Clima, Versão 2.0

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Segue abaixo uma matéria publicada na “Revista Pesquisa FAPESP” (edição 177) destacando que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) está desenvolvendo um ambicioso programa de computador para a modelagem do clima, coordenado pelo climatologista Carlos Nobre.

Duda Falcão

CIÊNCIA - AMBIENTE

Clima, Versão 2.0

Programa integra fenômenos da atmosfera,
dos oceanos e da superfície terrestre

Carlos Fioravanti
Edição Impressa 177
Novembro de 2010

© NASA
Queimadas (pontos vermelhos) na Amazônia em 2004:
fumaça dificulta a formação de nuvens de chuva

Está em desenvolvimento no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) um ambicioso programa de computador para a modelagem do clima, coordenado pelo climatologista Carlos Nobre, que pela primeira vez integra, no Brasil, informações sobre o fluxo de umidade, calor e gás carbônico na atmosfera, nos oceanos e na superfície terrestre globais. Para utilizar tal programa de modelagem do clima global para gerar cenários de mudanças climáticas, entre outros, foi comprado por R$ 50 milhões (R$ 15 milhões da FAPESP e R$ 35 milhões do Ministério da Ciência e Tecnologia) um supercomputador da fabricante norte-americana Cray, capaz de realizar 224 trilhões de operações por segundo. O novo supercomputador chegou em outubro ao Brasil, em 84 caixas, e neste mês já deve estar inteiramente montado no campus do Inpe em Cachoeira Paulista, cidade do Vale do Paraíba, interior de São Paulo. A capacidade de processamento do novo computador é 50 vezes maior que a do computador em uso no Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do INPE.

A nova máquina deve abrigar um programa de computador chamado oficialmente de Modelo Brasileiro do Sistema Climático Global, que terá como função principal servir como base para pesquisas relativas aos efeitos das mudanças climáticas sobre as atividades humanas. Desse modo, por ter a capacidade de projetar cenários climáticos plausíveis em 10 (com resolução espacial de até 10 x 10 km) ou 100 anos (com resolução espacial de até 50 x 50 km), poderá servir para agricultores planejarem o desenho da agricultura brasileira no futuro, para os economistas anteciparem o risco de seus negócios e para gestores públicos adequarem o transporte e a ocupação das cidades e das zonas costeiras.

Alerta – “Esperamos que as conclusões do novo modelo climático ajudem a reduzir os danos causados pelas mudanças climáticas. Vão surgir epidemias que poderíamos evitar? Precisamos de mais hidrelétricas? Ou devemos reforçar a produção de energia eólica ou solar?”, diz Paulo Nobre, pesquisador do INPE e coordenador do modelo brasileiro do sistema climático global. “Os recentes episódios climáticos intensos são um alerta, reforçando a necessidade de todos nós produzirmos projeções climáticas mais confiáveis para evitar danos ainda maiores.” Ele se refere à seca que prejudicou a safra de trigo no Rio Grande do Sul no início do ano, à que fez o leito dos rios Amazonas e Negro recuar como nunca antes e a enchentes como a do Paquistão, que deixou 4 milhões de pessoas sem casa.

A construção do novo programa de previsão climática envolve cerca de 50 pesquisadores, mobilizados por meio da Rede Brasileira de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais – Rede Clima e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Mudanças Climáticas (INCT-MC), sediado no INPE. Os primeiros resultados indicam as dimensões preocupantes das alterações climáticas em andamento no país. Uma versão preliminar do módulo de superfície, em elaboração na Universidade Federal de Viçosa (UFV) e no INPE, mostrou que o desmatamento na Amazônia e no Cerrado pode aumentar e depois reduzir o volume de água dos principais rios de uma região, por causa das alterações na circulação de massas de ar na baixa atmosfera; a vazão no rio Araguaia, por exemplo, aumentou 25% (ver “Terra seca, rios cheios”, Pesquisa FAPESP nº 164, outubro de 2009). Paulo Nobre e outros pesquisadores do INPE, com uma versão intermediária do novo modelo climático, alimentado com dados dos últimos 20 anos de variação climática no continente e nos oceanos, mostraram que a perda hipotética de toda a Floresta Amazônica reduziria a quantidade de chuvas sobre a Amazônia, em razão do aumento da frequência do fenômeno El Niño no Pacífico equatorial.

