Tempestades no Vácuo
Olá leitor!
Segue abaixo um artigo publicado na edição de junho de
2014 da “Revista Pesquisa FAPESP” destacando que a energia do espaço vazio pode
destruir estrelas e até revelar a natureza da matéria escura segundo uma equipe de físicos teóricos paulista.
Duda Falcão
CIÊNCIA
Tempestades no Vácuo
A energia do espaço vazio pode destruir estrelas e
até revelar a natureza da matéria escura
IGOR ZOLNERKEVIC
Revista Pesquisa FAPESP
Edição 220 - Junho de 2014
Vácuo não é sinônimo de
nada, ao menos para os físicos. Eles afirmam que mesmo o espaço aparentemente
vazio ainda contém alguma forma de energia que flutua constantemente, como as
pequenas ondas que tornam enrugada a superfície de um lago soprado pelo vento.
Embora a energia do vácuo e suas oscilações em geral sejam sutis demais para
serem percebidas, a não ser em escalas microscópicas, uma equipe de físicos
teóricos de São Paulo acredita que elas podem ser amplificadas até atingirem a
escala astronômica e destruir estrelas inteiras. Isso é consequência do efeito
descoberto há quatro anos pelo físico Daniel Vanzella e seu então estudante de
doutorado William Lima, que atualmente realizam uma série de cálculos
complicados para tentar conhecer em detalhes como essa energia do vácuo pode
influenciar o destino das estrelas mais densas do Universo, as estrelas de
nêutrons.
Em 2010 Vanzella, Lima e o físico George Matsas
perceberam que, sob certas condições, a imensa força gravitacional das estrelas
de nêutrons seria capaz de agitar as flutuações da energia do vácuo. E
concluíram que essa espécie de tempestade de energia não duraria mais que um
segundo, mas sua violência seria suficiente para destruir a estrela que a
gerou. Os cálculos mais recentes, entretanto, sugerem que, se o efeito que
batizaram de despertar do vácuo realmente existe, suas consequências para as
estrelas de nêutrons podem variar bem mais do que os físicos imaginavam. Pode
ser que as estrelas realmente explodam, deixando um buraco negro ou mesmo nada
no lugar. Mas também pode acontecer que sobrevivam, apesar de sofrerem uma redução drástica de massa e
energia. No artigo mais recente, publicado na revista Physical Review D,
os pesquisadores esclarecem quais análises e testes ainda precisam ser feitos
para determinar as consequências finais do despertar do vácuo. “Queremos saber
todos os fins possíveis para essas estrelas”, afirma Vanzella, pesquisador do
Instituto de Física da Universidade de São Paulo em São Carlos (IFSC-USP).
Pode
parecer mera curiosidade teórica, mas determinar a existência e a intensidade
do despertar do vácuo deve ajudar a entender melhor a natureza da matéria
escura, uma forma de matéria invisível que permeia todo o espaço e é
perceptível somente pelo efeito de sua força gravitacional sobre o movimento
das galáxias. Ninguém sabe do que a matéria escura é feita, apenas que deve ser
constituída de partículas subatômicas que ainda não foram descobertas. Matsas e
seus colegas já sabem que o despertar do vácuo só pode ocorrer se ao menos
parte da matéria escura apresentar algumas propriedades especiais. “Dependendo
das propriedades da matéria escura, estrelas de nêutrons de uma determinada
faixa de massa e de raio não devem existir”, explica Matsas, pesquisador do
Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp).
Partículas
e Ondas
Até
os físicos concordam que a expressão “energia do vácuo” soa incomum. Mas sua
existência já foi comprovada direta e indiretamente no último século.
Pesquisadores de nanotecnologia,
por exemplo, precisam levar em conta o chamado efeito Casimir, uma força que
pode atrair ou repelir as peças metálicas microscópicas que eles manipulam em
ambientes dos quais foi retirado o ar. Essas forças, eles acreditam, surgem de
diferenças na energia do vácuo no espaço entre as peças e ao redor delas.
