Democratização e Militarização do Espaço: Pode?
Olá leitor!
Segue abaixo outro interessante artigo escrito pelo Sr.
José Monserrat Filho e postado dia (26/05) pelo
companheiro André Mileski em seu no Blog Panorama Espacial. Vale a pena dar uma
conferida.
Duda Falcão
Democratização e
Militarização
do Espaço: Pode?
José Monserrat Filho *
“Se não mudarmos de direção,
é provável que acabaremos chegando
exatamente ao mesmo lugar de
onde partimos.” Provérbio chinês
Até quando a democratização do
espaço poderá conviver com a contínua militarização e a corrida armamentista
que visa instalar armas em órbitas da Terra, transformando-as em novo “teatro
de guerra”, como já o são o solo terrestre, o mar e o espaço aéreo?
E qual é o papel do Direito
Espacial no caso?
Essas questões me surgem após
ler o artigo “A Democratização do Espaço – Novos atores precisam de Novas
Regras”, de Dave Baiocchi e William Welser IV, publicado na mais recente edição
da revista americana Foreign Affairs1.
A democratização do espaço,
segundo o artigo, é produto da grande mudança havida em mais de meio século da
Era Espacial, inaugurada pelo Sputnik-1, da ex-União Soviética, em 4 de outubro
de 1957. As atividade espaciais, de início exclusivas de alguns estados – a
começar pela União Soviética e Estados Unidos –, passaram a ser acessíveis a
vários novos atores, além dos estados: organizações internacionais, empresas
privadas, centros de pesquisa, universidades e até pessoas físicas.
Abriu-se, de fato, um leque
de participantes, mas o papel principal
continua pertencendo aos estados: 53 países deles são responsáveis hoje por
mais dos 1.300 satélites ativos. Esses 53, no entanto, são poucos se comparados
com os 192 países-membros das Nações Unidas, que não incluem todos os países do
mundo – seguramente, mais de 200. Os benefícios do espaço tornaram-se
indispensáveis a todos os países e povos, mas apenas um quarto deles têm acesso
às atividades ebnefícios espaciais.
Grande parte da humanidade segue fora da Era Espacial. Mesmo assim, sem dúvida,
há novos atores – um avanço real em relação ao que tínhamos há apenas algumas
décadas.
O progresso tecnológico também é apontado como fator decisivo da mudança. “Hoje, a
construção de um satélite básico não é mais considerada como “ciência de
foguete” (rocket science). Graças à disponibilidade de pequenos
computadores de eficiência energética, de processos inovativos de produção e de
novos modelos de negócios para o lançamento de foguetes, lançar uma missão
espacial tornou-se mais fácil do que nunca”, diz o artigo.
Ele cita, como prova, o smartphone
“produto de mais de três décadas de avanços em design e fabricação de técnicas
de circuitos”. E acrescenta: “Os processadores de hoje contêm mil vezes mais
transistores que os de 20 anos atrás. O iPhone 6 tem tanto poder computacional
quanto um supercomputador de 1990. Menor também significa maior eficiência
energética: um telefone celular típico gasta apenas 25 centavos de dólar por
ano de eletricidade, enquanto um computador de mesa (desktop) gasta 36
dólares.” E conclui: “Um hardware pequeno, poderoso e com eficiência energética
é perfeitamente adequado aos satélites, que dispõem de volume e quantidade
finita de energia elétrica (vinda dos painéis solares). E graças às novas
ferramentas de desenvolvimento de software e ao hardware customizável, qualquer
pessoa, mesmo com modesta capacidade de programação, pode montar um computador
perfeitamente capaz de caber num satélite.”
O artigo indica ainda que as
mudanças no modo de fabricar também barateiam as missões espaciais e que as
técnicas tradicionais de fabricação em geral não se prestam a essa indústria.
Usando um equipamento de
fabricação como o 3-D de impressão a laser e sintetização, por exemplo – que
custa só 35 dólares –, constroem-se rapidamente peças que no passado exigiam
moldes personalizados, robôs especializados e correias de transmissão; os
aditivos de fabricação reduzem os custos – por um fator de dez, pelo menos – da
produção de inúmeras peças. Além disso, dispensam especialistas em máquinas que
produzem ferramentas.