O projeto do modelo brasileiro do sistema climático global envolve intensa colaboração internacional. Um exemplo é o programa que avalia o impacto da fumaça das queimadas sobre o clima, desenvolvido pelos pesquisadores Karla Longo e Saulo Freitas, do INPE, e o que trata do fogo florestal, resultado do trabalho conjunto de uma equipe do INPE e outra do Hadley Centre, da Grã-Bretanha. Uma versão preliminar dos módulos que avaliam o impacto das plumas de fumaça e das queimadas florestais no Brasil sobre o clima global já está em testes no modelo do sistema climático do Hadley Centre. Segundo Nobre, esses dois programas representarão a contribuição científica brasileira original para a formulação dos cenários de mudanças climáticas que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a instituição científica mundial de maior peso nessa área, pretende apresentar em 2014. “Os climatologistas da África do Sul também estão desenvolvendo um modelo computacional da atmosfera global, que utilizará o módulo de superfície desenvolvido pela UFV e INPE”, comenta Nobre. Não é a primeira vez que os climatologistas brasileiros criam programas de propósitos ousados. Em 2007, uma equipe do INPE coordenada por José Marengo concluiu um modelo climático regional que detalhou as informações de modelos globais e mostrou uma elevação da temperatura média anual e da intensidade de chuvas na América Latina (ver “Um Brasil mais quente”, Pesquisa Fapesp nº 130, dezembro de 2006).

Em três anos, quando o novo modelo climático global estiver pronto, o Brasil entrará no limitado grupo de países aptos a lidar com informações em primeira mão sobre o comportamento do clima no próprio território e verificar como o que se passa aqui ecoa no mundo, conciliando fenômenos locais e globais. Por enquanto, poucos países – Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Japão, Canadá e Austrália – têm seus próprios modelos climáticos, vistos como estratégicos porque facilitam a identificação de problemas locais como a formação de tempestades, secas ou chuvas intensas. “Não podemos esperar que cientistas de outros países resolvam nossos problemas”, afirma Marcos Heil Costa, professor da UFV que coordena o desenvolvimento do módulo de superfície. “No Brasil”, diz ele, “os impactos das mudanças do uso do solo, como o desmatamento na Amazônia e no Cerrado, podem ser mais intensos que os causados pela elevação dos níveis de gás carbônico na atmosfera”.

© FABIO COLOMBINI
Espalhando o calor: mares e nuvens
evitam temperaturas mais altas ou baixas

Como um dos projetos do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais, o modelo computacional climático brasileiro deve reunir três módulos distintos, que analisam os fenômenos climáticos que se passam na atmosfera, no oceano e na superfície terrestre. Segundo Nobre, uma parte do novo programa, reunindo a componente atmosférica do modelo global do CPTEC e a oceânica do modelo oceânico (MOM4) do Geo¬physical Fluid Dynamics Laboratory, da Agência Nacional Atmosférica e Oceânica (NOAA), dos Estados Unidos, já funciona no supercomputador NEC do INPE, que fornece as previsões globais de temperatura da superfície do mar e eventos como o El Niño, no oceano Pacífico, com meses de antecedência. Em breve, esse módulo computacional que une as previsões do clima na atmosfera e nos oceanos deve começar a funcionar no supercomputador Cray do INPE, que deve entrar em operação no início de 2011 em Cachoeira Paulista.

