DECRETO Nº 10.631/2021: Mais um "puxadinho" para viabilizar as operações do CEA.

Olá, leitor!

Em 19/02/2021, foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) o Decreto nº 10.631, de 18 de fevereiro de 2021, o qual altera o Decreto nº 2.295, de 4 de agosto de 1997, que, por sua vez, regulamenta o disposto no art. 24, inciso IX, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e dispõe sobre a dispensa de licitação nos casos que possam comprometer a segurança nacional.

Inicialmente passado sem alarde por parte das principais entidades do Programa Espacial Brasileiro (PEB), esse decreto e sua principal inovação são mais uma daquelas jaboticabas, mais um "puxadinho" encomendado e passado em silêncio para não chamar a atenção dos demais "armengues" que vem sendo produzidos para viabilizar a operação do Centro Espacial de Alcântara (CEA). Esses procedimentos criativos vão se somando e acumulado na balança da insegurança jurídica e dos riscos legais que circundam tal processo, dada a forma açodada e amadora com que o assunto vem sendo abordado e conduzido.

Imagem de "puxadinhos". (Fonte: Jornal Cidade)

Assim como em um projeto de construção mal elaborado, as coisas vem sendo feitas a toque-de-caixa e, a medida que os erros e incompletudes se apresentam, vai-se tentando remendar o remendado.

Da história por trás do Decreto

Isso tudo começa com a publicação do Edital do Chamamento Público nº 02/2020 da Agência Espacial Brasileira (AEB), sobre o qual dediquei a primeira metade do primeiro episódio do Podcast Espacial Brasileiro, o qual sugiro fortemente que o leitor ouça para entender minuciosamente o nível "armenguístico" que estamos falando:

Imagem do 1o episódio do Podcast Espacial Brasileiro. (clique no link ou na imagem para ouvir)

Entre as anormalidades e os vícios que vimos e apontamos no episódio, temos os seguintes:

- Edital referenciando uma nota técnica, que é um documento interno da AEB. Caso essa nota técnica tivesse tanta relevância o Presidente da AEB deveria transformá-la em uma Portaria (documento de domínio público) ao invés de basear um Edital tão importante em um documento interno da AEB. Posteriormente à publicação do Edital da AEB, uma Portaria abrangendo parte das informações da nota técnica foi publicada, mas o edital permaneceu referenciando a nota técnica ao invés da Portaria que regulamenta o processo de licenciamento para operação de lançamentos no Brasil;

- Edital deveria ter sido publicado conjuntamente entre a AEB e o COMAER, pois o processo de licenciamento e contratualização para lançamentos no CEA é um procedimento que envolve os dois entes, existindo uma interdependência das ações que demanda tal abordagem, sob pena de um contrato firmado entre o COMAER com um operador referenciar um instrumento convocatório emanado por outro Órgão, o que seria uma aberração legal, dado o princípio da vinculação do contrato ao instrumento convocatório;

- Edital referencia Acordo de Cooperação da AEB com o Comando da Aeronáutica (COMAER) e não cita como obter tal documento que, a princípio, não foi publicizado nem pela AEB, nem pelo COMAER, sendo portanto cláusula secreta de um chamamento público;

- Edital e seus anexos omitem a relação de bens e dos serviços a serem ofertados para o uso da iniciativa privada, bem como os respectivos custos, ou seja, o operador só vai saber o que vai operar e quanto custa, no momento da contratação. Esses bens e serviços foram custeados e mantidos pelo erário e os valores relativos ao seu uso comercial deveriam estar explícitos para os interessados na contratação e para a sociedade;

- Edital referencia a Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, a Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016 e o Decreto nº 9.283, de 7 de fevereiro de 2018, mas tais instrumentos não podem ser aplicados nesse caso, pois o uso comercial do CEA é uma atividade de exploração comercial e não uma atividade de desenvolvimento tecnológico ou de transferência tecnológica, até mesmo porque o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas impede que as empresas que venham a operar de Alcântara possam transferir tecnologias para o Brasil;

- Edital prevê processo de contratualização e concessão de uso de bens e de serviços de entidades da Administração Pública Federal, no caso o CEA, mas referencia as leis e decretos de inovação, quando na verdade deveria referenciar a Lei de Licitações (Lei 8.666/93);

Este último é o objeto da nossa análise no presente artigo e o motivo da publicação do "Decreto Puxadinho".

