Conferência Mundial Para Discutir Governança Global do Espaço
Olá leitor!
Segue abaixo um
interessantíssimo artigo escrito pelo Sr. José Monserrat Filho publicado hoje (24/06) no site do “Jornal da
Ciência” da SBPC, dando destaque a convocação em curso para a criação de um
Grupo de Trabalho para preparar e convocar uma conferência internacional
destinada a discutir uma Governança Global do Espaço.
Duda Falcão
Notícias
Conferência Mundial Para Discutir
Governança Global do
Espaço
José Monserrat
Filho*
Jornal da Ciência
24/06/2015
A sociedade civil, a comunidade científica, os governos,
o setor privado e outros interessados em todo o planeta estão convocados a
considerar a criação de um Grupo de Trabalho para preparar e convocar uma
conferência internacional destinada a definir e acordar recomendações aos
governos e organizações internacionais relevantes a fim de estabelecer um
regime de governança global, pacífica e sustentável, para o estudo, o uso e a
exploração do espaço em benefício de toda a humanidade.
Quem convoca é a 2ª Conferência Internacional Manfred
Lachs¹ sobre Governança Global do
Espaço Exterior, promovida pela renomada Universidade McGill, de Montreal,
Canadá, de 29 a 31 de maio passado, por meio da Declaração de Montreal,
aprovada por consenso no evento. Participaram do evento mais de 120
especialistas - entre eles, a pernambucana Juliana Scavuzzi) - de 22 países,
que lidam com vários aspectos das atividades espaciais e seu ordenamento
jurídico.
Trata-se, claramente, de iniciativa inédita concebida
para mobilizar a opinião pública mundial no sentido de provocar o mais amplo
debate sobre ações e medidas a serem propostas a todos os Estados visando à
criação de um novo regime de governança global, pacífica e sustentável, das
atividades espaciais em benefício de toda a humanidade.
A Declaração de Montreal começa "reconhecendo que o
atual sistema de governança global do espaço, criado durante os anos 1960 e
1970, não foi exaustivamente examinado pela comunidade internacional desde a
sua criação". Essa afirmação, nada frequente, significa que, para todos os
participantes da conferência da Universidade McGill, sem exceção, a comunidade
de países não cuidou de assumir uma atitude realmente crítica frente aos
tratados, declarações e práticas relativos à governança global das atividades
espaciais, nas primeiras décadas da Era Espacial.
Assim, os Estados signatários dos tratados espaciais, por
exemplo, teriam se limitado a assiná-los e ratificá-los sem um exame mais
acurado de suas normas, que buscasse perceber nelas eventuais lacunas e
deficiências. Não por acaso, até hoje, nas sessões do Comitê das Nações Unidas
para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (COPUOS) e seus dois Subcomitês, o
Jurídico e o Científico e Técnico, algumas potências invariavelmente bloqueiam
as propostas de inclusão na agenda das reuniões de temas que impliquem discutir
mudanças e/ou atualizações dos tratados em vigor desde os anos 60 e 70.
A Declaração de Montreal adota um conceito bastante
abrangente de governança global, que compreende grande conjunto de variados
documentos, entre os quais códigos de conduta, medidas de fomento à confiança,
conceitos de segurança, instituições internacionais, tratados internacionais e
outros acordos, regulamentos, procedimentos e normas, procurando abarcar o
máximo possível de referências.
Leva em conta, também, o intenso desenvolvimento ocorrido
no mundo em geral e no setor espacial em particular, com sérias implicações
para as atividades espaciais atuais e futuras e para o uso pacífico e
sustentável do espaço, em benefício de toda a humanidade, ou seja, do interesse
público global pelo espaço.
E conclui haver chegado o momento de avaliar a eficiência
do atual regime de governança global do espaço e de propor um novo sistema
capaz de abordar os problemas atuais e emergentes.
A Declaração de Montreal ainda expressa a expectativa de
que a conferência internacional proposta seja realizada tão logo quanto
possível, e conclama o tradicional e prestigiado Instituto de Direito
Aeronáutico e Espacial da Universidade McGill a assumir a liderança do projeto,
promovendo um estudo preliminar interdisciplinar, que examine as forças
condutoras dos regulamentos e normas espaciais em vigor, estudo esse a ser
amplamente divulgado antes da conferência internacional e em apoio a ela,
tentando alcançar o mais amplo público global.
