Será Esse o Começo de Uma Militarização Disfarçada (ou Explícita) do Espaço?

Olá leitor!

Trago agora para você um interessante artigo na área de Direito Espacial escrito pelo mestre em mecatrônica pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Rui Botelho. Vale a pena conferir.

Duda Falcão

Será Esse o Começo de Uma Militarização
Disfarçada (ou Explícita) do Espaço?

Por Rui Botelho*

Recentemente, um artigo intitulado “Por que os Estado Unidos necessita de uma ‘Guarda Costeira’ no espaço” (‘Why the US needs a ‘Cost Guard’ in Space’) [1], de Michael R. Sinclair1, me chamou a atenção e rendeu algumas horas de reflexão e de pesquisa sobre o tema e suas implicações. O documento discorre, em linhas gerais, sobre a necessidade (americana) de fiscalizar e de regular as atividades espaciais, considerando o emergente e promissor crescimento da exploração espacial, na órbita terrestre e além desta, em um futuro próximo. Com base no emprego análogo das leis marítimas [2] ao cenário espacial, dadas a carência / incompletude de legislação internacional para esse ainda novo campo da atuação da humanidade, o autor propõe a criação, pelos Estados Unidos, de uma ‘Guarda Costeira’ no espaço, que centralizasse as atividades dispersas atualmente entre diversos entes americanos.

Conforme enfatizado no texto de Sinclair, são sabidas e notórias muitas lacunas formais, legais e operacionais com relação à regulamentação e, principalmente, quanto a fiscalização das atividades espaciais, inclusive, uma estrutura de suporte e resgate de espaçonaves e tripulações em perigo, por exemplo. Seguindo esse raciocínio, se os problemas de pirataria, de contrabando, de tráfico e de naufrágios marítimos ainda são comuns na navegação marítima atual, manter uma guarda costeira para patrulhar o seu mar territorial, zonas marítimas de interesse comercial e zona econômica exclusiva, ao largo da sua costa, a analogia com a fiscalização da exploração comercial do espaço, em uma visão mais simplista e ingênua, faz todo sentido em um cenário de aumento crescente das atividades espaciais.

A título de ilustração, dentre os entusiastas da área espacial e de ficção científica, quem não lembra da sequência icônica de cenas do filme “Perdido em Marte”2, onde o personagem principal discorre sobre o emprego das leis marítimas internacionais para o espaço e identifica que sua situação era de um pirata espacial? Por mais que a ficção nos pareça não plausível, guardadas as liberdades autorais para a elaboração da estória, no ritmo que a ciência e a tecnologia avançam, situações similares ou outras mais complexas (como a necessidade de resgate de missões / operações tripuladas, por exemplo), podem ter que ser enfrentadas mais rápido do que pensamos.

No entanto, a analogia simplista da proposta de Sinclair encontra o seu primeiro tendão de Aquiles no que diz respeito aos limites físicos de atuação de tal entidade. Como é de conhecimento público e salientado acima, a atuação da guarda costeira americana (e suas congêneres em outros países) está limitada, pelas leis marítimas internacionais, ao mar territorial e águas interiores (até 12 milhas da costa), zona contígua (até 12 milhas do limite do mar territorial) e a zona econômica exclusiva - ZEE (até ~ 200 milhas podendo, em alguns casos, ser estendida ao limite da plataforma continental). Fora desses limites, ou seja, em águas internacionais, nenhum tipo de posse de recursos lá existentes, na superfície, nas profundezas ou no subsolo, é garantida, irrestrita ou indefinidamente, para governos ou empresas.

Nesse sentido, seguindo estritamente a analogia aos limites marítimos de atuação da guarda costeira e as leis marítimas internacionais, qual seria o limite físico de atuação da guarda espacial? Seria uma projeção espacial do território americano, somado aos limites costeiros de atuação da sua guarda costeira, sobre a região orbital próxima do planeta, criando uma “zona econômica exclusiva orbital” (ZEEO)? Qual o limite de distância (altitude) dessa “ZEEO”? Seria ela um prolongamento do espaço aéreo nacional americano, acima da atmosfera?

Se o pensamento for esse, o mesmo parece ingenuamente razoável. Ou seja, os estadunidenses querem controlar, fiscalizar e suportar atividades sobre a região orbital acima do seu território e do seu espaço aéreo, o que parece justo, ainda que improvável.

Contudo, a analogia com as leis marítimas e com a atuação da guarda costeira acaba por aí. É óbvio que os limites territoriais marítimos de tráfego ou acesso possíveis nos mares e oceanos da Terra não podem ser replicados e aplicados em órbita, exceto para posições geoestacionárias, dado que a trajetória orbital dos artefatos espaciais operando em órbitas baixas (LEO – Low Earth Orbit) ou órbitas médias (MEO - Medium Earth Orbit) obedecem as leis da dinâmica gravitacional, o que torna impossível aos EUA controlar ou restringir a passagem de objetos espaciais em uma imaginária “ZEEO”.