Na época, diante de tantas inconsistência, (eu, Rui Botelho, cidadão) cheguei  a elaborar uma minuta de impugnação do Edital, mas, por conselho de algumas pessoas ligadas ao PEB, não o fiz para não sofrer a pecha de "antipatriota", de "jogar contra o PEB" e outras alcunhas que sabemos que o ambiente político nacional extremamente ideologizado proporciona a todos que "não dizem amém". 

Como aqui no BS a gente "mata a cobra e mostra o pau", seguem abaixo a primeira página e os principais tópicos da minuta de impugnação:
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Imagem da 1a página e dos principais tópicos da minuta de impugnação ao Edital nº 02/2020, elaborada por Rui Botelho e não submetida à AEB.

Me arrependo de não ter apresentado a impugnação, não porque quisesse atrapalhar o andamento das coisas, mas para fazer a AEB refletir que estava, mais uma vez, metendo os pés pelas mãos.

Cabe destacar que outro erro do edital é o fato de não existirem no mesmo as regras para apresentação de solicitações de esclarecimentos, interposição de recursos, impugnações e os seus respectivos prazos legais. Lembrando ainda que qualquer cidadão pode impugnar qualquer chamamento público ou processo seletivo / licitatório, caso identifique vícios e/ou irregularidades.

Decreto nº 10.631/21: O puxadinho do puxadinho!

O Decreto nº 10.631/21 introduz na regulamentação do Art. 24 da Lei nº 8.666/93, sobre a dispensa de licitação nos casos que possam comprometer a segurança nacional, o item que não existia no decreto anterior (Decreto nº 2.295/97) que é o inc. V do Art. 1o:

Art. 1º Ficam dispensadas de licitação as compras e contratações de obras ou serviços quando a revelação de sua localização, necessidade, característica de seu objeto, especificação ou quantidade coloque em risco objetivos da segurança nacional, e forem relativas a:

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IV - lançamento de veículos espaciais e respectiva contratação de bens e serviços da União para a sua operacionalização.

Isso corrobora um dos problemas encontrados no Edital nº 02/2020/AEB que apontamos no episódio 1 do Podcast Espacial Brasileiro e na minha minuta de impugnação, que é o fato de o Edital não referenciar a Lei 8.666/93 e isso impossibilitar a concessão de uso das instalações e dos serviços existentes no CEA para fins de contratualização com o operador privado, que vai pagar pelo uso de tais recursos da União, o que deveria ocorrer via modalidade licitatória e não por dispensa de licitação, como omitido no Edital da AEB.

Agora com a inserção desse puxadinho, teoricamente tudo estaria resolvido, pois como o novo dispositivo introduzindo a dispensa de licitação para fins de contratação, a incompatibilidade por nós apontada estaria resolvida, certo?

Errado!

Primeiro porque o Edital (da AEB) que baseia o chamamento público e as contratações dele derivadas não vincula o referido chamamento ao império do Inc. XXI do Art. 37 da Constituição Federal, regulamentado pela Lei 8.666/93, a qual, também rege os procedimentos excepcionais referentes aos casos de contratação sem utilização do processo licitatório como regra: as dispensas de licitação e as inexigibilidades, o caso do chamamento público do edital!

A inexigibilidade é um procedimento para fins de contratação onde não há condições de disputa e o ente governamental deseja maximizar a participação do maior números de interessados, o que é justamente o que se deseja para o uso comercial do CEA. Mesmo não sendo um procedimento licitatório, mas uma excessão a regra / dever de licitar, é a Lei 8.666/93 que traz a regulamentação desse tipo procedimento, juntamente com os decretos mencionados acima.

Além disso, a Lei 8.666/93 regulamenta toda a relação e obrigações entre a Administração Pública e o privado, seja na contratação de bens ou serviços, seja na concessão de uso onerosa, inclusive tipificando os crimes contra a Administração nos casos relacionados a todo o processo de contratualização com o Estado. Por mais que os órgãos envolvidos inovassem e criassem novas normas nessa relação, o simples ato de investigar e punir alguma irregularidade ficaria prejudicado, haja vista que é na Lei 8.666/93 que se encontram os procedimentos para tal.

Assim, como proceder com essa lacuna já que o Edital que motiva as contratações posteriores para fins de concessão de uso do CEA não está amparado na Lei 8.666/93?

Portanto, resta claro um vício de origem insanável na forma e no conteúdo do referido processo de chamamento público que não é solucionado pelo dispositivo incorporado pelo Decreto nº 10.631/21. Ou seja, ainda que tenham tentado trocar a regra do jogo durante o seu andamento, isso não vai resolver o problema.

