Corrida Sobre o Gelo

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Segue abaixo uma matéria publicada na “Revista Pesquisa FAPESP” (edição 194) destacando que depois da tragédia na estação Comandante Ferraz, pesquisadores brasileiros, inclusive do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), discutem como produzir ciência mais competitiva na Antártida.

Duda Falcão

POLÍTICA C&T

Corrida Sobre o Gelo

Depois da tragédia na estação, pesquisadores brasileiros
discutem como produzir uma ciência mais competitiva na Antártida

FABRÍCIO MARQUES
Edição Impressa 194
Abril 2012

© ROSALINDA MONTONE
A Estação Comandante Ferraz em
dezembro de 2006: 60 módulos
formavam uma vila
A reconstrução da Estação Comandante Ferraz, a base de pesquisa brasileira na Antártida destruída pelo fogo na madrugada do dia 25 de fevereiro, deverá ter início apenas daqui a dois anos, para ser concluída por volta de 2016. Mas a tragédia, que matou dois militares e foi deflagrada por um incêndio em geradores de energia, teve pelo menos um efeito imediato: reacendeu o debate sobre as ambições da ciência brasileira no continente gelado e as estratégias necessárias para que o trabalho dos pesquisadores do país ganhe mais relevância. Há consenso entre os cientistas de que a estação deveria ser reconstruída de modo a aumentar sua segurança mas também a garantir suporte especial aos pesquisadores – até então, a complexa e cara logística para abastecer a estação e transportar pessoas, a cargo da Marinha, por vezes deixava os objetivos científicos em segundo plano.

Também há uma percepção em comum de que o modelo vigente de financiamento à pesquisa sobre a Antártida, com editais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que patrocinam projetos por dois anos, merece ser aperfeiçoado, garantindo recursos de longo prazo principalmente para programas que coletem e forneçam dados para a pesquisa sobre as mudanças climáticas. A influência da Antártida no clima do Brasil compara-se à da Amazônia, mas ainda é pouco conhecida. “As mudanças climáticas são o grande tema de pesquisa na Antártida e permeiam disciplinas como a glaciologia, a meteorologia ou a biologia”, diz Antonio Carlos Rocha-Campos, professor aposentado do Instituto de Geociências da USP e coordenador do Centro de Pesquisas Antárticas da universidade. Com uma superfície de 13,6 milhões de quilômetros quadrados quase integralmente coberta por geleiras, o continente é o mais alto, mais frio, mais seco e com ventos médios mais fortes do planeta.

Um novo modelo de gestão da pesquisa na Antártida também é desejável, afirma o glaciólogo Jefferson Cardia Simões, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o primeiro brasileiro a atingir o polo Sul geográfico por terra numa expedição científica, em 2004. “Não se trata apenas de ter uma nova estação, mas de reconstruí-la pensando em várias frentes”, diz Simões, que enumera algumas delas: a cooperação com outros países, capaz de compartilhar custos e elevar a qualidade da pesquisa, o apoio a acampamentos e expedições em outras regiões do continente e a racionalização do trabalho dos pesquisadores. “A comunidade científica tem de assumir as decisões de gestão sobre a estação e a pesquisa na Antártida. Hoje há uma competição entre a logística, a cargo da Marinha, e a ciência, a cargo dos pesquisadores. E, no dia a dia, as prioridades se perdem por excesso de demanda”, afirma o pesquisador. O contingente de brasileiros envolvidos na pesquisa antártica tem aumentado. Com isso, a pressão para que todos passem temporadas no continente, com todo o custo e a logística envolvidos nisso, é cada vez mais intensa. “Mas não é possível que todos queiram ir a campo todos os anos. Há um tempo de coletar dados e outro de analisá-los. E há pesquisas que podem ser feitas sem precisar ir à Antártida, utilizando dados obtidos lá”, diz o glaciólogo.

