Que Relações Internacionais Queremos?
Olá leitor!
Segue abaixo mais um interessante
artigo escrito pelo Sr. José
Monserrat Filho e postado pelo
companheiro André Mileski ontem (14/06) em seu no Blog Panorama Espacial.
Duda Falcão
Que Relações Internacionais Queremos?
Reproduzimos abaixo artigo escrito por José Monserrat
Filho para o movimento "O Brasil que queremos em 2022", de
pesquisadores e professores da Universidade de Brasília (UnB). Monserrat foi
convidado para coordenar a área de Relações Internacionais do movimento.
José Monserrat Filho *
“Para que serve ao homem ganhar o mundo inteiro,
se
arruína a própria vida.” Evangelho segundo Marcos 8, 36
O estudo, o conhecimento e o debate das relações
internacionais (RI) são tão necessários no século 21 quanto saber usar um
telefone celular. Em toda sua variedade de áreas e situações, as RI estão cada
vez mais presentes e ativas em todos os instantes cruciais da vida de todas as
sociedades e de todos os seus indivíduos, bem como de todos os países, povos e
instituições, organizações e entidades públicas e privadas. Nada existe no
mundo hoje sem o toque das RI. Por isso, certamente, “a afirmação da cidadania
do homem contemporâneo transita pelo entendimento abrangente das relações
internacionais”, no correto dizer de Ricardo Seitenfus1.
Mais que nunca, o maior problema das RI é a conquista da
paz global, sólida e sustentável, e da plena estabilidade na vida do planeta. O
mundo dos nossos dias aproxima-se rapidamente do colapso e da destruição. Já
temos armas e recursos de sobra para cometer ou permitir esse crime. A
possibilidade de uma catástrofe global é altíssima. O Relógio do Apocalipse –
alerta a Diretoria de Ciência e Segurança do Boletim de Cientistas Atômicos dos
Estados Unidos, criado em 1945 – marca, desde 2015, três minutos para a meia
noite, a hora fatal. Urge adotar com a máxima urgência ações para impedir o
grande desastre. O perigo global cresce. Os governos e líderes conscientes e
responsáveis precisam agir de imediato.2
O que queremos em primeiríssimo lugar, nesta
circunstância ameaçadora, é acabar não apenas com o uso da força, mas também
com a ameaça de uso da força nas RI. Nossa meta, no início deste novo milênio,
é estabelecer algo inédito na história humana: RI exclusivamente pacíficas e
construtivas. Isso nos leva a reencontrar o projeto de Paz Perpétua3, proposto
pelo filósofo Immanuel Kant (1724-1804) em 1795.
Escrito há mais de 220 anos, em forma de tratado, ainda
hoje, em pleno século 21, enriquece a discussão de questões essenciais das RI.4
Seu artigo primeiro reza: “Nenhum tratado de paz deve ser tomado como tal se
tiver sido feito com reserva secreta de matéria para uma guerra futura”. Kant
estava atento à diplomacia sigilosa, aos acordos, negociações e ações
confidenciais, e, portanto, à falta de transparência nas RI, comum na época,
mas que ainda existe hoje, sobretudo nas estratégias político-militares de
escalas regional e global.
Kant preferia países com regimes republicanos, pois, mais
democráticos que as monarquias, permitiam maior participação do povo na solução
de assuntos vitais, como os da paz e da guerra – “o consentimento dos cidadãos
(…) é requerido para decidir se deve ou não ocorrer guerra”, indicou o
pensador. A seu ver, é “no ato da vontade geral [fundado na constituição] pelo
qual a multidão torna-se um povo” que “o Estado faz uso de sua plenitude de
poder”.
“A constituição republicana é para Kant (…) apenas a
primeira condição para a paz – condição necessária, mas não suficiente. A
segunda condição é que as repúblicas constituam uma federação de Estados – ou o
que hoje chamamos de organização internacional”, nota Soraya Nour.5 Ocorre que,
durante a Guerra Fria (1947-1986) por exemplo, diz Nour, “a segurança é
considerada questão militar, sob a competência de alianças militares como a
Otan e o Pacto de Varsóvia – um conceito anti-kantiano.” Ela prossegue: “Na
década de 1990, reforça-se a exigência kantiana de que uma organização
internacional como a ONU, considerada ilusória por vários teóricos do período
pós-guerra, seja mais solicitada, respeitada e atuante, apesar das críticas 'de
todos' sobre seu funcionamento e possibilidades.”6 E cita Daniel Brauder, para
quem “o fato de que sejamos conscientes hoje das limitações e até das falhas de
uma instituição como as Nações Unidas não deve nos fazer esquecer algo que o
opúsculo de Kant mostra com clareza: não há outra saída.”7
A Carta das Nações Unidas, pela primeira vez na história
humana, proíbe a guerra como meio de solucionar conflitos entre as nações e
estabelece como válida apenas a solução pacífica das controvérsias. E, na
tentativa de assegurar esse princípio, cria um sistema de segurança coletiva,
baseado no Conselho de Segurança – que tem falhado muito, é verdade –, mas
ainda pode e deve ser aprimorado e se tornar mais representativo do mundo atual
e mais justo e eficaz na luta pela paz.
