Minúsculos, Mas de Peso
Segue abaixo um artigo publicado na “Revista Pesquisa
FAPESP” (edição 193) destacando que organismos invisíveis a olho nu demonstram
capacidade de resistir a viagens interplanetárias.
Duda Falcão
Ciência | Vida Extraterrestre
Minúsculos, Mas de Peso
Organismos invisíveis a olho nu demonstram
capacidade de resistir a viagens interplanetárias
Maria Guimarães
Edição Impressa 193
Março 2012
© Drüm
Eles sobrevivem a condições impensáveis para qualquer
outro terráqueo (veja no infográfico). Fazem seu lar em águas hipersalinas,
desertos tórridos, crateras de vulcões e nas geleiras antárticas. São seres
vivos que só se pode enxergar ao microscópio, mas gigantes naquilo que revelam
aos astrobiólogos como Claudia Lage, professora da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). “A estrutura genética de microrganismos como vírus,
bactérias e arqueias é tão diversificada que eles poderiam ter sido formados em
lugares muito diferentes do Universo”, afirma. A ideia tem raízes na
panspermia, hipótese que postula a origem da vida em múltiplos pontos do
Universo, não necessária e exclusivamente na Terra.
A super-heroína da área é a bactéria Deinococcus radiodurans, que
resiste a altas doses de radiação e se revelou, em simulações feitas em
aceleradores de partículas, capaz de suportar viagens pelo espaço pousada em
fragmentos de poeira (ver Pesquisa FAPESP nº 176).
Sem a proteção de uma nave espacial, o ambiente interplanetário não é lugar
para seres vivos: doses altíssimas de radiação ultravioleta e raios X, além de
bombardeios impiedosos de partículas aceleradas por explosões solares, tornam
impossível a existência de qualquer forma de vida.
Claudia e o biólogo Ivan Paulino Lima, também da UFRJ, em
parceria com pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Itália e do
Reino Unido, concluíram agora outro estudo mostrando que a Deinococcus atravessaria sem
grandes danos as partículas lançadas pelo vento solar, entre as quais os
prótons são as mais nocivas (saiba os lugares da Terra onde os microrganismos foram
encontrados). A resistência permitiria que essas bactérias, montadas
na poeira que está disseminada pelo Universo, viajassem espaço afora por
milhões de anos. Tempo suficiente para chegar de Marte à Terra, concluiu o
estudo publicado no final de 2011 na revista Astrobiology, a
partir de experimentos realizados em aceleradores de partículas na Itália e no
Reino Unido, que simularam as condições típicas de viagens interplanetárias com
irradiação de prótons, íons de carbono e elétrons no vácuo, para microrganismos
tanto viajando por conta própria como a bordo da poeira liberada de cometas ou
asteroides. O trabalho demonstrou que as energias mais baixas, características
dos ventos solares comuns, não têm nenhum efeito sobre as Deinococcus, mesmo que
desprotegidas. As explosões solares liberam energias maiores e mais letais,
mas, dependendo de sua intensidade, basta que a bactéria esteja aderida a
grãos, mesmo pequenos, para se proteger do bombardeio de partículas. “Essas
energias não são frequentes o suficiente para impedir que as bactérias
sobrevivam”, completa Ivan Paulino Lima, atualmente na Califórnia para um
pós-doutorado na agência espacial norte-americana (NASA).
Perigo no
Espaço
Uma constatação importante do estudo é que para esses
microrganismos as partículas espaciais não representam o maior obstáculo. A
poeira cósmica, portanto, é essencial não para proteger as bactérias dos
bombardeios de prótons, mas da radiação ultravioleta a que Deinococcus já revelou resistir.
“Estrelas são verdadeiras usinas de radiação”, afirma a pesquisadora. O estudo
mostrou que, ao fim de uma viagem interplanetária, a superbactéria teria tempo
de sobra para pousar na Terra, mesmo depois de passar pela vizinhança do nosso
Sol: de acordo com essas pesquisas, ela resistiria mais de um ano – pelo menos
420 dias – às doses de radiação ultravioleta típicas da órbita terrestre, mesmo
sem a proteção de uma atmosfera. O limite de tempo não foi definido pelo fôlego
atlético das potenciais viajantes extraterrestres, mas pelo período de que os
pesquisadores dispunham para os testes no Laboratório Nacional de Luz
Síncrotron (LNLS), acelerador de partículas em Campinas, no interior paulista.
É possível que elas possam resistir muito mais tempo.
Outro trabalho recente do grupo, igualmente publicado na Astrobiology, ampliou as
possibilidades de sobrevivência no espaço: mostrou que essa bactéria não seria
o único ser vivo a sobreviver nas inóspitas condições características das
regiões próximas a estrelas e planetas, ainda mais letais do que os bombardeios
na zona interplanetária. Duas outras espécies de microrganismos, Natrialba magadii e Haloferax volcanii, também aguentam
altas doses de radiação ultravioleta, embora menos intensas do que a suportada
pela campeã entre as bactérias. “Elas tentam emparelhar com a Deinococcus”, conta Claudia, “e
isso já impressiona; são doses muito elevadas de radiação”. É a primeira vez
que esse tipo de organismo – as arqueias, formas de vida que por muito tempo
foram confundidas com bactérias, mas na verdade são bem distintas do ponto de
vista genético e evolutivo – passa por uma simulação das condições
interplanetárias. Entre as duas arqueias testadas, N.
magadii surpreendeu resistindo até mais do que a Deinococcus ao tratamento
preparatório para os experimentos – alto vácuo e desidratação –, suficiente
para exterminar bactérias não extremófilas como a Escherichia
coli, onipresente no ambiente humano. Até certo nível de radiação,
os três microrganismos mostraram uma capacidade de sobrevivência semelhante.
