A Corrida Espacial - Artigo
Olá leitor!
Dando seqüência à coletânea de artigos escritos pelo engenheiro mecânico “Leandro G. Cardoso”, segue abaixo o artigo sobre "A Corrida Espacial”. Em março, o blog publicará o quarto artigo (ainda sem nome) dessa coletânea que terá como tema a propulsão líquida no Brasil. Fique atento.
Duda Falcão
A Corrida Espacial
Leandro G. Cardoso*
Muito se comentou ano passado sobre o primeiro pouso de Neil Armstrong e Edwin Aldrin na lua em 20 de julho de 1969, no que teria consagrado a vitória americana sobre a União Soviética na corrida espacial. Muito poucos, porém tem uma visão clara do que acontecia durante aquela dita “corrida”, e sobre o verdadeiro significado da façanha tecnológica que foi a conclusão bem sucedida da missão Apollo 11 e das missões seguintes do programa Apollo.
Na verdade os programas espaciais das duas superpotências da época tinham naturezas diferentes e eram encarados pelos respectivos governos de formas muito distintas, e a compreensão disto coloca o assunto em uma perspectiva diferente da que normalmente é apresentada nas aulas de história e nos meios de comunicação. O objetivo deste texto é apresentar esta nova perspectiva pouco conhecida sobre este assunto tão interessante.
O início da corrida espacial pode ser traçado ao final da segunda guerra mundial, quando tanto os Estados Unidos como a União Soviética capturaram técnicos, documentos e componentes dos foguetes V-2 utilizados pelos nazistas durante a guerra.
Em ambos os países o primeiro passo foi reproduzir estes foguetes ao longo dos últimos anos da década de quarenta, e estes esforços serviram de base para todo o desenvolvimento da pesquisa espacial posterior. Nesta altura tanto os EUA quanto a URSS não davam tanta importância assim para seus programas espaciais, até porque não esperavam obter nenhuma vantagem econômica, militar ou mesmo tecnológica com eles. Então em ambos os lados os começos foram modestos.
À partir do início da década de cinqüenta a União Soviética começou a construir seu arsenal de bombas atômicas em contraposição ao arsenal americano, mas ao contrário dos Estados Unidos não possuíam uma grande força de bombardeiros estratégicos para lançá-las. Fizeram portanto grandes esforços no desenvolvimento de mísseis maiores e mais poderosos.
Na URSS de início sequer existia um programa espacial oficial, o que havia era o desenvolvimento de mísseis nucleares que pudessem equilibrar a vantagem estratégica americana em bombardeiros. A idéia de utilizar o maior destes mísseis em desenvolvimento (o R-7) para lançar um satélite artificial partiu de um dos engenheiros responsável pelo desenvolvimento dos foguetes, Mikhail Tikhonravov, tendo sido adotada entusiasticamente por seu chefe Sergei Korolev. Mas eles só conseguiram convencer o general Dmitry Ustinov, na época responsável pelo programa de mísseis (era o equivalente ao ministro da defesa), a aprovar o lançamento ao garantir que seria um bom teste do R-7 como míssil, sem afetar o andamento e o sigilo do programa militar.
Enquanto isso, nos EUA praticamente todo o esforço para o lançamento de satélites artificiais (o primeiro passo de qualquer programa espacial digno do nome) estava concentrado no programa Vanguard da US Navy, utilizando como base uma evolução do foguete Viking chamado Vanguard. Este não era o foguete mais poderoso (este seria o Atlas da USAF) e nem o que estava em estágio de desenvolvimento mais avançado (o Jupiter do US Army) à disposição dos americanos, mas foi escolhido justamente por ser o único de aplicação não-militar e portanto sem problemas de sigilo. Como se vê, os americanos tinham exatamente a mesma preocupação dos soviéticos em preservar seus mísseis militares em segredo, apenas tinham um pequeno programa “menos bélico” (embora mantido em grande parte pela US Navy) que podiam utilizar.
Os russos ganharam esta parte da corrida de forma completamente inesperada pelos americanos, que não imaginavam que eles estivessem tão avançados. Aí a coisa mudou totalmente de figura.