Ela sugere, ademais, alguns importantes problemas a serem
abordados no estudo:
1) as mudanças globais ocorridas
nas áreas econômicas, políticas e sociais, e a dependência cada vez maior da
infraestrutura espacial;
2) a identificação e avaliação dos
perigos espaciais conhecidos;
3) as oportunidades espaciais e a
necessidade de pesquisa, uso e exploração sustentável e pacífica do espaço em
benefício de toda a humanidade (conforme reza o Art. 1ºdo Tratado do Espaço de
1967, o código maior das atividades espaciais);
4) as lacunas nos campos da
segurança, da técnica e operacionais que precisam ser preenchidas; e
5) as normas, regulamentos,
acordos e instituições relevantes apropriados de governança espacial para
ordenar as questões correntes e emergentes das atividades espaciais.
Com certeza, não será fácil
realizar essa ambiciosa conferência mundial, unindo tantos e tão diferentes
atores num clima global complexo e tenso como o que vivemos hoje e com
interesses tão poderosos e bem estabelecidos globalmente e no universo das
atividades espaciais.
Isso dá ao projeto um caráter
quase utópico, embora alicerçado em necessidades e demandas objetivas e até
urgentes, o que aumenta seu grau de atração e viabilidade.
Ocorrem-me, a propósito, as
instigantes reflexões sobre "utopia realista" do internacionalista
finlandês Martti Koskenniemi, sempre lucidamente crítico, no artigo
"Projeto de Comunidade Mundial," publicado no livro "Realizing
Utopia - The Future of International Law" (Oxford, 2012), editado por
Antonio Cassese, professor da Universidade de Florança, Itália.
Alerta Koskenniemi: "A
utopia realista só pode começar com uma crítica às atuais instituições - Nações
Unidas, Banco Mundial, Protocolo de Kyoto, às operações das grandes empresas
multinacionais, às estruturas do direito público e do ordenamento privado que
hoje decidem sobre a distribuição dos valores materiais e espirituais. A utopia
realista talvez seja melhor vista não como uma instituição, mas como uma
mentalidade e uma atitude que buscam destacar a contingência e contestabilidade
das instituições globais e suas consequências distributivas."
Mas Koskenniemi vai além: "Para maximizar a liberdade, haverá que convocar a maior
participação possível de todo o mundo, mas especialmente aqueles do Sul global,
para reorientar o trabalho das instituições globais, incluindo as instituições
de direito e ordenamento privado -, de modo a beneficiar quem foi
marginalizado. Haverá que redescrever as formas de conhecimento global, como
tipos de poder político, não menos contestáveis que qualquer outro tipo de
poder. Os participantes desta 'repolitização' poderiam muito bem estar
inspirados por um "sentimento oceânico", mas isso não é necessário.
Afinal, a crítica e a contestação raramente se dão bem com esse tipo de
sentimentalismo romântico."
O livro de Cassese sobre a
relação entre utopia e o futuro do Direito Internacional também defende "a
necessidade do pensamento imaginativo". Aos autores dos ensaios da obra,
Cassese pediu, não que se engajassem numa "especulação selvagem"
sobre o futuro da sociedade mundial, mas que, modestamente, refletissem sobre as
condições de alguns dos principais problemas jurídicos desta sociedade e
analisassem sucintamente as inconsistências e imperfeições do direito vigente.
Pediu, também, que destacassem os elementos - mesmo que menores, ocultos,
incipientes ou ainda por serem feitos (in fieri)
- capazes de conduzir a futuras mudanças ou
aperfeiçoamentos, e sugerissem como esses elementos poderiam ser desenvolvidos,
aprimorados e concretizados em duas ou três décadas, com vistas a conquistar
uma arquitetura melhorada da sociedade mundial ou, no mínimo, a reformulação de
alguns dos aspectos essenciais das relações internacionais.
Por sua vez, Geraldo Zahran,
professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), faz oportuno comentário, no prefácio do livro "Dom Quixote
reencontra Sancho Pança - Guerra Fria, Relações Internacionais e Direito
Internacional" (Apicuri, 2014), de Igor Abdalla Medina de Souza:
"Reconhecer a subjetividade e a arbitrariedade das instituições internacionais,
dos padrões de comportamento por elas definidos, e da produção de conhecimento
a seu respeito, é elementos imprescindível para imaginarmos e desenvolvermos
ações de política externa inovadoras, efetivas e que possam oferecer soluções
aos profundos dilemas do mundo em que vivemos." É preciso, pois, buscar
mais objetividade, mais espírito púlico na atuação das instituições
internacionais.