Programas Livres – Esse é só o começo. O núcleo oceano-atmosfera deve aos poucos integrar-se às outras partes do programa, que tratam dos impactos da vegetação, dos incêndios florestais, dos rios, do ciclo do carbono na superfície e do gelo marinho sobre o clima no Brasil e no mundo. “Até três anos atrás nenhum de nós acreditava que daria para fazer no Brasil um modelo computacional capaz de rodar em máquinas de alto desempenho, com centenas de processadores trabalhando integrados ao mesmo tempo”, diz Costa. O intenso noticiário sobre os prováveis impactos das mudanças climáticas alertou os órgãos públicos e mobilizou os pesquisadores em torno de um projeto pioneiro.

O novo programa do clima não saiu do zero. A versão 1.0, adaptada de um programa sobre o clima na atmosfera, já funcionava nos computadores do CPTEC. Os programas complementares para a versão 2.0 já estavam prontos ou semiprontos – e foram construídos no INPE, como o caso do modelo de química atmosférica e aerossóis, ou eram liberados sem custos por instituições como a NASA, a agência espacial dos Estados Unidos, o Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica (NCAR), o Instituto Woods Hole de Oceanografia e as universidades Princeton e de Wisconsin, também dos Estados Unidos. Parcerias com o Instituto Indiano de Ciências (IISc) e o Conselho para Pesquisa Científica e Industrial (CSIR), da África do Sul, também fazem parte do projeto. Só os programas, claro, não bastavam se os pesquisadores não soubessem lidar com eles. Além de organizar os grupos e acertar direções comuns, era preciso adequar os programas às necessidades brasileiras e entender – às vezes ajustar – as equações matemáticas que regem as informações e indicam, por exemplo, a intensidade da chuva no norte ou sul do país.

Tradutor do Tempo – Outro desafio era criar metodologias adequadas para aproveitar bases de dados já prontas, como a do Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), um programa internacional de pesquisas iniciado no final dos anos 1990, e da rede de pesquisa com boias ancoradas no oceano Atlântico tropical (Pirata), iniciado em 1998 em parceria do Inpe e a Diretoria de Hidrologia e Navegação com a NOAA nos EUA e o IRD e o MetéoFrance na França. Algo igualmente difícil, para qualquer grupo de pesquisa: integrar as informações de grupos que trabalhavam com enfoques diferentes, enfatizando a vegetação, oceanos, rios ou ações humanas como o desmatamento e agropecuária, e em escalas geográficas diferentes, com uma visão mais global ou mais detalhada, de acordo com as próprias necessidades.

Um programa que interage com os outros programas, chamado acoplador de fluxos, resolveu esse problema. “O acoplador de fluxos é como um tradutor on-line que informa o cálculo de chuva concluído pelo módulo atmosférico para o programa de superfície. O programa de superfície, por sua vez, vai trabalhar essa informação, que vai indicar que os rios vão encher mais, e em seguida avisa o programa oceânico de que tem mais água chegando”, explica Nobre. Desse modo, cada módulo pode ter certa independência de escala e linguagem de programação, desde que possa interagir com o acoplador de fluxos. Essa abordagem diluiu as diferenças entre as partes do modelo computacional climático. “Até algumas décadas atrás a ciência do clima não olhava para o oceano, que é muito mais difícil de estudar que a atmosfera, além de muito grande”, diz Edmo Campos, pesquisador do Instituto Oceanográfico (IO) da Universidade de São Paulo (USP) que coordena um grupo da USP que colabora com o desenvolvimento do módulo de previsão oceânica. “Os oceanos demoram mais que a atmosfera ou o continente para aquecer e resfriar. Não apresentam variações tão bruscas de temperatura, mas depois a liberação de calor pode também ser mais demorada.”