O governo americano começou a coordenar todos os programas de foguetes para tentar superar os soviéticos, que ainda não tinham um programa espacial definido, e lançaram seu primeiro satélite com um foguete Jupiter-C. Mas o R-7 era uma realização tecnológica tão notável que mesmo com os melhores foguetes que dispunham no momento (Atlas e Delta) os americanos não conseguiram virar o jogo e os russos em rápida seqüência lançaram satélites muito maiores que os americanos, colocaram o primeiro homem no espaço, lançaram as primeiras sondas interplanetárias, colocaram o primeiro objeto humano na superfície da lua e tiraram as primeiras fotos do seu lado oculto. Os americanos conseguiam seguir os russos de perto, mas não conseguiam fazer praticamente nada antes deles. Para uma sociedade em que o marketing tinha (e ainda tem) uma importância fundamental esta era uma situação inaceitável, e já em 1958 o governo americano decidiu criar a NASA e concentrar todos os esforços da pesquisa espacial em uma única instituição, dotando-a de enormes fundos (que em certo ponto chegaram a 10% de todo o orçamento do governo americano) para tentar superar os russos na conquista do espaço. E com esta estrutura montada Kennedy lançou em 1960 o desafio da missão lunar.
Da parte dos próprios soviéticos contudo a situação também havia mudado, mas de forma diferente. O R-7 mostrou ser uma maravilha como veículo espacial, mas era um míssil muito ruim e logo ficou obsoleto. Os russos partiram para o desenvolvimento de foguetes com combustíveis estocáveis, dos quais Korolev não gostava, e a única forma que este encontrou para manter sua proeminência foi mantendo os sucessos no campo espacial, pois a propaganda para o regime advinda daí estava sendo bastante apreciada pelo Kremlin. Contudo, jamais houve uma unificação dos esforços de pesquisa como a ocorrida nos EUA, e seguindo a prática soviética para a área de tecnologia cada escritório de projeto (OKB) tinha que disputar as verbas destinadas aos programas de foguetes com os demais, levando a uma pulverização dos esforços. Então os vários OKB que trabalhavam com desenvolvimento de foguetes apresentavam propostas concorrentes para os lançamentos espaciais, e a escolha de quais delas receberiam fundos nem sempre seguia os melhores critérios técnicos ou mesmo de lógica. Em certo momento, por exemplo, chegaram a existir três programas diferentes de lançamento de cosmonautas para a lua sendo desenvolvidos ao mesmo tempo!
E como todo o desenvolvimento espacial soviético era feito pelos mesmos escritórios que desenvolviam os programas militares, tudo era mantido no mais absoluto sigilo até que houvesse boas notícias para serem divulgadas como propaganda. Qualquer outra informação podia servir ao serviço de inteligência do inimigo, e por isso era mantida a sete chaves.
No final o programa de Korolev para levar cosmonautas soviéticos à lua foi o que mais avançou (até porque seu escritório era o que tinha menos envolvimento com os novos programas militares), e por isso foi escolhido para a tentativa de vencer o desafio proposto por Kennedy. Mas cada rublo que Korolev conseguia para seu programa tinha que ser disputado com os demais chefes de OKB como Valentin Glushko, Vladmir Chelomey e Mikhail Yangel, todos trabalhando em diferentes programas de mísseis, que tinham maior prioridade.
Neste ambiente não precisava pensar muito para adivinhar quem venceria a corrida, e o resto é história. Korolev não obteve fundos nem mesmo para testar em bancada os conjuntos de motores de seu gigantesco foguete N1, e nunca conseguiu fazê-lo funcionar adequadamente, então os americanos passaram à frente na corrida espacial colocando Armstrong na lua em 1969. E os soviéticos pegaram os avanços de um outro programa espacial (o de Chelomey) e passaram a se concentrar no lançamento e estações espaciais cada vez mais complexas, acabando que por re-obter a vantagem na corrida espacial quando os americanos perceberam que não havia nada de útil a se fazer na lua após chegarem lá e iniciaram a arrojada (e afinal infeliz) aventura dos ônibus espaciais.
Depois a URSS se esfacelou, e assim chegamos aos dias de hoje.
