50 Anos da Declaração da ONU Que Originou o Tratado do Espaço
Olá leitor!
Segue abaixo mais um artigo escrito pelo Sr. José
Monserrat Filho e postada hoje (10/09)
no site da Agência Espacial Brasileira (AEB).
Duda Falcão
50 Anos da Declaração da ONU Que
Originou o Tratado do Espaço
José Monserrat Filho *
O Tratado do Espaço¹, de 1967,
definido como “a Carta Magna do Espaço” e o “Código Maior das Atividades
Espaciais”, é um dos acordos multilaterais mais apoiados pela comunidade
internacional. O peso desse apoio aproxima-o da Carta das Nações Unidas, de
1945, cuja universalidade é imbatível. Ratificado por 102 países e assinado por
26, o Tratado do Espaço goza de singular autoridade. Além disso, é reconhecido
e aceito por todos os demais países. Ao longo de seus 46 anos de vigência,
nenhum de tais países jamais se manifestou contra qualquer de seus princípios e
normas. Logo, é também um sólido costume internacional.
Aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 19 de
dezembro de 1966 e lançado à assinatura dos países em 27 de janeiro de 1967, o
Tratado do Espaço entrou em vigor em 10 de outubro daquele mesmo ano. Seis dias
antes, em 4 de outubro, comemoraram-se os primeiros dez anos da Era Espacial,
inaugurada em 1957 pelo primeiro satélite feito pelo gênio humano, o Sputnik I,
lançado pela ex-União Soviética.
O Tratado do Espaço foi
criado em apenas três anos, de 1964 a 1966, em plena Guerra Fria.
Isso mostra que, quando há vontade política, obstáculos aparentemente
intransponíveis podem ser vencidos e acordos de suma complexidade podem ser
discutidos, elaborados e aprovados em relativamente pouco tempo. Especialmente
no caso desse tratado histórico, vários dos princípios básicos do qual foram
sendo construídos em cinco resoluções aprovadas pela Assembleia Geral das
Nações Unidas nos cinco anos anteriores, de 1959 a 1963. E cujo trabalho de
criação teve o privilégio de contar com a direção lúcida, paciente, estimulante
e segura do notável internacionalista polonês Manfred Lachs², que, à época, presidia o
Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (COPUOS, na
sigla em inglês). Daí o comentário, então surgido, de que o direito espacial
internacional nasceu em “velocidade cósmica”.
Vejamos a evolução das ideias e princípios que conduziram
à aprovação da “Declaração dos Princípios
Jurídicos Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço
Exterior”, em 1963, e à adoção do Tratado do Espaço, em 1967,
respectivamente, seis anos e dez anos após o Sputnik I.
A Resolução 1348, de
13/12/1958, reconhece “o interesse comum da
humanidade no espaço exterior e o objetivo comum de uso desse espaço unicamente
para fins pacíficos”; leva em conta o princípio da igualdade soberana de todos os
membros das Nações Unidas (Art. 2º, § 1º, da Carta); almeja que “as rivalidades nacionais atuais não se
estendam a esse novo campo”; deseja “estimular energicamente exploração e
explotação do espaço exterior em benefício da humanidade”;
reconhece “a grande importância da cooperação
internacional no estudo e aproveitamento do espaço exterior para fins
pacíficos”; considera que “a
cooperação contribuirá para desenvolver a compreensão mútua e fortalecer as
relações amistosas entre os povos”; acredita que “todo o progresso esta matéria
(desenvolvimento dos programas de cooperação internacional e científica
relacionados com o espaço exterior) contribuirá apreciavelmente para alcançar o
objetivo de uso do espaço exterior exclusivamente para fins pacíficos”;
entre outras considerações.
A Resolução 1472, de
12/12/1959, estima que “o espaço exterior deve ser
explorado e utilizado somente em benefício da humanidade e em proveito dos
Estados qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e
científico” e cria o “Comitê para o Uso
Pacífico do Espaço Exterior” (COPUOS),
com os objetivos de “estudar as medidas práticas
e possíveis para promover programas de uso do espaço exterior para fins
pacíficos”, inclusive a “organização de intercâmbio e
difusão de informações sobre as pesquisas a respeito do espaço exterior”,
bem como de “estudar a natureza dos problemas jurídicos que
possam ser levantados pela exploração do espaço exterior”.
