O radar da discórdia (Parte I)

Olá, leitor!


A Agência Espacial Brasileira (AEB) publicou no seu site, ainda sem referenciar dia ou horário nas suas postagens, uma notícia (aqui), no melhor estilo "panos quentes", para tentar amenizar o clima que esquentou recentemente entre os resistentes "Defensores Jurássicos Unidos", do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), e o pessoal do "Quero um radar para chamar de meu", do Ministério da Defesa (MD).

Essa briga envolvendo radar não é por causa de multas por excesso de velocidade, muito pelo contrário, é fruto de anos e anos de letargia do Programa Espacial Brasileiro (PEB) e de TODOS os seus atores, quanto a demanda nacional reprimida em sensoriamento remoto / imageamento por satélite radar.

Na nota "AEB trabalha para viabilizar projetos de satélites com tecnologia SAR", a autarquia federal tenta apaziguar os últimos episódios da novela mexicana o "Radar da discórdia", mostrando que existem várias possibilidades de se suprir a notória e patente deficiência do Brasil em imagens por sensoriamento radar, seja pela aquisição de imagens de empresas fornecedoras desses serviços ou pela aquisição de satélites SAR no mercado internacional ou pelo desenvolvimento nacional de um dispositivo dessa natureza.

De um modo geral, a nota da AEB foi razoavelmente precisa e bastante concisa, trazendo um pouco de razão ao enredo de dramalhão que estava tomando conta da discussão.

O Brazilian Space chegou a solicitar informações mais específicas para os órgãos de comunicação do MD, mas não obteve resposta. Creio que o MD acreditou contemplar a todos com a nota de esclarecimento publicada no seu site e por isso nem respondeu o nosso e-mail.

E-mail de solicitação de esclarecimentos
Imagem: Autor (2020)

Mas antes de falarmos mais da nota da AEB, vamos entender a questão.

O começo

Tudo isso começou quando, a cerca de uma semana, alguns veículos de comunicação divulgaram a notícia de que o MD estaria adquirindo, via dispensa de licitação, um microssatélite (menos de 100kg de massa, se quiser saber mais sobre classificação de satélites por massa e tamanho leia aqui) satélite radar de abertura sintética (SAR - Synthetic Aperture Radar), para ser operado pelo Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), vinculado ao MD (veja a informação mais detalhada no portal da transparência aqui).

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Detalhamento do Emprenho - Despesa com Aquisição de Microssatélite
Imagem: Portal da Transparência em http://www.portaldatransparencia.gov.br/despesas/empenho/110511000012020NE000095?ordenarPor=fase&direcao=desc


Se você ainda não viu nada desse assunto, veja abaixo algumas das notícias veiculadas no período:

Lendo as notícias acima, percebe-se claramente a atuação mais politica do que técnica, colocando o Inpe como a vítima indefesa e inocente de um processo de esvaziamento e de desprestígio por parte do Governo.

Na tentativa de "defender" o Inpe foram alegados diversos motivos (pretensamente) técnicos e respaldados em opinativos de especialistas "imparciais", mas, em verdade, totalmente contaminados por outros fatos anteriores (que não vamos discutir aqui), tais como: O atrito do Inpe com o Governo com relação aos dados de queimadas e desmatamento da Amazônia do ano passado; A demissão do ex-diretor do Inpe; A nomeação de um militar (da reserva, mas mobilizável) que gerou um sentimento de intervenção no instituto; A retirada da coordenadora da área de monitoramento do Inpe, sem justo motivo; O anúncio da AEB de cortes orçamentais da área de pesquisa do Inpe para 2021; entre outros problemas.

Infelizmente, todos os opinativos se deixaram macular por esses fatores elencados acima e, de certo modo, se tornaram passionais e parciais, sem foco nas questões mais objetivas e técnicas que a questão exige. Dessa maneira, pelo fato das análises das matérias terem sido feitas sob essas condições, na maioria, por mídia não especializada no setor espacial, além de tornar o discurso extremamente panfletário, desviaram e esconderam dos leitores a parcela de culpa do Inpe e do grande lobby que domina o instituto há mais de 30 anos,  os quais contribuíram para o presente impasse, como veremos mais a frente.

Em resposta a isso, devido a repercussão negativa somada a outros fatos anteriores, o MD emitiu uma nota de esclarecimento básica que, se por um lado não enfrentou a questão diretamente, também não pôs mais "lenha na fogueira", o que foi bom e prudente:

Então leitor, vem as perguntas básicas: Por que adquirir um satélite SAR? Para que o Brasil precisa de um Satélite SAR?