Para Igor Abdalla Medina de
Souza, Dom Quixote representa o idealismo do direito internacional e Sancho
Pança, o realismo das relações internacionais. E "a identidade de ambos é
consolidada por meio da contraposição entre o desejo de mudança, que, com a
perda de contato com a realidade, se converte em loucura, e o pragmatismo, que,
com um ceticismo radical, se converte em apologia irrestrita, ainda que por
vezes involuntária, das condições presentes." A mensagem é clara: não se
pode desejar a mudança a ponto de perder contato com a realidade, nem se pode
ser tão pragmático a ponto de aceitar e até elogiar sem restrições a situação
existente. Ou seja, nem Dom Quixote, nem Sancho Pança. Uma boa pitada de cada
um é o mais racional e conveniente.
Todas essas observações me
parecem válidas para o magno evento proposto. Ainda mais que tudo indica estar
se processando um considerável reordenamento das forças econômicas e políticas
globais. Basta dizer que, segundo a Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), por volta de 2025, o Produto Interno Bruto
(PIB) da China e o da Índia, somados, serão maiores do que os PIBs de todos os
países do G7 (Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Japão, França, Itália e
Canadá). Para Ram Jakhu, Professor do Instituto de Direito Aeronáutico e
Espacial da Universidade McGill e um dos autores da Declaração de Montreal e do
projeto de conferência mundial sobre nova governança global do espaço, essa
mudança fundamental da economia global produzirá importante reequilíbrio
geopolítico e terá implicações significativas no domínio espacial.
*José
Monserrat Filho é vice-presidente da Associação Brasileira de Direito
Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de
Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica e
atual Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial
Brasileira (AEB).
1) Manfred Lachs (1914-1993),
jurista e diplomata polonês, especialista em Direito Internacional e Direito
Espacial, ex-Juiz (1967-1993) e ex-Presidente da Corte Internacional de
Justiça, ex-Presidente do Instituto Internacional de Direito Espacial, e autor
dos livros "Direito do Espaço Exterior - Uma Experiência Contemporânea de
Criação do Direito" (1972) e "O Professor de Direito
Internacional" (1982). Desde 1993, dá nome ao Juri Simulado promovido
anualmente pelo Instituto Internacional de Direito Espacial sobre temas
espaciais.
Leia, a seguir, o texto original
da Declaração de Montreal em inglês e sua versão em português, de que o autor
deste artigo é o responsável:
The Montreal Declaration
The 2nd Manfred Lachs International Conference on Global Space
Governance, held at McGill University, in Montreal, Canada, on 29-31 May 2014:
Having brought together over 120 experts from 22 countries (space-faring
and non-space faring nations) involved in various aspects of space activity and
regulation;
Having served as an objective venue for the conduct of international and
interdisciplinary deliberations on different aspects and perspectives of global
space governance;
Recognizing that the current global space governance system that was
created during the 1960s and 1970s has not been comprehensively examined by the
international community since its establishment;
Recognizing that the concept of global governance is comprehensive and
includes a wide range of codes of conduct, confidence building measures, safety
concepts, international institutions, international treaties and other
agreements, regulations, procedures and standards;
Noting that numerous developments have occurred in the world in general,
and the space sector in particular, with serious implications for current and
future space activities and for the sustainable use of space for peaceful
purposes for the benefit of all humankind (i.e. the global public interest in
outer space),
Believing that the time has come to assess the efficacy of the current
regime of global space governance and to propose an appropriate global space
governance system that addresses current and emerging concerns;
HEREBY resolves by consensus to:
# call upon civil society, academics, governments, the private sector
and other stakeholders to consider establishing a Working Group to prepare for and
convene an international conference to deliberate and agree upon
recommendations to governments and relevant international organizations aimed
at the establishment of a global governance regime for peaceful and sustainable
space exploration, use and exploitation for the benefit of all humankind;
# ensure that the proposed international conference is held as soon as
possible with global participation by all key stakeholders (i.e., state and
non-state actors) including: international intergovernmental organizations;
relevant regional organizations; non-governmental organizations; appropriate
state ministries (departments) and space agencies; academic institutions;
appropriate commercial enterprises; and concerned individuals;
# call upon the McGill University Institute of Air and Space Law to take
the lead in initiating, completing and broadly distributing through all forms
of media, an international interdisciplinary study that examines drivers of
space regulations and standards prior to, and in support of, the proposed
international conference, targeting a global audience;
# ensure that the above-mentioned study examines, inter alia:
(i) changing global economic, political and social conditions and space
infrastructure dependence;
(ii) identification and assessment of all known space threats;
(iii) space opportunities and the need for sustainable and peaceful use,
exploration and exploitation of space for all humankind;
(iv) safety, technical and operational gaps to be filled; and
(v) appropriate space governance standards, regulations, arrangement,
agreements and institutions relevant to current and emerging issues of space
activities.
