Armadilha Para Fantasmas
Olá leitor!
Segue abaixo um interessante artigo publicado na a edição
de agosto de 2015 da “Revista Pesquisa FAPESP” destacando que Mecanismo proposto por dois astrofísicos da
Universidade de São Paulo (USP) pode explicar a origem de neutrinos de alta
energia detectados na Antártida.
Duda Falcão
CIÊNCIA
Armadilha Para Fantasmas
Mecanismo proposto por pesquisadores da USP pode explicar
a origem de neutrinos de alta energia detectados na
Antártida
RICARDO ZORZETTO
Revista Pesquisa FAPESP
ED. 234 | AGOSTO 2015
Dois
astrofísicos da Universidade de São Paulo (USP) propuseram um mecanismo para
explicar onde e como surgem as partículas altamente energéticas que vêm sendo
identificadas por um observatório imerso no manto de gelo da Antártida.
Composto por 5.160 detectores que formam um cubo de 1 quilômetro de lado, o
IceCube registra todos os anos dezenas de milhares de neutrinos, partículas
elementares neutras e quase sem massa, vindas de diferentes regiões da Terra.
Desde que começou a funcionar, em 2010, o IceCube já coletou informações de uma
montanha de neutrinos. De todos, 54 foram considerados especiais. Eram
partículas vindas provavelmente de fora da galáxia, com um nível de energia
muito elevado, milhões de vezes superior ao dos neutrinos emitidos pelo Sol.
Os
astrofísicos imaginam que somente fenômenos de proporções cataclísmicas, como a
morte explosiva de uma estrela de massa elevada ou um buraco negro de massa
gigantesca se alimentando, são capazes de produzir partículas com níveis tão
altos de energia. Até o momento, no entanto, não se havia encontrado um
mecanismo capaz de gerar neutrinos como esses que chegaram à Terra.
Elisabete de
Gouveia Dal Pino, professora do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências
Atmosféricas (IAG) da USP, e seu aluno de doutorado Behrouz Khiali parecem ter
identificado um fenômeno que poderia originar esses neutrinos superenergéticos.
Para eles, essas partículas fugidias, que já foram chamadas de partículas
fantasmas por interagirem raramente com a matéria, poderiam surgir como
subproduto de um mecanismo físico chamado reconexão magnética.
Nesse
fenômeno, linhas de campos magnéticos de sentido contrário, ao se encontrarem,
aniquilam-se e liberam energia magnética, responsável por acelerar as
partículas eletricamente carregadas que estejam por perto. É o que acontece no
Sol, quando linhas magnéticas produzidas pelo gás aquecido da coroa
aproximam-se e se anulam, liberando a energia que impulsiona as partículas do
vento solar – esses eventos geram gigantescas alças ou loops que podem
ser observados por telescópios na Terra. Na opinião de Elisabete e Khiali, esse
mesmo fenômeno deve ocorrer na vizinhança de buracos negros com massa elevada.
Afinal, esses poderosos devoradores de matéria reuniriam todas as condições
necessárias para que isso acontecesse.
Esses
buracos negros acumulam uma massa dezenas de milhões de vezes maior que a do
Sol em uma região com dezenas a centenas de quilômetros de diâmetro. Objetos
tão densos apresentam uma gravidade absurdamente elevada e atraem toda a
matéria ao redor, que em geral se encontra na forma de gás. Essa matéria passa
a se mover em torno do buraco negro e cair em sua direção, como a água que
corre para o ralo da pia. A rotação dessa camada de gás quente contendo
partículas eletricamente carregadas – é o chamado disco de acreção – gera
campos magnéticos em constante movimento. Por vezes, as linhas desses campos se
encontram com as que existem ao redor do buraco negro. Quando elas têm sentidos
(polaridade) opostos, aniquilam-se liberando calor e energia e impulsionando as
partículas carregadas, como os prótons. Os prótons ficam aprisionados entre as
linhas do campo magnético e ganham cada vez mais energia. “Imaginamos que
aconteça algo parecido com o que ocorre com uma bola de tênis rebatida por
jogadores correndo um de encontro ao outro”, explica Khiali, astrofísico
iraniano que veio para o Brasil estudar reconexão magnética com Elisabete. “A
cada rebatida, a bola ganha mais velocidade.” De modo semelhante, os prótons
acumulam energia até que conseguem escapar dos campos magnéticos a velocidades
próximas à da luz.