Kant situa-se no século 21 quando afirma que “uma guerra
de extermínio, em que pode ocorrer simultaneamente o extermínio de ambas as
partes e com ele também de todo o direito, encontraria a paz perpétua somente
no grande cemitério do gênero humano. Portanto, tal guerra, por conseguinte
também o uso dos meios que levam a ela, tem de ser absolutamente não
permitida”. Não é a esse perigo de consequências inestimáveis que leva a
chamada “nova Guerra Fria”, com a atual modernização das armas nucleares e a
nova corrida armamentista no espaço exterior, capaz de transformá-lo no quarto
teatro de guerra, depois da terra, do mar e do espaço aéreo?
Kant também está conosco hoje ao considerar que “dos três
poderes, o militar, o das alianças e o do dinheiro, este último poderia decerto
ser o mais seguro instrumento de guerra”. O filósofo refere-se a “uma perigosa
potência de dinheiro, ou seja, um tesouro para a beligerância que sobrepuja os
tesouros de todos os outros Estados tomados conjuntamente”. É o que vemos
com o poder financeiro globalizado, comandando a novíssima geração do complexo
industrial-militar, que fatura como jamais na preparação de uma guerra
terrestre-espacial sem precedentes.
Daí que “a responsabilidade intelectual e cidadã deve
impedir a satisfação com modelos de pensamento sustentados nas inaceitáveis RI
da atualidade. Elas exigem um repensar sobre questões que interferem
pesadamente no futuro da humanidade”, clama Ricardo Seitenfus.8
O maior desafio no século 21, portanto, é garantir a
prevalência dos princípios da ONU. Isso deve abir caminho à mais profunda
democratização das RI e um avanço extraordinário da ciência, tecnologia,
educação e cultura em todo o mundo, garantindo a universalidade dos direitos
humanos. E com certeza fortalecerá o
papel dos Estados como poder público no esforço de beneficiar todos os países e
povos, ampliará a cooperação global nos campos mais fundamentais, consolidando
as organizações multilaterais, o direito internacional e o estado de direito
nas RI.
Queremos que o Brasil seja um dos protagonista mais
ativos dessa mudança transcendental nos rumos do mundo.
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito
Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de
Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica,
ex-chefe das Assessorias de Cooperação Internacional do Ministério de Ciência e
Tecnologia e da Agência Espacial Brasileira, e autor do livro Política e
Direito na Era Espacial – Podemos ser mais juntos no espaço do que na Terra?,
Ed. Veira&Lent, 2007.
Notas e referências
1) Seitenfus, Ricardo, Relações Internacionais, São
Paulo: Manole, 2004, p. XXV.
3) Kant, Immanuel, À Paz Perpétua, Tradução e prefácio
de Marco Zingano, Porto Alegre: L&PM Pocket, vol. 449, edição de 2016.
4) Nour, Soraya, À Paz Perpétua de Kant – Filosofia do
Direito Internacional e das Relações Internacionais, Prefácio de Carlos
Henrique Cardim, São Paulo: Martins Fontes, 2004.
5) Id Ibid, p. 162.
6) Aqui, Soraya Nour cita Eduardo Rabossi, Kant y las
condiciones de posibilidad de la sociedad cosmopolita; in Rohden, Valério
(ed.), Kant e a instituição da paz, Porto Alegre, Ed. Universidade/UFRGS,
Goethe-Institut/ICBA, 1997, p. 178.
7) Brauder, Daniel, Utopia e historia em el proyeto de
Kant de una “Paz Perpetua”, in Rohden, Valério (ed.), Kant e a instituição da
paz, Porto Alegre, Ed. Universidade/UFRGS, Goethe-Institut/ICBA, 1997, p. 212.)
Seitenfus, Ricardo, Id Ibid, p. XXVII.
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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