Expandindo tal pensamento ao absurdo, olhando agora pelo viés político-econômico, essa analogia pretendida pelos americanos com as leis marítimas se aplicaria a todas as nações e, em tese, todos os países poderiam reivindicar o caráter de soberania e de uso econômico de suas respectivas ZEEOs. Esse raciocínio levaria a crer que, teoricamente, o(s) ente(s) fiscalizador(es) poderia(m) ainda impedir ou tentar impedir a operação, apreender, abater / destruir, tornar inoperante (total, parcial ou momentaneamente) ou, surrealisticamente falando, cobrar pedágios de objetos não autorizados, de passagem por suas respectivas ZEEOs, tornado ainda mais complexo ou inviabilizando a operação de sistemas espaciais, até mesmo com a proliferação de detritos espaciais oriundos de objetos destruídos ou tornados inoperantes, fora os conflitos diplomáticos resultantes de situações duvidosas de invasão de limites.

Por outro lado, guardada a boa-fé do autor, ainda que este apresente ao final do texto um parágrafo destacando (em negritos) que “o ponto de vista apresentado na” sua “análise não representa o pensamento da Guarda Costeira do Estado Unidos e do Departamento (de Segurança Nacional | Department of Homeland Security – DHS, a quem a USCG é subordinada)”, cabe lembrar que, mesmo tendo um caráter humanitário de salvamento e resgate amplamente reconhecidos, a Guarda Costeira Americana é uma instituição militarizada como suas outras irmãs: Marinha (United States Navy – USN0; Exército (United States Army – USA); Fuzileiros Navais (United States Marine Corps – USMC);e Força Aérea (United States Air Force – USAF).

Além disso, o próprio autor destaca, talvez como contraponto em defesa do seu opinativo, o recente e preocupante pronunciamento do Presidente Trump (em maio de 2018) enfatizando a necessidade de criação de uma sexta força militar específica para “lutar no espaço” e “defender os interesses americanos” fora da atmosfera terrestre.

Expandindo essa atuação para além da órbita terrestre, ou seja, para todo o universo (asteroides, cometas, planetas, luas e etc), soma-se às propostas da guarda espacial ou da criação de uma força espacial a proposta de Lei aprovada em 2015 pelo Congresso americano de exploração e utilização de recursos espaciais (Space Resource Exploration and Utilization Act of 2015)3. Por essa Lei, cuja validade legal em termos de relações internacionais é tratada no artigo reproduzido no Blog Brazilian Space [3], empresas americanas teriam garantidos os direitos de exploração e de propriedade sobre asteroides e seus recursos minerais. Esse “combo” de ações e regramentos nos conduz imediatamente a inferir o que o Presidente americano quis dizer com “defender os interesses americanos” no espaço.

Assim, voltando do cenário do absurdo, e considerando os pressupostos e incompletudes apresentados acima, o emprego análogo estrito dos princípios das leis marítimas e da atuação da guarda costeira americana, cabe questionar como os EUA poderia criar, unilateralmente, tal entidade e definir seus limites de atuação, sem que se interprete como uma militarização do espaço, para garantir seus os interesses econômicos com exclusividade? Como não pensar que isso poderá iniciar uma nova “corrida do ouro” ou um neo-colonialismo extrativista no espaço, como ocorrido nos séculos XVI a XIX aqui na Terra nas Américas, na Áfriica e na Ásia? Como não imaginar tudo isso como uma declarada e explícita iniciação de uma escalada militar / armamentista espacial para a manutenção dos interessas das potências espaciais e suas empresas?

Em um outro ponto de vista, observando a atual estrutura de defesa e de segurança nacional dos EUA, que concentra atualmente na sua Força Aérea (USAF) boa parte do controle e fiscalização de atividades espaciais estratégicas e militares do país, como ficaria o arranjo institucional com essa Guarda Espacial? Ficaria a USAF limitada ao espaço aéreo atmosférico e a Guarda Espacial controlaria a orbita e o espaço exterior? Haveria sobreposições de atribuições para atividades civis e para atividades militares hostis?

Parte dos questionamentos apresentados acima também são compartilhados pelo astronauta aposentado Mark Kelly (ex-piloto da US Navy) que, em declaração recente, reproduzida pelo repórter Dave Mosher, em matéria do portal Business Insider [4], afirmou que: “a proposta de se criar uma força espacial é uma ideia burra”, pois a “USAF já faz esse trabalho”. O astronauta disse ainda que tal situação de criação de uma força armada espacial seria tão absurda quanto “criar uma força armada submarina, a partre da Marinha (US Navy), para quem opera nas profundezas do oceano”.