Satélites Radar (de Abertura Sintética): Características e a carência do Brasil nessa tecnologia

Como todos sabem e os nossos governantes e gestores falam de boa cheia, desde a época do império: O Brasil é uma país continental. Por isso, o monitoramento do País precisa de recursos que cubram essa extensão toda, quer seja para o estudo, acompanhamento e proteção de recurso nacionais, quer para a segurança e defesa nacional, no território, no mar e no ar.

Para enfrentar essa árdua tarefa os satélites de sensoriamento remoto (SR) são instrumentos que cobrem grandes extensões e funcionam 7  dias por semana (muitas vezes 24 horas por dia, a depender da tecnologia). 

Sensoriamento Remoto (SR)
Imagem: Spatialli Solution, adaptado (2017)

Não vamos fazer aqui um curso de SR, mas, simplificando, os satélites de sensoriamento por instrumentos ópticos são, de um modo geral, limitados em sua atuação por fatores como a variação da luminosidade do sol no solo e por cobertura de nuvens, entre outros, haja vista que seus instrumentos são captores passivos dos diversos espectros de luz visível e próximos do visível.

Espectro eletromagnético. Ilustração: Peter Hermes Furian / Shutterstock.com
Espectro eletromagnético.
Imagem: Peter Hermes Furian / Shutterstock.com

Por sua vez, ao contrários dos satélites ópticos, os satélites radar emitem (micro)ondas em direção ao solo e não dependem de outras fontes de emissão de luz para obter os sinais refletidos no solo, podendo operar em dias nublados ou mesmo a noite. Para não me estender mais, deixo aqui um pre-print de um artigo excelente sobre satélites radar SAR (Paek, S. W.  Synthetic Aperture Radar, 2020).

Aliás, o artigo acima refuta muitas das alegações feitas pelos "Defensores Jurássicos Unidos". Não deixe de ler.

Portanto, fica claro que, em um país tropical como o Brasil, normalmente coberto por grandes extensões de nuvens (ou fumaça) durante todo o ano, o uso somente de satélites ópticos não atende a todas as necessidades do País, em qualquer tempo e horário. Além das ambientais, demandas de outras naturezas também precisam ser contempladas, tais como: acompanhamento de volume de reservatórios de água, depósitos minerais, movimentação do solo, defesa e segurança, etc..

Ainda que de forma blasé, essa demanda nacional reprimida por imageamento radar foi relembrada na nota da AEB citando o estudo apresentado pela Agência em 2018. No entanto, em 2017 (quando ainda pertencia aos quadros da referida autarquia), mesmo com resultados preliminares, já havia destacado tal necessidade em uma nota técnica (AEB, 2017 – Nota Técnica n 42/DSAD/2017), cuja análise fora demanda pela Diretoria de Satélites da AEB (Obs: Provavelmente essa Nota Técnica deve ter tido o mesmo destino que o Relatório da Mancha Criminal do Asp Matias do filme "Tropa de Elite" ).

Em 2018, já não mais nos quadros da Agência, reescrevi a referida nota técnica como um artigo científico (aqui), o qual apresentei no I Congresso Aeroespacial Brasileiro (I CAB), no qual destaco os resultados parciais de uma breve amostragem da demanda governamental brasileira para sensoriamento remoto, fruto de um estudo da DPEI / AEB com 20 órgãos, onde temos os seguintes itens avaliados quantitativamente (Obs: cada órgão podia listar como resposta mais de um item, por isso o somatório não fecha em 20):

1) Potenciais benefícios / programas/processos beneficiados e como utilizam imagens de sensoriamento remoto?
 
Repostas e quantitativos do item 1
Imagem: Autor (2017)

 2) Frequência necessária de atualização imagens / dados
 

3) Gastos a serem evitados com a disponibilização de imagens / dados 
 

 

4) Vantagens e desvantagens das imagens / dados com os satélites da época 
 
  

5) Demandas reprimidas 
 

Com a amostragem acima (além do estudo completo apresentado pela AEB) e conhecendo as limitações dos satélites nacionais e internacionais que fornecem imagens para os entes governamentais, destacam-se expressivamente, a  demanda nacional reprimida por imagens de radar e de alta resolução, com frequência de atualização de mensal a anual, tendo como principal objetivo a redução de custos com a aquisição de imagens.

Então se o satélite radar complementa as capacidades dos satélites ópticos e se o Brasil precisa de imagens radar, por que o Brasil nunca desenvolveu um SAR?

Como são 3 da manhã e essa história é longa, fico por aqui leitor e continuamos na Parte II.