© ARMANDO HADANO/INPE
Pesquisadores da USP fazem coleta perto
da estação: 40% das pesquisas afetadas
De fato, um gargalo histórico do Programa Antártico Brasileiro (Proantar) diz respeito à oportunidade de visitar a estação. Estima-se que pelo menos 250 pesquisadores brasileiros estejam envolvidos atualmente em projetos de pesquisa sobre o continente gelado. A estação é capaz de abrigar cerca de 20% desse contingente. E nem sempre é possível aproveitar todo o potencial da base. Em 2009, a Marinha incorporou um navio polar a seu trabalho na região, o Almirante Maximiano, mas em 2011 ele trabalhou praticamente sozinho, pois o Ary Rongel, navio oceanográfico que dá apoio à estação, estava avariado. Quem consegue espaço na estação também enfrenta incertezas. “Já fiquei uma semana sem poder sair, por falta de condição climática para fazer coletas”, diz Rosalinda Montone, professora do Instituto Oceanográfico da USP, cujo grupo perdeu no incêndio boa parte do material que havia coletado neste verão. “Vamos recuperar pouca coisa”, afirma ela, que pesquisa poluentes orgânicos no ambiente marinho.

Um Lugar no Navio e na Estação

A chance de viajar nos dois navios da Marinha e de passar uma temporada na estação costuma ser reservada a projetos contemplados em editais periódicos do CNPq e, mais recentemente, dos dois Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) dedicados à pesquisa antártica. Um deles trabalha com o papel da massa de gelo no sistema climático e estuda as variações do clima na Antártida e suas relações com o Brasil. O outro está voltado mais à questão do impacto da atividade humana no ambiente antártico. “A seleção dos projetos é rigorosa e temos avançado no sentido de formar redes em vez de estimular o trabalho isolado de pesquisadores”, diz Jefferson Simões.

Há uma queixa recorrente de que faltam linhas de investimento para projetos de longo prazo. “O fato de um dos grupos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) não ter sido selecionado no último edital do CNPq fez com que interrompêssemos uma série histórica de dados meteorológicos na estação, por falta de quem as coletasse”, diz o oceanógrafo Ronald Buss de Souza, responsável do programa antártico do INPE. Ilana Wainer, professora do Instituto Oceanográfico da USP, ressalta a importância de financiar a coleta de dados capazes de fertilizar pesquisas de grupos que precisam de informações sobre o continente – sem necessariamente ir até lá todo verão. “Nunca estivemos tão bem de financiamento como agora. Mas, para garantir o monitoramento das variáveis do clima, é preciso mais do que projetos com apenas dois anos de duração. Seria importante ter financiamento contínuo”, afirma Ilana, cujo trabalho sobre a modelagem do clima na Antártida depende, em grande medida, de dados sobre o oceano Austral e a variação na extensão do mar congelado. No seu caso, a dependência maior é da disponibilidade dos dois navios da Marinha, importantes para a coleta de dados sobre o oceano. O incêndio na estação e a utilização dos navios para resolver problemas logísticos deverão comprometer um dos projetos em que Ilana está engajada, o Paleoantar, que previa a obtenção de amostras de gelo para tentar entender os chamados pulsos de degelo, possíveis gatilhos para variações climáticas.

© ILUSTRAÇÃO SOBRE IMAGEM DA NASA DRüM
FOTOS 1. CHRIS DANALS/NSF 2. GAELEN MARSDEN
3. NIPR 4. ABR 5. INSTITUTO ANTÁRTICO 6. AGADEZ
Ela afirma, porém, que o Brasil não precisa investir sozinho. Cita o exemplo do recém-criado Southern Ocean Observing System (SOOS), rede multidisciplinar que busca fazer observações do oceano Antártico capazes de abastecer linhas de pesquisa sobre as mudanças climáticas, o aumento do nível do mar e o impacto do aquecimento global sobre os ecossistemas marinhos. “Ele não é realizável por um só país”, diz. Ilana lembra que os estudos sobre processos climáticos em escala local estão na fronteira do conhecimento e que os modelos computacionais têm dificuldade de simular os processos de interação entre o clima na Antártida e no hemisfério Sul. Num exemplo de pesquisa que pode ajudar a abastecer esses modelos, o grupo de Ilana, em associação com pesquisadores do Rio de Janeiro e da França, chegou à conclusão de que o aumento do buraco na camada de ozônio sobre a Antártida, nos anos 1980, gerou mudança no regime dos ventos no continente gelado com fôlego para alterar a temperatura da superfície do mar na Bahia. “Constatamos uma relação de causa e efeito entre a diminuição dos corais e o aumento do buraco de ozônio. O buraco aumentou a diferença de temperatura entre a Antártida e os trópicos, intensificou o vento, e houve decréscimo de corais na Bahia. Apesar de o buraco ter diminuído, não é certo que a situação dos corais tenha melhorado. Os efeitos do aquecimento global podem ter compensado, apesar de os ventos terem voltado ao normal.”