A Resolução 1721, de
20/12/1961, recomenda que, “na exploração e uso do
espaço exterior, os Estados se guiem pelos seguintes princípios”:
a) “O direito internacional, incluída a Carta das
Nações Unidas, aplica-se ao espaço exterior e aos corpos celestes”;
e “o espaço exterior e os corpos celestes poderão
ser livremente explorados e utilizados por todos os Estados, em conformidade
com o Direito internacional, e não poderão ser objeto de aprovação nacional”;
pede aos Estados que informem ao COPUOS, através do Secretário Geral das Nações
Unidas, sobre seus lançamentos para voos orbitais; e ao Secretário Geral que
crie um registro público com as informações prestadas
pelos Estados sobre seus lançamentos espaciais.
A Resolução 1802, de
14/12/1962, enfatiza a necessidade do
desenvolvimento progressivo do direito internacional na elaboração mais
detalhada dos princípios jurídicos fundamentais que devem reger as atividades
dos Estados na exploração e uso do espaço exterior; a responsabilidade por
acidentes causados por veículos espaciais; e a prestação de ajuda a astronautas
e veículos espaciais e sua devolução, e outros problemas jurídicos;
e encaminha ao COPUOS os diversos projetos já apresentados sobre essas
questões.
Por fim, a Resolução 1962, 13/12/1963,
aprovou por unanimidade, a “Declaração dos Princípios
Jurídicos Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço
Exterior”, que consolida tudo o que fora até então acordado por
consenso. Influência positiva sobre sua aprovação exerceu a adoção, em
05/08/1963, do Tratado de Proscrição das Experiências com Armas Nucleares na
Atmosfera, no espaço Exterior e sob a Água.
Base para a elaboração do Tratado do Espaço, essa
declaração comemora 50 anos, em 2013. Embora não obrigatória, ela é o primeira
sistema de normas para as atividades espaciais. E deixa claro que, no início
dos anos 60, “a comunidade internacional desejava submeter o uso futuro do
universo não habitado, não assentado e desconhecido a regras legais feitas
pelos humanos, pelo menos no que diz respeito a suas atividades”.³
Eis a Íntegra da Declaração:
“A Assembleia Geral:
– inspirada nas grandiosas perspectivas que a descoberta
do espaço exterior pelos humanos oferece à humanidade;
– reconhecendo o interesse que apresenta para toda a
humanidade o progresso da exploração e uso do espaço exterior para fins
pacíficos;
– julgando que a exploração e o uso do espaço exterior
deveriam efetuar-se para o bem de todos os povos, qualquer que seja o estágio
de seu desenvolvimento econômico e científico;
– desejosos de contribuir para o desenvolvimento de ampla
cooperação internacional no que concerne aos aspectos científicos e jurídicos
da exploração e uso do espaço exterior para fins pacíficos;
– julgando que esta cooperação contribuirá para
desenvolver a compreensão e para consolidar as relações de amizade entre os
Estados e os povos;
– recordando sua Resolução 110 (II), de 3 de novembro de
1947, que condena a propaganda destinada a ou suscetível de provocar ou
encorajar qualquer ameaça à paz, ruptura de paz ou qualquer ato de agressão, e
considerando que a referida Resolução é aplicável ao espaço exterior;
– considerando suas Resoluções 1721 (XVI), de 20 de
dezembro de 1961, e 1802 (XVIII), de 14 de dezembro de 1962, aprovadas por
unanimidade pelos Estados-Membros da Organização das Nações Unidas, proclama
solenemente que, na exploração e uso do espaço exterior, os Estados se regerão
pelos seguintes princípios:
1 – A exploração e o uso do espaço exterior serão
realizados em benefício e no interesse de toda a humanidade.
2 – O espaço exterior e os corpos celestes estão abertos
à exploração e uso por todos os Estados, na base da igualdade e de acordo com o
Direito Internacional.
3 – O espaço exterior e os corpos celestes não poderão
ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou
ocupação, nem por qualquer outro meio.
4 – As atividades dos Estados relativas à exploração e
uso do espaço exterior deverão efetuar-se em conformidade com o Direito
Internacional, inclusive a Carta da Organização das Nações Unidas, com a
finalidade de manter a paz e a segurança internacionais e de favorecer a
cooperação e a compreensão internacionais.
5 – Os Estados têm a responsabilidade internacional sobre
as atividades nacionais realizadas no espaço exterior, sejam elas exercidas por
organismos governamentais ou por entidades não- governamentais, e de zelar para
que as atividades nacionais sejam efetuadas de acordo com as disposições
enunciadas na presente Declaração. As atividades das entidades
não-governamentais no espaço exterior devem ser objeto de autorização e de
vigilância permanente do respectivo Estado. Em caso de atividades realizadas no
espaço exterior por uma organização internacional, a responsabilidade pelo
cumprimento dos princípios expressos nesta Declaração caberá a esta organização
internacional e aos Estados que dela participem.