Os programas de previsão climática nos oceanos chegam em boa hora, porque vários estudos indicam que a temperatura das águas do Atlântico Sul, que banha o litoral sul e sudeste do Brasil, está subindo. Uma das razões, confirmada pelo programa da equipe da USP, é que o Atlântico está recebendo mais água quente do oceano Índico, por causa de mudanças na circulação dos ventos. Águas mais quentes no Atlântico Sul aumentam o risco de chuvas torrenciais como as de abril de 2010 e de furacões como o Catarina. Fenômeno raríssimo no Brasil, o Catarina chegou em março de 2004, depois de formar ondas de cinco metros de altura em alto-mar, destruindo 100 mil casas e plantações de arroz e banana em 40 municípios de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

© NOAA
O Catarina, março de 2004: outros podem vir

Mas não bastam só programas de computador para evitar tragédias como essa. “Antes de o Catarina chegar ao continente, o pessoal do NOAA avisou que a pressão estava muito baixa e o olho do furacão estava se formando, mas não tínhamos como confirmar. Falhamos na previsão e não tínhamos nenhum instrumento de monitoramento na região. A rigor, ainda não temos”, afirma Campos. Segundo ele, para contornar essa lacuna, uma equipe do INCT para Mudanças Climáticas está trabalhando com os engenheiros de uma empresa do Rio de Janeiro na montagem de uma boia de fibra de vidro com três metros de diâmetro que deve ser ancorada com rodas de trem a 300 quilômetros da costa catarinense numa lâmina d’água de 4.000 metros de profundidade, em junho ou julho de 2011, para acompanhar a variação de temperatura e salinidade da camada superior do oceano e variáveis atmosféricas (vento, temperatura, pressão, umidade e radiação solar) à superfície.

A integração de programas sobre o clima na atmosfera, nos oceanos e na superfície terrestre deve dar uma visão mais completa das relações dos fenômenos climáticos no Brasil e no planeta. “Em setembro, em uma palestra na Feira de Agronegócios de Londrina, mostrei como o desmatamento da Amazônia poderia aumentar a variabilidade climática no Paraná”, conta Nobre. “Depois perguntei se não deveríamos incluir o custo da manutenção da Floresta Amazônica em cada saca colhida no Paraná. Naquele momento eu não estava defendendo a Amazônia, mas a produção de alimentos, ameaçada por enchentes e secas mais intensas.”

A Água do Amazonas – As dúvidas sobre problemas conceituais devem se dispersar. Um deles: no computador, uma linha chamada termoclima, que separa águas quentes e frias de acordo com a profundidade, indica que há mais água fria no meio do mar, não nas bordas, como se vê na realidade. “Os modelos oceânicos talvez estejam falhando em reproduzir a estrutura térmica real dos oceanos, entre outros motivos porque não consideram a descarga de água doce, e mais fria, dos rios Amazonas, Orinoco, São Francisco e Prata, cujo efeito vamos agora examinar com atenção”, diz Nobre. “Um estudo recente da Science mostrou que a descarga de água do Amazonas aumenta 10 vezes o consumo de CO2 na região do Atlântico próxima à foz, porque a atividade biológica induzida pelos nutrientes carreados pelas águas fluviais absorve mais CO2. Não imaginávamos esse efeito nem esse volume. Pensávamos apenas no efeito térmico para o balanço de CO2 entre a atmosfera e o mar.”

Paulo Nobre espera que o número de usuá¬rios do programa de previsão climática cresça rapidamente. A possibilidade de cada módulo poder funcionar também em computadores comuns – até mesmo em notebooks, com algum esforço – e ser distribuído gratuitamente, com o manual de instruções, deve facilitar o uso amplo. “Nosso objetivo é preparar centenas de pessoas para trabalhar com esses programas no Brasil”, diz Costa. “Talvez a gente consiga criar um quadro de especialistas do mesmo nível que em outros países, já que se trata de um projeto estratégico para o país. Estamos hoje onde outros grupos estavam há 10 anos, mas em alguns anos queremos estar equiparados com os países que têm modelos do sistema climático global próprios.”

O PROJETO

Brazilian model of the global climate system – nº 09-50528-6

Modalidade
Projeto Temático PFPMCG/Pronex FAPESP

Coordenador
Carlos Afonso Nobre - INPE


Fonte: Revista Pesquisa FAPESP - Edição 177 - Novembro 2010

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