Como destacado por Mosher, independentemente dessa discussão de competências e limites de atuação, a USAF já vem trabalhando nesse tema através do seu Comando Espacial (Space Command).  A principal missão é de monitorar e responder a ameaças oriundas ou transientes pelo espaço orbital terrestre, diferentemente do proposto por Sinclair em termos de unificação de atribuições e de fiscalização e resgate de tripulações, por exemplo.

Mosher relembra também que a resolução das Nações Unidas de 1967, da qual os Estados Unidos e as principais potenciais espaciais são signatários, baniu o uso ou estacionamento de artefatos de destruição em massa em órbita, mas ressalta que tal resolução é omissa quanto as armas convencionais, citando, inclusive, o evento protagonizado pela China que, em 2007, testou, em um satélite próprio descomissionado, uma arma capaz de destruir alvos em órbita, situação essa este que gerou centenas de milhares de detritos espaciais. O autor reforça ainda que um eventual cenário conflituoso, de baixa ou alta intensidade, poderia ser o gatilho para a geração em massa de detritos, também conhecido como Síndrome Kessler [4,5], fato este que, teoricamente, poderia destruir a quase totalidade de dispositivos satelitais operacionais em órbita e paralisar as aplicações deles dependentes, levando a humanidade uma regressão tecnológica sem precedestes e inviabilizando por décadas a exploração desses sistemas espaciais.

Diante de tudo isso, alguns aspectos como uma melhor legislação, a fiscalização / controle e suporte / apoio logístico e operacional mais confiável da crescente exploração espacial (de cunho econômico, recreativo, científico/educacional, etc.) são positivos e deveriam ser estruturados. Por outro lado, deve-se ter muito cuidado para que iniciativas explicitas de militarização do espaço, aventadas explicitamente pelo governo americano ou mais discreta, como a proposta apresentada por Sinclair, ainda que maquiada de boas intenções, não impactem negativamente nesse mercado tão promissor e repleto de oportunidades para todos, inclusive de expansão e sobrevivência da nossa espécie.

Para dar vazão as necessidades e interesses de todos, em consonância com as resoluções das Nações Unidas (ONU) para o espaço, como bem destacado em [3], se faz necessário “um novo sistema de governança internacional seja discutido o mais breve possível”, de modo a evitar iniciativas unilaterais que provoquem essa escalada potencial de militarização do espaço.

Agradecimento: Aos membros do grupo de discussão “PEB em Debate”, mediado pelo Blog BRAZILIAN SPACE, que sempre trazem notícias e comentários de alta relevância, que contribuíram para a elaboração do presente artigo.

¹ Michel R. Sinclear é um experiente membro da Guarda Costeira America, com mais de 28 anos serviço.

² Título no Brasil para o filme “The Martian” (20th Century Fox 2015, all rights reserved), baseado no livro de mesmo nome do escritor Andy Weir.


Referências

[1] SINCLAIR, M. R. (2018) Why the US needs a ‘Coast Guard’ in space. Observer Research Foundation (ORF). Artigo da internet. Disponível em: https://www.orfonline.org/expert-speak/why-us-needs-coast-guard-space/#_ednref10. Último acesso: 04/07/2018 22:00h.

[2] UNITED NATIONS. (1982) United Nations Convention on the Law of the Sea. Division for Ocean Affairs and Law of the Sea. Documento eletrônico. Disponível em: http://www.un.org/depts/los/convention_agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf. Último acesso: 04/07/2018 22:00h.

[3] BRASILIAN SPACE, apud ÉPOCA NEGÓCIOS ON-LINE (2018). Quem é dono do que no espaço?. Artigo da internet. Disponível em: http://brazilianspace.blogspot.com/2018/07/quem-e-dono-do-que-no-espaco.html e em https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2018/ 07/quem-e-dono-do-que-no-espaco.html. Último acesso: 05/07/2018 10:34h.

[4] MOSHER, D. (2018) Astronaut Mark Kelly says Trump's order to create a Space Force 'is a dumb idea'. Business Insider. Artigo da internet. Disponível em:  http://www.businessinsider.com/trump-space-force-is-dumb-says-nasa-astronaut-20186?utm_c ontent=buffera5f59&utm_medium=social&utm_source=facebook.com&utm_campaign=buffer. Último acesso: 04/07/2018 22:00h.

[5] MOSHER, D. (2018) A space junk disaster is a real possibility, and surprisingly little is stopping a major loss of human access to space. Business Insider. Artigo da internet. Disponível em: http://www.businessinsider.com/space-junk-kessler-syndrome-chain-reaction-prev ention-2018-3 . Último acesso: 04/07/2018 22:00h.

*Rui Botelho - É mestre em mecatrônica pela UFBA e bacharel em Ciência da Computação e foi servidor concursado da AEB, tendo atuado como Tecnologista Pleno na área de Satélites e Aplicações. http://lattes.cnpq.br/6214855666557824



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