No caminho
em direção ao espaço, esses prótons acelerados podem se chocar com outros
prótons ou com partículas de luz (fótons), ambos abundantes em uma vasta região
em torno do buraco negro chamada coroa. O choque entre as partículas as destrói
e gera outras. Da colisão entre prótons ou entre um próton e um fóton, surgem
partículas menos energéticas e mais instáveis, os píons, que liberam fótons de
raios gama e neutrinos (ver infográfico).
Os cálculos
de Khiali e Elisabete sugerem que, ao redor de buracos negros com massa
variando de 10 milhões a 1 bilhão de sóis, a reconexão magnética seria capaz de
gerar prótons energéticos o suficiente para produzir os neutrinos
superenergéticos do IceCube – antes, Elisabete, Luis Kadowaki e Chandra Singh
já haviam verificado que esse mecanismo pode originar os raios gama produzidos
próximo a buracos negros e sistemas binários de estrelas.
A reconexão
magnética não é o único modelo para explicar os prótons acelerados. Em 2014, os
astrofísicos italianos Fabrizio Tavecchio e Gabriele Ghisellini haviam sugerido
que essas partículas poderiam ser geradas pelos jatos que emanam próximo aos
polos dos buracos negros.
“Hoje, o mecanismo mais aceito para a produção de
neutrinos superenergéticos é o choque na região dos jatos, mas ele não explica
os eventos de tão alta energia como os detectados no IceCube”, diz o físico
Orlando Peres, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Pode ser que
isso ocorra por meio da reconexão magnética ou de outro mecanismo que ainda não
conhecemos.”
Elisabete lembra de outra vantagem de seu modelo em
relação aos demais. “Além dos neutrinos, nosso mecanismo explica a produção de
fótons de raios gama altamente energéticos e de raios cósmicos que poderiam ser
produzidos na vizinhança desses buracos negros”, afirma a astrofísica, uma das
coordenadoras da participação brasileira no Cherenkov Telescope Array (CTA),
que vai montar dois conjuntos de telescópios para estudar raios gama de alta
energia.
“A proposta da equipe do IAG é interessante, mas é cedo
para saber se está correta porque o número de neutrinos detectados é pequeno e
não permite saber de onde vêm”, diz a física Renata Funchal, da USP, que estuda
os neutrinos com o objetivo de entender como poderiam interagir com outras
partículas. “Esse modelo pode vir a ser testado em pouco tempo, caso ocorra a
ampliação do IceCube”, conta Renata. Há o plano de dobrar o número de
detectores e aumentar o tamanho do observatório para um cubo com 10 quilômetros
de lado. Isso aumentaria a probabilidade de registrar partículas fantasmas tão
energéticas. Como eles não interagem com praticamente nada na viagem até a
Terra, sua trajetória pode revelar de onde vêm. A identificação da origem
desses neutrinos pode permitir verificar se esse objeto também emite fótons de
raios gama e raios cósmicos. “Isso poderia confirmar o modelo de Elisabete e
Khiali e levar a uma era de astronomia de neutrinos, que permitiria estudar
objetos sem o uso de telescópios de luz”, diz Peres. “Mas ainda estamos
engatinhando nisso.” N
Projeto: Investigação de fenômenos de altas energias e plasmas
astrofísicos: teorias, simulações numéricas, observações e desenvolvimento de
instrumentação para o Cherenkov Telescope Array (CTA) (2013-10559-5);
Modalidade: Projeto Temático;
Pesquisadora responsável:
Elisabete Maria de Gouveia Dal Pino (USP); Investimento:
R$ 9.451.122,83 (para todo o projeto – FAPESP).
Artigo científico
KHIALI, B. e DE GOUVEIA DAL PINO, E. M. Very high energy neutrino
emission from the core of low luminosity AGNs triggered by magnetic
reconnection acceleration. Monthly Notices of the Royal
Astronomical Society. No prelo.
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP - Edição 234 - Agosto de
2015
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