Espero ter ajudado a colocar a corrida à lua em perspectiva para os interessados. Um grande abraço a todos,
Leandro G. Cardoso
* Leandro Guimarães Cardoso
Na verdade os programas espaciais das duas superpotências da época tinham naturezas diferentes e eram encarados pelos respectivos governos de formas muito distintas, e a compreensão disto coloca o assunto em uma perspectiva diferente da que normalmente é apresentada nas aulas de história e nos meios de comunicação. O objetivo deste texto é apresentar esta nova perspectiva pouco conhecida sobre este assunto tão interessante.
O início da corrida espacial pode ser traçado ao final da segunda guerra mundial, quando tanto os Estados Unidos como a União Soviética capturaram técnicos, documentos e componentes dos foguetes V-2 utilizados pelos nazistas durante a guerra.
Em ambos os países o primeiro passo foi reproduzir estes foguetes ao longo dos últimos anos da década de quarenta, e estes esforços serviram de base para todo o desenvolvimento da pesquisa espacial posterior. Nesta altura tanto os EUA quanto a URSS não davam tanta importância assim para seus programas espaciais, até porque não esperavam obter nenhuma vantagem econômica, militar ou mesmo tecnológica com eles. Então em ambos os lados os começos foram modestos.
À partir do início da década de cinqüenta a União Soviética começou a construir seu arsenal de bombas atômicas em contraposição ao arsenal americano, mas ao contrário dos Estados Unidos não possuíam uma grande força de bombardeiros estratégicos para lançá-las. Fizeram portanto grandes esforços no desenvolvimento de mísseis maiores e mais poderosos.
Na URSS de início sequer existia um programa espacial oficial, o que havia era o desenvolvimento de mísseis nucleares que pudessem equilibrar a vantagem estratégica americana em bombardeiros. A idéia de utilizar o maior destes mísseis em desenvolvimento (o R-7) para lançar um satélite artificial partiu de um dos engenheiros responsável pelo desenvolvimento dos foguetes, Mikhail Tikhonravov, tendo sido adotada entusiasticamente por seu chefe Sergei Korolev. Mas eles só conseguiram convencer o general Dmitry Ustinov, na época responsável pelo programa de mísseis (era o equivalente ao ministro da defesa), a aprovar o lançamento ao garantir que seria um bom teste do R-7 como míssil, sem afetar o andamento e o sigilo do programa militar.
Enquanto isso, nos EUA praticamente todo o esforço para o lançamento de satélites artificiais (o primeiro passo de qualquer programa espacial digno do nome) estava concentrado no programa Vanguard da US Navy, utilizando como base uma evolução do foguete Viking chamado Vanguard. Este não era o foguete mais poderoso (este seria o Atlas da USAF) e nem o que estava em estágio de desenvolvimento mais avançado (o Jupiter do US Army) à disposição dos americanos, mas foi escolhido justamente por ser o único de aplicação não-militar e portanto sem problemas de sigilo. Como se vê, os americanos tinham exatamente a mesma preocupação dos soviéticos em preservar seus mísseis militares em segredo, apenas tinham um pequeno programa “menos bélico” (embora mantido em grande parte pela US Navy) que podiam utilizar.
Os russos ganharam esta parte da corrida de forma completamente inesperada pelos americanos, que não imaginavam que eles estivessem tão avançados. Aí a coisa mudou totalmente de figura.
O governo americano começou a coordenar todos os programas de foguetes para tentar superar os soviéticos, que ainda não tinham um programa espacial definido, e lançaram seu primeiro satélite com um foguete Jupiter-C. Mas o R-7 era uma realização tecnológica tão notável que mesmo com os melhores foguetes que dispunham no momento (Atlas e Delta) os americanos não conseguiram virar o jogo e os russos em rápida seqüência lançaram satélites muito maiores que os americanos, colocaram o primeiro homem no espaço, lançaram as primeiras sondas interplanetárias, colocaram o primeiro objeto humano na superfície da lua e tiraram as primeiras fotos do seu lado oculto. Os americanos conseguiam seguir os russos de perto, mas não conseguiam fazer praticamente nada antes deles. Para uma sociedade em que o marketing tinha (e ainda tem) uma importância fundamental esta era uma situação inaceitável, e já em 1958 o governo americano decidiu criar a NASA e concentrar todos os esforços da pesquisa espacial em uma única instituição, dotando-a de enormes fundos (que em certo ponto chegaram a 10% de todo o orçamento do governo americano) para tentar superar os russos na conquista do espaço. E com esta estrutura montada Kennedy lançou em 1960 o desafio da missão lunar.