Acima disso, N. magadii se saiu melhor; H. volcanii não resistiu, possivelmente
por já estar fragilizada pelo vácuo. Mas isso está muito longe de desanimar
Claudia. “Mesmo que a maior parte de uma amostra seja pulverizada pela
radiação, algumas arqueias resistem a altas doses de ultravioleta; talvez o
suficiente para que a espécie consiga colonizar outros planetas”, especula a
astrobióloga da UFRJ. “Na próxima simulação, vamos irradiá-las em condições
mais semelhantes às que existem na casinha natural delas”, planeja Claudia, que
justifica a relevância do teste: a poeira cósmica pode ser composta por
diversos elementos, entre eles sais como os silicatos ou carbonatos, que podem
conferir graus distintos de proteção.
O desempenho
das arqueias nessas situações-limite não é de todo inesperado, afinal muitas
espécies são reputadas como extremófilas, ou amantes de ambientes extremos, por
colonizarem todo tipo de ambiente pouco convidativo, como lagoas hipersalinas e
fumegantes crateras de vulcões. Mas para Claudia o resultado é importante pela
diferença profunda entre bactérias e arqueias. “As arqueias são um reino à
parte, considerado mais primitivo em relação às bactérias.” A descoberta
sugere, portanto, que formas ainda mais rudimentares de vida poderiam viajar e
colonizar diferentes recantos do Universo.
A membrana
celular é, segundo ela, essencial nessa defesa, por evitar que a radiação
atinja o mais importante, o material genético. E essa membrana é semelhante
entre as três espécies estudadas pelo grupo de Claudia, o que é inesperado por
ser atípica para bactérias como Deinococcus. No
caso das arqueias, mecanismos compensatórios na membrana impedem que elas
percam água mesmo no seu ambiente hipersalino. Os pesquisadores acham que isso
é o que protege as células da radiação, embora o envoltório celular de N. magadii ainda não tenha sido
estudado em detalhes. Mas além da membrana reforçada, a Deinococcus tem outro truque. Cada
bactéria é formada por quatro partes, como se tivesse começado uma divisão sem
completá-la, o que faz com que tenha cópias suplementares de seu genoma
completo, o que permite recuperar informações caso uma delas seja destruída.
Extremos
Terrestres
Na busca por
indícios de origens distintas da vida, os pesquisadores continuam vasculhando
ambientes onde só bactérias extremófilas podem existir, como no lago Vostok,
nas profundezas do subsolo antártico, perfurado em fevereiro por cientistas
russos. Uma das mais recentes descobertas em ambientes extremos deste planeta é
uma bactéria encontrada na Antártida e estudada por Amanda Bendia, uma aluna de
Claudia que defenderá sua dissertação de mestrado ainda este mês: submetida a
altas doses de ultravioleta, a bactéria ainda sem nome respondeu de forma
idêntica à Deinococcus. A corrida agora é para
descobrir sua identidade. Se for outra espécie de Deinococcus,
será a primeira integrante de um gênero adaptado a altíssimas temperaturas a
viver no gelo. Se for uma bactéria completamente distinta, será mais uma origem
independente da capacidade de enfrentar condições típicas do espaço sideral.
Duas possibilidades empolgantes.
Para além de
traçar as possibilidades de seres vivos em circulação pelo Universo (mesmo que
bem diferentes dos marcianos em naves espaciais dos filmes), pesquisas nessa
área têm também aplicações práticas: saber o que é necessário fazer para matar
essas superbactérias. “Antes de mandar uma sonda para Marte, é preciso
desenvolver processos de esterilização violentíssimos para não levar as
extremófilas para fora da Terra”, explica Claudia.
Essa história
deve ser ampliada nos próximos anos, quando entrar em plena atividade o
AstroLab, laboratório sediado em Valinhos, no interior paulista, especializado
em investigar possibilidades de vida fora da Terra. Um dos Institutos Nacionais
de Ciência e Tecnologia (INCTs) financiados pela FAPESP e pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o centro desde
janeiro começou análises de microcomunidades de ambientes extremos, como
geleiras e fundo do mar. “A grande vantagem é reunirmos todas as etapas num
único lugar, desde o armazenamento das amostras até as simulações espaciais”,
conta Douglas Galante, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências
Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), e um dos coordenadores do
novo centro de pesquisa – junto com Fabio Rodrigues e Rubens Duarte, ambos da
USP. Os equipamentos que permitirão simular condições extraterrestres estão,
neste momento, no navio a caminho do Brasil. Ele promete boas notícias em
breve.
Artigos
Científicos
1.
PAULINO-LIMA, I. G. et al. Survival of Deinococcus radiodurans against
laboratory-simulated solar wind charged particles. Astrobiology. v. 11, n. 9, p.
875-82. nov. 2011.
2. ABREVAYA,
X. C. et al. Comparative survival analysis of
Deinococcus radiodurans and the
haloarchaea Natrialba magadii and Haloferax volcanii, exposed to
vacuum ultraviolet radiation. Astrobiology.
v. 11, n. 10, p. 1.034-40. dez. 2011.
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP - Edição 193 - Março 2012
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