Outro aspecto questionável seria o de se macular e/ou banalizar o conceito de segurança nacional para permitir o lançamento pago por empresas privadas, que não estão exatamente vinculados à segurança nacional, através desse "instrumento". 

Será que contratação do CEA por parte de uma empresa estrangeira para o lançamento de um veículo lançador, lançando um satélite comercial estrangeiro que não vai prestar nenhum tipo de serviço para o Brasil é realmente uma atividade de segurança nacional?

Caso fosse uma empresa contratada pelo Governo Brasileiro para lança um satélite militar e/ou civil do nosso território, seria até compreensível, mas exceto esse caso, como a concessão de uso de instalações e serviços do CEA deixaria de ser uma atividade meramente comercial para se tornar uma atividade de segurança nacional?

Mas no geral, não havendo essa delimitação, não seria isso uma "forçação de barra" muito grande?

Parece que sim, pois todos os demais dispositivos do mesmo Art. 1o do Decreto nº 10.631/21 e do Decreto nº 2.295/97 tratam da permissão de aquisições e contratações de serviços por parte de entes governamentais para atender à questões de segurança nacional, sendo o único item que trata da concessão de uso onerosa de bens e serviços do Estado é o Inc IV, trazido pelo novo decreto:

Art. 1º  Ficam dispensadas de licitação as compras e contratações de obras ou serviços quando a revelação de sua localização, necessidade, característica de seu objeto, especificação ou quantidade coloque em risco objetivos da segurança nacional, e forem relativas a: (Redação dada pelo Decreto nº 10.631, de 2021) 
 
I - aquisição de recursos bélicos navais, terrestres e aeroespaciais; 
 
II - contratação de serviços técnicos especializados na área de projetos, pesquisas e desenvolvimento científico e tecnológico; 
 
III - aquisição de equipamentos e contratação de serviços técnicos especializados para as áreas de:       (Redação dada pelo Decreto nº 10.631, de 2021) 
a) inteligência;      (Incluído pelo Decreto nº 10.631, de 2021) 
b) segurança da informação; (Incluído pelo Decreto nº 10.631, de 2021) c) segurança cibernética; (Incluído pelo Decreto nº 10.631, de 2021) 
d) segurança das comunicações; e (Incluído pelo Decreto nº 10.631, de 2021) 
e) defesa cibernética; e  (Incluído pelo Decreto nº 10.631, de 2021)  
 
IV - lançamento de veículos espaciais e respectiva contratação de bens e serviços da União para a sua operacionalização. (Incluído pelo Decreto nº 10.631, de 2021)

Isto posto, não identificamos como a "contratação de bens e serviços da União" para fins comerciais do CEA, fato de conhecimento público, "coloque em risco objetivos da segurança nacional", havendo ai talvez uma grande confusão de conceitos entre  "objetivos de segurança nacional" e "objetivos de interesse nacional".

O simples fato da concessão de uso onerosa para fins comerciais de lançamento de veículos espaciais ser em área sob jurisdição de órgão de Estado vinculado à segurança nacional, não faz dessa atividade um "objetivo de segurança nacional".

Concordo que é preciso viabilizar o quanto antes o uso do CEA e que essa operacionalização é algo importante para o País, mas é preciso que isso não seja feito ao arrepio das Leis ou através de procedimentos casuísticos, que atenuam brevemente ou contornam questões legais mais basilares que deveriam ter sido enfrentadas anteriormente, mas que contribuem ainda mais para a criação de riscos legais e operacionais altamente impactantes.

Os puxadinhos vão para onde?

No entanto leitor, sabendo o quanto os entes do PEB gostam de viver perigosamente, sinceramente, não sei o que virá daqui para frente.

Agora nos resta esperar para saber:

1) a AEB irá revogar o edital vigente e publicar, conjuntamente com o COMAER, um novo instrumento convocatório com as devidas correções?

2) vão buscar criar um novo puxadinho para fazer um puxadinho dos puxadinhos atuais?

3) vão buscar empurrar isso tudo com a barriga e fingir que não sabem de nada ou que não é com eles?

4) vão classificar tudo como sigiloso e não vão divulgar mais nada?

5) vão criar um mix dos itens 2, 3 e 4 acima?

A resposta para isso estará nas cenas dos próximos capítulos e tudo, ou mesmo nada, poderá acontecer nessa "terra de piratas" (FALCÃO, 2019), onde o gostoso do "jogo" é buscar contornar o império da lei, nem que seja fazendo puxadinhos nela!

Vamos aguardar para ver o que vai acontecer!

Rui Botelho
(Brazilian Space)

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