A teoria que
explica a origem dessa energia é a mesma que descreve o que acontece em
experimentos nos aceleradores de partículas, em que partículas subatômicas são
lançadas umas contra as outras. No LHC, o maior acelerador de partículas já
construído, por exemplo, dois feixes de prótons viajando a uma velocidade
próxima à da luz colidem entre si. Após o choque, os prótons desaparecem e, no
lugar deles, novas partículas surgem, aparentemente do nada. Isso não acontece
só porque os prótons se desfazem em partículas subatômicas mais fundamentais.
Ocorre também porque partículas que existiam são aniquiladas e, a partir de sua
energia, novas partículas são criadas. A destruição e a criação de partículas
são possíveis porque, segundo a teoria da relatividade especial formulada por
Albert Einstein em 1905, a massa das partículas pode ser convertida em energia
e vice-versa.
© INFOGRÁFICO: ANA PAULA
CAMPOS ILUSTRAÇÃO: FABIO OTUBO
Mas
a relatividade não explica toda a história. Ao longo do século passado também
ficou claro que as partículas elementares seguem as leis da mecânica quântica:
elas não se comportam como pontos sólidos e bem definidos. Elas estão mais para
objetos híbridos que ora se comportam como pontos, ora se propagam pelo espaço
como se fossem ondas. A principal lei que essas partículas-ondas obedecem é o
princípio da incerteza, segundo o qual quanto mais certamente se conhece a
posição de uma partícula, menos se sabe sobre a sua velocidade – o contrário
também é verdadeiro. “É isso o que torna a mecânica quântica tão
extraordinária”, diz Matsas. “Não dá mais para explicar as partículas de
maneira tão simples.”
“Da
relatividade especial e da mecânica quântica entendemos hoje que as partículas
elementares surgem de entidades mais fundamentais, os campos quânticos”,
explica o físico. Uma maneira de visualizar o que são esses campos é pensar em
ondulações em uma lagoa. Assim como cada ponto da superfície da lagoa pode oscilar
para cima e para baixo, cada ponto do Universo está associado a um campo
quântico cuja energia flutua constantemente. Segundo essa forma de entender o
Cosmo, as partículas elementares são na verdade um tipo especial de ondulação
desses campos – vibrações de energia registradas pelos detectores dos físicos
como partículas. “Se serve de consolo”, diz Matsas, “para mim também é difícil
visualizar esses campos”.
Matsas
conta ainda que o princípio da incerteza impede de saber, ao mesmo tempo e com
infinita precisão, as propriedades do campo em cada ponto do Universo e o quão
rápido essas propriedades mudam. Uma consequência dessa incerteza quântica é
que mesmo uma porção do espaço vazia de partículas possui uma energia que
flutua em torno de um valor próximo de zero. Há vários tipos de campos
quânticos preenchendo o Universo e cada partícula elementar conhecida – como os
elétrons, os quarks, os fótons e os neutrinos – surge de um campo específico. A
maneira como uma partícula influencia outra depende de como os campos que as
originam estão ligados.
Na
tentativa de explicar a matéria escura, muitas hipóteses assumem a existência
de campos quânticos livres. Assim chamados porque não estariam conectados a
outros campos, os campos livres dariam origem a partículas elementares que
praticamente não interagem com as demais. Uma consequência dessa propriedade é
que as partículas geradas pelos campos livres podem estar aqui e agora,
atravessando a Terra ou mesmo nossos corpos, sem que se possa detectá-las
diretamente. Como os campos livres só se ligariam ao restante do Universo pela
força gravitacional, as estrelas de nêutrons tornam-se o laboratório natural
para testar essas ideias. É que elas são os objetos mais densos que se conhece,
com exceção dos buracos negros. “Ao tentar observar o efeito do despertar do
vácuo em estrelas poderíamos verificar se campos livres existem ou não”, diz
Matsas.
