poderão
ser usadas na criação de uma base lunar, com indústrias e hotéis.
Bigelow se pergunta se os
proprietários dessas instalações, inclusive, por exemplo, os proprietários de
uma empresa de extração do gás hélio-3 (He-3) – tão abundante na Lua quanto
raro na Terra, embora muito útil para pesquisas sobre fusão nuclear – serão
donos também da área subjacente e poderão impedir a entrada de qualquer outra
empresa concorrente.
Para o Bigelow, a indústria
lunar é inviável sem a garantia de direitos exclusivos sobre as áreas de extração
de recursos naturais. Por essas e outas, ele cometeu um erro elementar:
escreveu ao Departamento de Transporte Espacial Comercial, vinculado à
Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos, certo de que essa
instituição podia emitir licenças para que cada empresa interessada se tornasse
proprietária de certas áreas de exploração lunar. Ele está convencido de que a
outorga de títulos de propriedade nos corpos celestes não viola o Tratado do
Espaço, como relata o jornalista russo. Ocorre que, pelo Tratado em vigor,
nenhum país têm jurisdição sobre a Lua ou qualquer outro corpo celeste, e suas
partes. Assim, nenhum país está habilitado a atribuir títulos de propriedade a
quem quer que seja.
Boris Pavlischev cita também a
opinião de seu colega de imprensa Igor Lisov, vice-editor-chefe de Notícias da
revista Cosmonáutica, que vê um conflito de normas nesta matéria: de um lado, o
Tratado do Espaço não permite que os corpos celestes sejam reclamadas por
qualquer país, mas de outro nada diz sobre o uso privado de tais corpos. Lisov
acertou num alvo e errou no outro. É certo, como vimos, que os corpos celestes
são inapropriáveis. Mas não é certo, como também vimos, que o Tratado do
Espaço nada mencione sobre o uso privado desses corpos. Esse uso, vale repetir,
é autorizado e fiscalizado pelos Estados.
Não por acaso, autoridades dos
EUA já indeferiram as reclamações de propriedade no espaço de dois americanos,
Dennis Hope e Gregory Nemitz. Denis queria ser proprietário de terrenos na Lua
e poder vendê-los, como começou a fazer em 1980. Gregory, considerando-se dono
do asteroide Eros, chegou a cobrar o aluguel de 20 dólares, quando uma nave da
NASA ali pousou em 2001. A NASA taxou a ação de ilegal, alegando falsa interpretação
do Tratado do Espaço.
A opinião de Alexander
Zheleznyakov, membro da Academia Russa de Cosmonáutica, também foi reproduzida
por Pavlischev: "Naves espaciais privadas não-tripuladas já estão voando,
mas em breve serão pilotadas. Isso significa que as pessoas vão passar mais
tempo no espaço. É claro que algumas relações jurídicas serão estabelecidas
entre elas, bem como entre representantes de diferentes empresas. Tais relações
terão de ser regulamentadas de alguma forma."
Correto. É necessário ordenar a
intensa comercialização das atividades espaciais no plano global, as relações
entre as empresas e os países e suas populações, bem como as relações entre as
próprias empresas. Mas isso não implica necessariamente em mudar o Tratado do
Espaço para substituir o princípio do uso comum pelo da propriedade privada.
Até porque, como a experiência já demonstrou em 56 anos de Era Espacial, isso
não é necessário para colocar os benefícios e riquezas do espaço a serviço da
humanidade. Precisamos é impulsionar, com mais benefícios e riquezas, o desenvolvimento
e bem-estar de mais e mais povos e países, eliminando a fome e a miséria e
reduzindo as brutais desigualdades em nosso planeta.
As empresas podem seguir
contribuindo para grandes avanços na exploração e uso do espaço, sob a égide
dos estados e das organizações intergovernamentais, como as Nações Unidas,
capazes de traduzir como nenhuma outra entidade o interesse público, que, como
é notório, nem sempre coincide com os interesses privados.
Quanto às pressões pela
instalação de armas no espaço, elas atendem, sobretudo, aos interesses das
corporações hoje envolvidas com o desenvolvimento e a produção dessas armas e
de todo o complexo aparato indispensável para o funcionamento dos sistemas de
guerra espacial. Trata-se de uma força empresarial de imenso poder global, que
movimenta anualmente muitos bilhões de dólares, bem mais do que grande parte
dos países é capaz de movimentar. Se tais corporações, já tão poderosas na
Terra – financeira e tecnologicamente – puderem se tornar proprietárias nos
corpos celestes, quem efetivamente teria as melhores condições para dominar o
espaço? E quem, nessa hipótese, cuidaria, com o zelo imprescindível, do
interesse público?
* Vice-Presidente da
Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário
do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia
Internacional de Astronáutica e, atualmente, Chefe da Assessoria de Cooperação
Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB).
1) No artigo “Is Leviathan Still Holding Sway Over International
Dealings”, publicado no livro “Realizing Utopia – The Future of International
Law”, editado por Antonio Cassese, United Kingdom: Oxford University Press,
2012, p. 20.
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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