Done in Montreal, this 31st day of May 2014.
Declaração
de Montreal
A 2 ª Conferência Internacional
Manfred Lachs sobre Governança Global do Espaço Exterior, realizada na
Universidade McGill, em Montreal, no Canadá, de 29 a 31 de maio de 2014,
Tendo reunido mais de 120
especialistas de 22 países (com e sem programas espaciais) envolvidos em vários
aspectos das atividades espaciais e sua regulamentação;
Tendo servido como local neutro
para conduzir deliberações internacionais e interdisciplinares sobre diferentes
aspectos e perspectivas da governança global do espaço;
Reconhecendo que o atual sistema
de governança global do espaço, criado durante os anos 1960 e 1970, não foi
exaustivamente examinado pela comunidade internacional desde a sua criação;
Reconhecendo que o conceito de
governança global é abrangente e inclui ampla gama de códigos de conduta,
medidas de fomento à confiança, conceitos de segurança, instituições
internacionais, tratados internacionais e outros acordos, regulamentos,
procedimentos e normas;
Observando que intenso
desenvolvimento ocorreu no mundo em geral e no setor espacial em particular,
com sérias implicações para as atividades espaciais atuais e futuras e para o
uso sustentável do espaço para fins pacíficos, em benefício de toda a
humanidade (ou seja, o interesse público global no espaço exterior),
Acreditando que é chegado o
momento de avaliar a eficácia do atual regime de governança espaço global e
propor um sistema apropriado de governança global do espaço que aborda questões
atuais e emergentes;
Resolve por consenso:
# Conclamar a sociedade civil,
acadêmicos, governos, setor privado e outros interessados a considerar a
criação de um Grupo de Trabalho com a tarefa de preparar e convocar uma
conferência internacional para deliberar e acordar recomendações aos governos e
organizações internacionais relevantes para o estabelecimento de um regime de
governança global, pacífica e sustentável, para a pesquisa, uso e exploração do
espaço em benefício de toda a humanidade;
# Assegurar que a conferência
internacional proposta seja realizada no mais breve prazo possível com a
participação global de todos os principais intervenientes (isto é, estatais e
não-estatais), incluindo organizações internacionais intergovernamentais;
organizações regionais relevantes; organizações não governamentais; ministérios
apropriados (departamentos) e as agências espaciais; instituições acadêmicas;
empresas comerciais pertinentes; e indivíduos interessados;
# Conclamar o Instituto de
Aeronáutica e Espaço de Direito da Universidade McGill a assumir a liderança na
tarefa de iniciar, completar e difundir amplamente, através de todas as formas
de mídia, um estudo interdisciplinar internacional que examine as forças
condutoras de regulamentos e normas espaciais antes da, e em apoio à,
conferência internacional proposta, tendo como alvo um público global;
# Assegurar que o referido estudo
aborde, entre outros, os seguintes problemas:
(I) as mudanças nas condições
econômicas, políticas e sociais globais e a dependência da infraestrutura
espacial;
(II) identificação e avaliação de
todas as ameaças espaciais conhecidas;
(III) as oportunidades espaciais
e a necessidade de uso, pesquisa e exploração sustentável e pacífica do espaço
para toda a humanidade;
(IV) as lacunas de segurança, de
técnica e operacionais a serem preenchidas; e
(V) as normas, regulamentos,
entendimentos, acordos e instituições apropriados relevantes à governança
espacial das questões correntes e emergentes das atividades espaciais.
Feito em Montreal, neste dia 31
de maio de 2014.
Fonte: Jornal da Ciência de 24/06/2014
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