Espaços
Curvos
A
força da gravidade é a única interação fundamental que os físicos não conseguem
explicar por meio de campos quânticos. “Ela é melhor descrita como um dos
resultados da deformação da geometria do espaço e do passar do tempo em torno
de uma porção de matéria ou energia, como ao redor de uma estrela”, explica
Vanzella, do IFSC-USP. Quanto mais concentrada a energia de uma estrela, por
exemplo, mais intensa é a deformação espaço-temporal que ela provoca. No caso
extremo, a deformação pode fazer a própria estrela entrar em colapso, criando
uma região de espaço vazio altamente distorcida em seu lugar – são os famosos
buracos negros.
Matsas
e Vanzella são especialistas em calcular como os campos quânticos que dão
origem a partículas elementares são afetados pelas deformações espaço-temporais
de uma estrela ou de um buraco negro. Em seus estudos, eles aplicam a mesma
combinação de relatividade geral e teoria quântica de campos que o físico
Stephen Hawking usou para descobrir em 1974 que buracos negros emitem
partículas elementares.
© UMAR
MOHIDEEN / UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA EM RIVERSIDE
Em 2010, Vanzella e seu então
aluno de doutorado William Lima, atualmente trabalhando como pós-doc no IFT,
assinaram dois artigos na revista Physical Review Letters,
o segundo com participação de Matsas, demonstrando como a curvatura do espaço e
do tempo poderia, em certas circunstâncias, amplificar as flutuações da energia
de vácuo dos campos quânticos.
Uma dessas circunstâncias
poderia acontecer durante a contração de uma estrela de nêutrons. Com massas
comparáveis à do Sol, mas feitas de nêutrons espremidos em uma esfera com mais
ou menos 20 quilômetros de diâmetro (a distância entre o centro de São Paulo e
o bairro de Itaquera), as estrelas de nêutrons nascem da morte de uma estrela
maior em um evento explosivo chamado de supernova. Quando uma estrela com massa
cerca de 10 vezes superior à massa do Sol esgota seu combustível nuclear, suas
camadas externas explodem ao mesmo tempo que seu núcleo sofre uma implosão. O
resultado desse evento é o surgimento de um buraco negro ou uma estrela de
nêutrons na região mais central. Por serem muito pequenas, as estrelas de
nêutrons são difíceis de observar – elas são estudadas com frequência por suas
emissões de ondas de rádio e raios X.
Lima, Vanzella e Matsas
descobriram que, se uma estrela de nêutrons encolher até determinado diâmetro,
sua gravidade passa a causar perturbações no espaço que alimentariam um
crescimento exponencial nas flutuações de energia do vácuo de um campo
quântico. Isso significa que, mesmo que a energia total do campo permaneça o
tempo todo quase igual a zero, alguns pontos do espaço concentrariam
momentaneamente quantidades enormes de energia positiva, enquanto outros
concentrariam quantidades similares de energia negativa.
A situação é quase
inimaginável. É como se pequenas ondulações sobre um lago, de repente,
começassem a subir e a descer freneticamente a alturas e profundidades cada vez
maiores. “Em milissegundos, a densidade de energia dessas flutuações seria
grande o suficiente para curvar o espaço-tempo mais do que a própria estrela”,
conta Vanzella. “Esse crescimento, porém, não poderia continuar para sempre e
alguma coisa precisaria acontecer com a estrela e o campo para reestabilizar a
curvatura do espaço-tempo.”
Depois da Tempestade
Para saber exatamente o que
pode acontecer às estrelas e aos campos quânticos, os pesquisadores precisam
lidar com equações da relatividade geral combinadas às da teoria quântica de
campos, quase impossíveis de resolver diretamente. Os teóricos encaram o
desafio aos poucos e por partes, usando princípios gerais da física e cálculos
aproximados que revelam pouco a pouco detalhes sobre o problema.