Está ficando igualmente mais
barato lançar satélites ao espaço. Algumas
empresas de países desenvolvidos estão empenhadas em baixar os custos dos
lançamentos, modularizando seus veículos, modernizando seus fluxos de trabalho
de projeto e fabricação, e integrando verticalmente seus processos de
fabricação. Novas companhias buscam ocupar o nicho dos pequenos satélites com
serviços de lançamento que custam entre um milhão e 10 milhões de dólares. A S-3
(Swiss Space Systems), da Suíça, anuncia para 2018 o primeiro voo comercial de
um sistema de lançamento de pequenos satélites de até 250kg, que cobrará a
módica soma de US$ 10 milhões. Esse sistema utiliza um avião até a altura de 10
km, de onde parte um shuttle reutilizável (chamado SOAR), que leva a
bordo e lança a uma altura de 100 km um pequeno veículo incumbido de colocar a
carga útil na órbita programada.
Todos estes progressos em
computação, produção e lançamento tornaram
e seguirão tornando o espaço mais acessível que nunca, incentivando os
empresários a apostar no negócio.
Mas, alerta o artigo, as
facilidades de ingresso no espaço podem igualmente gerar ações perigosas e
ilegais. Organizações não-governamentais têm capacidade de efetuar operações
espaciais para minar planos governamentais. Um ativista rico, interessado em
promover a transparência, pode lançar uma constelação de satélites para
monitorar e bisbilhotar a movimentação de tropas no mundo inteiro. O crime
organizado pode usar satélites para acompanhar em tempo real operações
policiais ou atividades de grupos rivais.
Todo este contexto levanta
novos desafios para governos e legisladores. Segundo o artigo, a maior parte do
Tratado do Espaço, de 1967, e dos quatro outros tratados espaciais em vigor,
aplica-se hoje, de fato, a apenas “um punhado de estados” e estabelece quatro
princípios básicos: 1) manter o espaço aberto à exploração e uso por todos os
países; 2) responsabilizar cada país por suas atividades espaciais nacionais,
realizadas tanto por entidades públicas, como privadas; 3) responsabilizar os
países pelos danos causados por seus objetos espaciais; e 4) os países devem
cooperar entre si e prestar assistência mútua.
Na verdade, os cinco tratados
aplicam-se a todos os países que os ratificaram, que não são poucos. O Tratado do Espaço de 1967, definido
como a lei maior do espaço, tem, por exemplo, 103 ratificações, e, ademais, é
considerado “costume internacional”, pois, ao longo de seus quase 70 anos de
vigência, nunca foi questionado por nenhum país, sendo, portanto, válido para
todos os países do mundo, inclusive para aqueles que não o assinaram nem o
ratificaram.
Entre os princípios básicos,
estranhamente, não é citado o mais importante, conhecido como “cláusula do bem comum”, expresso no Artigo 1º, § 1º,
do Tratado do Espaço: “A exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da
Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e o interesse de todos
os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e
científico, e são incumbência de toda a humanidade.” A versão em inglês do
Tratado refere-se à “Province of all mankind”, expressão amplamente utilizada,
que significa, “Interesse, conhecimento e responsabilidade de toda a
humanidade.”
O artigo frisa que, desde os
anos 60, o universo das atividades espaciais mudou muito: “Hoje, 12 países têm
um total de 26 centros de lançamentos e o ritmo das mudanças tecnológicas é
vertiginoso.” E mais: “Assim como agora os governos nacionais têm de lidar com
o aparecimento dos drones em seus espaços aéreos, a comunidade internacional,
operando em altitude mais elevada, terá de se adaptar à proliferação de missões
espaciais.”
Novas regras são portanto
necessárias, não apenas devido ao advento de novos atores, como o artigo
sustenta já em seu título. Há muitas atividades espaciais novas que precisam
ser ordenadas.
O que fazer, então? “O primeiro passo para o uso responsável de qualquer
recurso, é compreender e monitorar como esse recurso é usado”, nota o artigo e
acrescenta: “Para o espaço, isso significa saber onde tudo é situado, ou, como
é sabido na indústria, desenvolver 'o conhecimento da situação espacial' (space
situational awareness).” Esse conhecimento, claro, torna-se cada vez mais
importante com o aumento do número de atores e de objetos no espaço.