Saudações,

Rui Botelho
(Brazilian Space)


Comentários

  1. Relevante informação blog, estive acompanhando o desenrolar dessa história desde o começo e não sabia dessas características do novo satélite, há então porquê adquirir um novo satélite para monitoramento, além do desprestígio do INPE com o governo.
    Precisamos limpar nossas instituições de toda e qualquer forma de ideologia, mesmo que não seja possível 100%. As decisões governamentais não podem ser tomadas com base em desejos pessoais ou de grupos em qualquer esfera e em qualquer instituição.

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  2. O grupo CEFAB parabeniza o nosso Consultor Técnico, por essa excelente matéria! Existe três coisas que não podem ser escondidas por muito tempo e suas fases: O sol, a lua e a VERDADE dos fatos, isso, quando são devidamente esclarecidos por pessoas gabaritadas e de fé pública. Eu desconfio de todos que se dizem "IDEALISTAS", dentro do seio governamental, que lucram com seu ideal.

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  3. Olá Prof Rui!

    Endosso as palavras do Diego e do Cássio. Parabéns por esse primeiro artigo sobre este interessante e crucial assunto para as atividades espaciais do país.

    Abs

    Duda Falcão

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  4. talvez seja interessante embarcar esses radares em balões, principalmente na amazônia, tanto motorizados como fixos, o que o sr. acha prof. Rui.?

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    1. Olá, Luiz Chaves!

      Hoje em dia, existem diversos tipos de plataformas para transportar um payload radar, além dos satélites (aeronaves tripuladas, vants, balões). O que deve ser considerado nisso, antes de tudo, é a missão, a necessidades que vai ser suprida, e o custo (ou mesmo o payback ou ROI). A missão vai determinar a precisão do radar, a revisita, a área a ser imageada por vez (swatch) entre outros fatores, e estes requisitos vão influenciar nos custos.
      No caso dos balões, teoricamente seria possível, desde que fosse garantido o apontamento e controle de voo do mesmo. Além disso, balões estratosféricos (High-altitude platform station or High-Altitude Pseudo-Satellite - HAPS), ainda que voem muito alto (até a 53km), não cobertura global como um satélite e ficam limitados a atender uma região muito específica. Outra limitação dos balões é a capacidade de carga útil, quando comparado com os satélites. Uma vantagem dessas plataforma é a qualidade do imageamento, o menor custo e a capacidade de recuperação e atualização.
      O que vai determinar a vantagem ou não é a missão, mas é bom contarmos com a mente aberta para não (sub ou super) dimensionarmos os requisitos da missão e utilizarmos a solução não tão adequada ao problema.
      Abraço e obrigado por participar do BS!

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  5. caramba !!! esses subsídios que Sr trás são enriquecedores demais, vi algumas vezes que a NASA utiliza muito balões para em varias missões testar equipamentos e tecnologia aplicáveis e funcionais, o que evidentemente deve encurtar e baratear muito várias missões, visto que em geral esses balões são plenamente reutilizáveis e de mais modesta confecção; sem querer pedir demais e já pedindo, esses balões foram utilizados para segurança e controle na copa do mundo aqui no País , o Sr saberia nos esclarecer se eles prestariam para comunicação em geral e sobretudo internet a um custo viável em nossas regiões remotas; o Sr com sua autoridade e respeito que possui poderia pedir a nossa empresa Altave que nos esclarecesse essas possibilidades ?
    MUITO MUITO obrigado mesmo por sua atenção !!!!!!?
    ;

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    1. Com certeza Luiz Chaves! A NASA e muitos outros entes de pesquisa usam balões como testbed para diverso tipos de payloads e subsistemas, justamente pelos motivos que você elencou.

      Não precisa do Sr., só Rui, por favor.

      Quanto a aplicabilidade para comunicação, essa pode ser realmente uma boa aplicação para os balões, mas, de um modo geral, elas necessitam de balões com certo nível de dirigibilidade para poder mantê-los dentro de uma região e servirem como relay. A Google estava com um projeto desses, para levar internet para lugares remotos, o qual, sinceramente, parei de acompanhar há um bom tempo e não saberia dizer, de "bate-pronto", como está atualmente.

      Não tem esse negócio de autoridade não Luiz.

      Sobre essa questão da empresa, me mande um e-mail pra o brazilianspace@gmail.com explicando melhor o que você está pensando e a gente conversa, tá ok?

      Estou à disposição!

      Abraço

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  6. vou elaborar melhor sim, vi que nós temos duas empresas de balões no Brasil, bem grandes já, Air ship e Altave
    ;; mas basicamente a idéia que me vem é se tecnicamente e economicamente seria viável uma Constelação de balões à grande altura fazendo esse papel Radar ou mesmo de internet, visto que pela altura que alcançam eles poderiam estabelecer um cone de foco bem amplo.
    Novamente, Muito obrigado Rui !!!!

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