Em 2012, o físico André
Landulfo, atualmente na Universidade Federal do ABC, juntou-se à equipe para
demonstrar que, não importa o que aconteça à estrela de nêutrons no final do
processo, uma boa parte da sua energia será transferida para o campo quântico,
criando novas partículas. “A flutuação que cresceu muito na fase instável fará
com que o campo não volte a uma configuração de vácuo quando o sistema se
reestabilizar”, explica Vanzella. “O campo produzirá um monte de partículas no
final.”
Essas novas partículas
elementares seriam invisíveis aos telescópios, mas extrairiam uma quantidade
imensa da energia da estrela de nêutrons – ou do que sobrou dela. E essa perda
de energia poderia ter consequências observáveis.
“É uma possibilidade interessante”,
comenta o físico italiano Paolo Pani, da Universidade Técnica de Lisboa, em
Portugal, que trabalha com a relação entre teorias físicas alternativas e
observações astrofísicas. Pani gostaria que algum pesquisador incluísse o
efeito do despertar do vácuo nas simulações de explosões de supernovas. “Essas
simulações seriam importantes para entender se o efeito pode explicar explosões
de raios gama”, diz Pani.
Matsas e Vanzella, entretanto,
ressaltam que, mesmo sem a realização de simulações astrofísicas sofisticadas,
os resultados de seus cálculos já poderiam ser comparados com as observações.
“Podemos descartar de uma vez a existência de certos campos livres que ainda
são considerados teoricamente”, explica Vanzella. “Se observamos, por exemplo,
estrelas com uma certa razão massa-raio que deveriam ter sido destruídas pelo
despertar do vácuo de um certo campo, é porque esse campo não existe.”
O trabalho mais recente da
equipe, conduzido pela física Raíssa Mendes, que está concluindo sua tese de
doutorado sob supervisão de Matsas, também foi publicado na Physical Review
D. Nele, o grupo determinou que é possível aproveitar os resultados de
estudos sobre a instabilidade de estrelas e buracos negros feitos por outros
pesquisadores desde os anos 1970 para descobrir o que o despertar do vácuo
quântico provocaria nas estrelas de nêutrons.
Foi a partir desses cálculos
feitos por outros pesquisadores que a equipe determinou que a estrela de
nêutrons pode, em alguns casos, sobreviver ao despertar do vácuo. Segundo Vanzella,
esse efeito só ocorre quando são adotados certos valores para um dos termos da
equação que determina como o campo livre interage com a curvatura do
espaço-tempo. “O efeito ocorre para certos intervalos de valores desse termo,
alguns positivos e outros negativos”, diz o físico. “Cálculos de outros
pesquisadores sugerem que, para valores negativos, a criação de partículas
seria suficiente para interromper o crescimento da energia do vácuo e a estrela
sobrevive.”
No momento, Vanzella e o físico
Raphael Santarelli, que faz pós-doc com Vanzella em São Carlos, estão
analisando o caso de esse termo assumir valores positivos. Os resultados
preliminares sugerem que a estrela seria destruída. “O que já sabemos é que a
criação de partículas não será o suficiente para reestabilizar o sistema”,
conta Vanzella. “Alguma outra coisa precisará acontecer, talvez a formação de
um buraco negro.” Em 2010, Matsas apostou uma caixa de garrafas de vinho na
hipótese de que uma estrela de nêutrons sempre seria destruída pelo despertar
do vácuo. “Agora”, ele diz, “parece que ganharia metade da caixa e perderia a
outra metade”.
Projeto
Física em espaços-tempos curvos
(nº 2007/55449-1);
Modalidade Projeto
Temático;
Pesquisador responsável George
Emanuel Avraam Matsas (IFT-Unesp)
Investimento R$
181.501,15 (FAPESP).
Artigos Científicos
MENDES, R.F.P. et al. Quantum versus
classical instability of scalar fields in curved backgrounds. Physical Review D. v. 89, p. 047503. 24
fev. 2014.
LANDULFO, A.G.S. et al. Particle creation due
to tachyonic instability in relativistic stars. Physical Review D. v. 86, p. 104025. 2012.
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP - Edição 220 – Junho de
2014
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