A Rede de Vigilância Espacial
dos EUA, parte do Comando Estratégico do país, rastreia mais de 17 mil objetos
no espaço [esse número provavelmente é maior], entre satélites ativos, carcaças
de velhos foguetes e pequenos detritos, observa o artigo. Daí que hoje os EUA
são os maiores guardiães do catálogo dos satélites ativos e do lixo espacial
com tamanho superior a 10 cm. Mas outros países e até entidades privadas já
começam a manter seus próprios registros.
Diante dessa crescente
diversidade, o artigo propõe algo mais que razoável: “É tempo de centralizar
toda essa informação num único local, o que vai requerer um acordo entre os
países sobre novas políticas e o uso de novas tecnologias capazes de facilitar
a partilha de dados.” A ideia não poderia ser melhor: criar um centro global de
monitoramento, vigilância e alerta de satélites e detritos espaciais, equipado
com as mais avançadas tecnologias, para servir a todos os países, igualmente e
sem qualquer traço de discriminação ou preferência. Seria um exemplo de
cooperação internacional sem precedentes, em área indispensável à segurança de
toda a comunidade de nações. E pouparia recursos dos participantes, que poderiam
ser empregados em seus programas nacionais.
O segundo desafio espacial,
após a proliferação de atores, segundo o
artigo, seriam as “tecnologias duais” (dual-use technologies),
que servem a fins tanto pacíficos como militares: “Imagens de satélite são
usadas para monitorar colheitas tão facilmente quanto para espionar bases de
submarinos.” O artigo adverte, a propósito, que “quanto mais atores privados
entrarem no negócio espacial, mais importante será distinguir entre propósitos
expressos e não expressos”(intended and unintended purposes). Esses atores
podem declarar uma coisa e fazer outra. Outro exemplo é citado: “Uma frota de
satélites equipados com pequenas câmaras pode ser lançada para coletar dados
meteorológicos mais precisos, mas, com a frota já em órbita, seus operadores
podem descobrir que ela também é capaz de monitorar a polícia.”
Instalado um bom e amplo
sistema de conhecimento da situação espacial, caberia aos operadores declarar
publicamente seus reais objetivos. A Convenção de Registro de Objetos Lançados
ao Espaço, de 1976, reza em seu Artigo 4º que cada Estado responsável pelo
registro do objeto espacial lançado deve fornecer vários dados sobre ele,
inclusive sua “função geral”, ou seja, seus objetivos verdadeiros. Verifica-se
mais uma vez: o que se há de levar em conta não é propriamente o aumento do
número de atores, mas suas atividades efetivas.
O terceiro e último desafio
espacial, na visão do artigo, são os
“atores não estatais”, cujas atividades podem dificultar ainda mais o
conhecimento completo da situação espacial: “Tornar-se-á mais difícil tanto
avaliar o propósito da missão, quanto atribuir responsabilidade à parte devida
em caso de acidente que ponha em risco capacidades importantes como previsão do
tempo, a televisão por satélite e sistemas de navegação.” Ainda mais que, “até
recentemente, barreiras técnicas significavam que os governos não precisavam se
preocupar com as perspectivas de tais atividades.”
O artigo conclui que (1) é necessário adicionar novas normas ao Tratado do
Espaço e (2) a falta de conhecimento da situação espacial deve ser encarada
como questão urgente. Conclusões corretas e oportunas. Uma das normas a
introduzir com urgência no Tratado do Espaço ou fixar num documento de igual
validade legal é vedar o espaço à instalação de armas de qualquer tipo e ao uso
da força militar. A militarização do espaço e a eliminação do lixo espacial
precisam ser reguladas na mesma proporção dos perigos que geram. Isso
concorreria para garantir uma sustentabilidade mais completa e permanente das
atividades espaciais – cada vez mais imprescindíveis à vida e ao
desenvolvimento de todos os países e de toda a humanidade.
* Vice-Presidente da
Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário
do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia
Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de Cooperação
Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Esse artigo expressa
exclusivamente a opinião do autor.
Referência
(1) The Democratization of Space – New Actors Need New Rules, by
Dave Baiocchi, Senior Engineer at the RAND Corporation and a Professor at the
Pardee RAND Graduate School, and William Welser IV, Director of the Engennering
and Applied Sciences Department at the RAND Corporation and a Professor at the
same mentioned School; Foreign Affairs, May/June 2015, pp. 98-104.
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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