Da parte dos próprios soviéticos contudo a situação também havia mudado, mas de forma diferente. O R-7 mostrou ser uma maravilha como veículo espacial, mas era um míssil muito ruim e logo ficou obsoleto. Os russos partiram para o desenvolvimento de foguetes com combustíveis estocáveis, dos quais Korolev não gostava, e a única forma que este encontrou para manter sua proeminência foi mantendo os sucessos no campo espacial, pois a propaganda para o regime advinda daí estava sendo bastante apreciada pelo Kremlin. Contudo, jamais houve uma unificação dos esforços de pesquisa como a ocorrida nos EUA, e seguindo a prática soviética para a área de tecnologia cada escritório de projeto (OKB) tinha que disputar as verbas destinadas aos programas de foguetes com os demais, levando a uma pulverização dos esforços. Então os vários OKB que trabalhavam com desenvolvimento de foguetes apresentavam propostas concorrentes para os lançamentos espaciais, e a escolha de quais delas receberiam fundos nem sempre seguia os melhores critérios técnicos ou mesmo de lógica. Em certo momento, por exemplo, chegaram a existir três programas diferentes de lançamento de cosmonautas para a lua sendo desenvolvidos ao mesmo tempo!
E como todo o desenvolvimento espacial soviético era feito pelos mesmos escritórios que desenvolviam os programas militares, tudo era mantido no mais absoluto sigilo até que houvesse boas notícias para serem divulgadas como propaganda. Qualquer outra informação podia servir ao serviço de inteligência do inimigo, e por isso era mantida a sete chaves.
No final o programa de Korolev para levar cosmonautas soviéticos à lua foi o que mais avançou (até porque seu escritório era o que tinha menos envolvimento com os novos programas militares), e por isso foi escolhido para a tentativa de vencer o desafio proposto por Kennedy. Mas cada rublo que Korolev conseguia para seu programa tinha que ser disputado com os demais chefes de OKB como Valentin Glushko, Vladmir Chelomey e Mikhail Yangel, todos trabalhando em diferentes programas de mísseis, que tinham maior prioridade.
Neste ambiente não precisava pensar muito para adivinhar quem venceria a corrida, e o resto é história. Korolev não obteve fundos nem mesmo para testar em bancada os conjuntos de motores de seu gigantesco foguete N1, e nunca conseguiu fazê-lo funcionar adequadamente, então os americanos passaram à frente na corrida espacial colocando Armstrong na lua em 1969. E os soviéticos pegaram os avanços de um outro programa espacial (o de Chelomey) e passaram a se concentrar no lançamento e estações espaciais cada vez mais complexas, acabando que por re-obter a vantagem na corrida espacial quando os americanos perceberam que não havia nada de útil a se fazer na lua após chegarem lá e iniciaram a arrojada (e afinal infeliz) aventura dos ônibus espaciais.
Depois a URSS se esfacelou, e assim chegamos aos dias de hoje.
Espero ter ajudado a colocar a corrida à lua em perspectiva para os interessados. Um grande abraço a todos,
Leandro G. Cardoso
* Leandro Guimarães Cardoso
Nascido em 26/09/1964, formado em engenharia mecânica pela Universidade de Brasília (UnB) em 1987 e com pós-graduação em análise estrutural pela COPPE entre 1988 e 1991. Trabalhou no departamento de projetos de uma fábrica de motores até 1997, e desde então é sócio de uma empresa de consultoria em projetos e engenharia, na qual ocupa o cargo de diretor técnico. Atua na implantação de novas tecnologias, como modelamento 3D e a simulação, nos mais variados segmentos da indústria. Entusiasta de história, assuntos espaciais em geral e tecnologia de foguetes em particular desde criança, lê tudo que encontra sobre o assunto. Escreve artigos de divulgação técnica e ficção científica.
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