Nos últimos dois anos Rocha-Campos, da USP, também apelou à cooperação internacional para levar adiante suas pesquisas. Ele conta com a retaguarda de uma base argentina – aproveitando que sua pesquisa é feita em parceria com o Instituto Antártico Argentino. “Já coletamos as amostras de rocha na ilha Rei George, não muito distante da estação brasileira em outras ocasiões. Para a pesquisa avançar, é preciso visitar outros lugares”, diz o professor. Um grupo de pesquisadores sob sua liderança identificou recentemente uma estrutura glacial fundamental para esclarecer a história paleoclimática da Antártida durante o período Mioceno (há cerca de 15 milhões de anos). A estrutura – denominada pavimento de clastos glacial – comprova ter havido um período de expansão do manto de gelo da Antártida Ocidental.  Rocha-Campos articula-se com outros pesquisadores brasileiros para obter financiamento a fim de que o Brasil participe do programa Antarctic Drilling (Andrill), consórcio internacional que vem realizando sondagens geológicas na margem continental antártica. “Se conseguirmos recursos para participar, estaremos no mainstream da pesquisa geológica na Antártida”, afirma.

Situada na ilha do Rei George, na parte mais quente do continente antártico, a Estação Comandante Ferraz garantia fácil acesso para os dois navios brasileiros – não por acaso, vários outros países instalaram bases naquela região. Fica numa baía ampla, com praias largas, o que favorece a logística e reduz custos, mas era capaz de dar apoio a um conjunto restrito de pesquisas, por exemplo, no campo da biologia marinha, o mais comprometido pelo incêndio. Composta por mais de 60 módulos interligados, foi crescendo ao longo do tempo até assumir as feições de uma vila à beira-mar. No inverno, um número menor de pesquisadores permanecia na base. Nessa fase, o acesso não era mais feito pelos navios – que só vão ao continente entre outubro e abril –, mas por aviões da FAB. “O local é ideal também porque tem dois lagos que são fonte de água”, diz Rosalinda Montone, da USP, que esteve na Antártida 17 vezes.

© FABIO MELO FONTES
A inauguração da estação brasileira,
em 1984: pesquisadores viajavam
a convite da Marinha
A tragédia interrompeu 40% das pesquisas brasileiras na Antártida – sinal de que a presença científica do país no continente já não dependia exclusivamente da estrutura gerenciada pela Marinha. De um lado, módulos de coleta de dados situados a uma distância entre 300 metros e 1 quilômetro da base incendiada foram poupados. De outro, vinha avançando o número de pesquisas que não eram realizadas na estação. A viagem de Jefferson Cardia Simões ao polo Sul geográfico, no final de 2004, onde colheu testemunhos (cilindros) de gelo, dependeu de um esquema logístico que envolveu viagens em aviões chilenos e o aluguel de trator polar em parceria com outros pesquisadores – ao largo do esquema da Marinha. Em janeiro, uma equipe liderada por Heitor Evangelista, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e Jefferson Simões instalou o Criosfera I, primeiro módulo científico brasileiro no interior do continente antártico para obtenção de dados climáticos, localizado 2,5 mil quilômetros ao sul da estação.

Expedição em 1982

A história do financiamento à pesquisa brasileira na Antártida teve várias fases. O Brasil aderiu em 1975 ao Tratado da Antártida, que destina o continente a atividades pacíficas, em especial a pesquisa científica, e realizou sua primeira expedição até lá em 1982. Com o advento do Proantar e a inauguração em 1984 da Estação Comandante Ferraz, era a própria Marinha, por meio da Comissão Interministerial de Recursos do Mar (CIRM), quem convidava pesquisadores a trabalhar na região. “O programa de pesquisa era feito sob a demanda do CIRM, que convidava instituições e também buscava induzir pesquisas em determinadas áreas”, lembra Ronald Buss de Souza. É dessa época que instituições como o INPE, os institutos Oceanográfico e de Geociências da USP incorporaram-se ao esforço de pesquisa – o navio oceanográfico Comandante W. Besnard, da USP, fez seis viagens à Antártida nos anos 1980, servindo de apoio aos pesquisadores juntamente com o Barão de Tefé, da Marinha. O segundo momento do Proantar veio em 1991, quando a Marinha resolveu desincumbir-se de fomentar pesquisas e ateve-se apenas à logística das viagens e da base. O CNPq passou a cuidar das pesquisas. “Já existia massa crítica para disputar editais e o CNPq passou a avaliar os projetos por critérios de produtividade científica”, afirma Souza. Não foi um período fácil. “A noiva era bonita mas veio sem dote”, diz o professor Rocha-Campos. Os recursos do CNPq eram limitados e causou alívio, num terceiro momento, o ingresso do Ministério do Meio Ambiente no Proantar – por determinação de um protocolo assinado pelo Brasil, as pesquisas passaram a ser monitoradas para reduzir seu impacto ambiental.