6 – Na exploração e uso do espaço exterior, os Estados
deverão guiar-se pelo princípio da cooperação e da assistência mútua e
exercerão todas as suas atividades no espaço exterior, levando devidamente em
conta os interesses correspondentes dos demais Estados. Se um Estado tiver
razões para crer que uma atividade ou experiência espacial, planejada por ele
ou por seus nacionais, possa provocar interferência prejudicial às atividades
de outros Estados na exploração e uso pacífico do espaço exterior, deverá
promover as consultas internacionais adequadas antes de empreender a referida
atividade ou experiência. Qualquer Estado que tenha razões para crer que uma
atividade ou experiência espacial, planejada por outro Estado, possa provocar
interferência potencialmente prejudicial às atividades de exploração e uso
pacífico do espaço exterior, pode exigir a realização de consultas sobre tal
atividade ou experiência.
7 – O Estado, em cujo registro figure o objeto lançado ao
espaço exterior, conservará sob sua jurisdição e controle o referido objeto e
todo o pessoal do mesmo objeto, enquanto se encontrarem no espaço exterior. A
propriedade dos objetos lançados ao espaço exterior e de seus componentes não é
afetada por sua passagem pelo espaço exterior ou seu retorno à Terra. Estes
objetos e suas partes componentes encontrados além dos limites do Estado, em
cujo registro estão inscritos, deverão ser restituídos a tal Estado, que, a
pedido, fornecerá seus dados de identificação antes da restituição.
8 – Cada Estado que efetue ou mande efetuar o lançamento
de um objeto ao espaço exterior, e cada Estado, de cujo território ou base é
efetuado o lançamento do objeto, é responsável internacionalmente pelos danos
causados por tal objeto a outro Estado ou a suas pessoas físicas ou jurídicas,
na Terra ou no espaço exterior.
9 – Os Estados considerarão os astronautas como enviados
da humanidade ao espaço exterior e lhes prestarão toda assistência possível em
caso de acidente, perigo ou aterrissagem forçada no território de outro Estado
ou em alto-mar. Os astronautas que fizerem tal aterrissagem serão devolvidos
com segurança e sem demora ao Estado de registro de seu veículo espacial.”
O grande problema atual dessa
declaração e do Tratado do Espaço, que ela originou, é que eles
expressam o melhor ordenamento possível para as primeiras décadas da Era
Espacial. Hoje, porém, a situação é bem outra. Em pleno século XXI, as
atividades espaciais se tornaram indispensáveis a todos os países e povos, o avanço
tecnológico é vertiginoso, as atividades espaciais se ampliam e diversificam, o
número de atores espaciais segue aumentando, cresce o perigo de rivalidades e
conflitos com o uso militar do espaço cada vez mais alarmante. As armas
espaciais se aperfeiçoam sem cessar. Há sinais de uma nova guerra fria. A
sustentabilidade das órbitas mais utilizadas está em cheque.
Por tudo isso, urge atualizar e assegurar maior eficácia
ao Tratado do Espaço, sobretudo diante das tentativas de substituí-lo por um
código de conduta de caráter apenas voluntário, não vinculante, não aprovado
nem discutido pelas Nações Unidas e, portanto, sem o reconhecimento universal
imprescindível. Isso só vem debilitar o Tratado do Espaço, quando, mais que
nunca, é preciso justamente o contrário, isto é, fortalecer e ampliar os seus
princípios fundamentais, para enfrentar os agudos problemas do nosso tempo,
tanto lá em cima quanto aqui em baixo.
Nesta hora, nada mais justo do que reverenciar a
Declaração de 1963 e o Tratado do Espaço de 1967 como patrimônios jurídicos,
políticos e culturais inapagáveis, que apontam o caminho do Estado de Direito e
da cooperação lúcida e responsável – hoje perigosamente negligenciados.
* Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da
Agência Espacial Brasileira (AEB), Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de
Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto
Internacional de Direito Espacial e Membro Pleno da Academia Internacional de
Astronáutica (IAA).
Referências
1) Nome completo: “Tratado sobre Princípios Reguladores
das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço exterior, Inclusive a
Lua e Demais Corpos Celestes”.
2) Manfred Lachs (1914-1993) foi juiz da Corte
Internacional de Justiça (Haia, Países Baixos) durante 26 anos, de 1967 a 1993,
e presidiu este que é o principal órgão judiciário das Nações Unidas, de 1973
to 1976.
3)
Cologne Commentary on Space Law (CoCoSL), Volume 1, Outer Space Treaty, Hobe,
Schmidt-Tedd – Schrogl (Editors) and Goh (Assistant Editor); Deutschland: Carl
Heymanns Verlag, 2009, pp. 12-13.
Fonte: Agência Espacial Brasileira
(AEB)
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