No quarto momento, esse mais recente, o CNPq passou a lançar editais para selecionar projetos e dois dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, redes virtuais de excelência mantidas pelo CNPq e pelas fundações estaduais de amparo à pesquisa, foram criados para se dedicar a pesquisas na Antártida. Ao longo do tempo, novos grupos de pesquisa foram organizados, com destaque principalmente para o Rio Grande do Sul. “Ao contrário do que ocorria nos anos 1980, quando os cientistas faziam concessões em suas linhas de investigação para incluir a Antártida, hoje já há uma geração de cientistas dedicada à pesquisa no continente, e essa massa crítica pressiona por mais recursos e oportunidade de realizar seus estudos”, diz Jefferson Simões.

© MARIA ROSA PEDREIRO / UFPR
A estação em chamas: duas pessoas mortas
e reconstrução prevista para 2016
Os países que mais investem em pesquisa antártica são os Estados Unidos, o Reino Unido, o Japão e a Alemanha. “Formam o primeiro pelotão de pesquisa, alguns com estações em diferentes pontos da Antártida e navios quebra-gelos capazes de atingi-las”, diz Jef-ferson Simões. Num segundo pelotão vêm países como a China e a Índia, que multiplicaram seus investimentos na região recentemente, além da França, da Noruega e da Rússia. O Brasil, com o crescimento dos grupos de pesquisa nos últimos anos, estaria num terceiro pelotão, com ambições de ascender ao segundo. “Estamos melhores do que Argentina e Chile, nossos vizinhos da América do Sul que têm presença mais antiga e ostensiva no continente”, diz o professor Rocha-Campos.

Para Ronald Buss de Souza, do INPE, já passou o tempo de o Brasil criar um instituto de pesquisas antárticas, como os que existem em vários países com bases na região. Ele também considera que a liderança da Marinha é um calcanhar de aquiles do Proantar. “Os países desenvolvidos criaram institutos de pesquisa antártica de caráter civil, que administram estações e navios de pesquisa. No Brasil, e também em países que têm interesses territoriais na Antártida como Chile e Argentina, são os militares que administram as bases”, afirma. “O chefe da estação brasileira sempre foi um oficial da Marinha. O pesquisador trabalhando na Antártida tem de pedir autorização ao oficial para trabalhar fora da estação – se ele não permitir, nada acontece. O oficial só vai recusar se tiver um motivo. Mas ele pode criar embaraços para não ter de acompanhar o pesquisador numa missão espinhosa”, explica. Ele reclama que o Brasil não compreendeu a importância da Antártida. “Nossa pesquisa sobre clima focalizou a influência da Amazônia, mas 60% do nosso território está mais sujeito à influência da Antártida”, diz.

No curto prazo, o desafio é garantir a manutenção das pesquisas enquanto uma nova estação não é construída. Manter um dos navios brasileiros docado próximo à estação durante o verão é uma das alternativas para dar suporte aos pesquisadores. “O aluguel de um terceiro navio também está sendo cogitado”, diz Rosalinda Montone. Procurar colaborações que permitam o uso de estações de outros países é outra opção. Uma concorrência internacional definirá o formato da nova estação. Ela deve partir do desenho da Estação Juan Carlos, da Espanha, que não tem módulos contíguos, impedindo a propagação de fogo. O projeto, disse o comandante da Marinha Júlio Soares de Moura Neto, levará em conta as sugestões dos pesquisadores. “A razão de estarmos na Antártida é a pesquisa. A participação dos pesquisadores é extremamente bem-vinda”, disse Moura Neto, segundo a Agência Brasil.


Fonte: Revista Pesquisa FAPESP - Edição 194 - Abril 2012

Comentário: Aproveitamos para agradecer publicamente ao leitor José Ildefonso pelo envio dessa matéria. 

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