A Humanidade na Era Espacial
Olá leitor!
Segue abaixo mais um artigo do Sr. José Monserrat Filho
postada ontem (26/12) pelo companheiro André Mileski em seu "Blog Panorama
Espacial".
Duda Falcão
A
Humanidade na Era Espacial
“...
visualizo em nossos dias um grande esforço, por parte da doutrina
jurídica
mais lúcida, de retorno às origens, que corresponde um
processo
histórico de humanização do Direito Internacional.”
Antônio
Augusto Cançado Trindade (1)
José
Monserrat Filho *
26/12/2016
O termo “humanidade” mereceu posição de realce no
Tratado do Espaço de 1967, a lei maior do espaço e das atividades
espaciais, cujo longo nome oficial – “Tratado sobre Princípios Reguladores das
Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e
Demais Corpos Celestes” (2), foi-lhe dado certamente para explicitar seus
objetivos mais gerais.
O Tratado do Espaço menciona quatro vezes a
humanidade. É uma de suas distinções, com especial
significado jurídico. Será a humanidade sujeito do Direito Espacial
Internacional? O tema ganhou atualidade com a intensificação da globalização
econômica, que supostamente viria satisfazer necessidades e anseios de todos os
povos, mas que, na verdade, está cada vez mais distante desse objetivo, sem
nunca “fortalecer as vozes do Terceiro Mundo”. (3) Qual poderia ser o papel da
humanidade – vasta e majoritária, mas impotente e descartada – na governança do
mundo?
Ou terá sido por vivermos na “Era Planetária”, na definição holista e esperançosa de Edgar
Morin? Para Morin e Kern, em Terra-Pátria, “a era planetária se inaugura e se
desenvolve na e através da violência, da destruição, da escravidão, da
exploração feroz das Américas e da África. É a idade de ferro planetária, na
qual estamos ainda”, mas “é também a aspiração, neste início do século XXI, à
unidade pacífica e fraterna da humanidade”. (4)
O preâmbulo do Tratado do Espaço, já em seus
primeiros considerandos inspira-se
“nas vastas perspectivas que a descoberta do espaço cósmico pelo homem oferece
à humanidade” e reconhece “o interesse que apresenta para toda a humanidade o
programa da exploração e uso do espaço cósmico para fins pacíficos”. São
enfoques que se completam dialeticamente: de um lado, o espaço descoberto pelos
humanos escancara imenso potencial de benefícios para a humanidade; de outro, a
humanidade tem tudo para se interessar pela exploração e uso pacíficos do
espaço.
O artigo 1º (§ 1ª) do Tratado estabelece a
“Cláusula do Bem Comum”, determinando que “a exploração e o uso do espaço
cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e
interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu
desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a
humanidade”. Ou seja, é tarefa, encargo, compromisso, dever, obrigação e
responsabilidade (sinônimos de incumbência) da humanidade fazer com que a
exploração e o uso do espaço sejam sempre realizados para o bem e no interesse
de todos os países, independentemente de seu nível de avanço econômico e
científico. A humanidade seria, então, o promotor e o fiador do bem comum nas
atividades espaciais.
O artigo 5º do Tratado considera os astronautas
como “enviados da humanidade no espaço cósmico”, título que também se aplica aos cosmonautas da
ex-União Soviética e da Rússia, bem como aos taikonautas da China. A norma
parece homenagem, mas, na realidade, tem um sentido prático e necessário, em
plena guerra fria dos anos 60 em diante: cria a obrigação de prestar toda
assistência possível aos astronautas em caso de acidente, perigo ou
aterrissagem forçada em outro país que não o seu ou em alto-mar, e de
retorná-lo a seu país de origem junto com seu veículo espacial, o mais
rapidamente possível e em total segurança. Cria também mais duas obrigações: a
de que os astronautas de um país prestem toda assistência possível aos
astronautas dos outros países e a de que cada país informe de imediato aos
demais países e ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas qualquer
fenômeno que tenha descoberto no espaço, na Lua e nos outros corpos celestes,
capaz de constituir perigo à vida ou à saúde dos astronautas. Note-se que os
astronautas eram e muitos ainda são militares integrados às estratégias das
Forças Armadas de seus países.
O Acordo que Regula as Atividades dos Estados na
Lua e em Outros Corpos Celestes, de 1979, conhecido como “Acordo da Lua”, integra o quinteto
de tratados aprovados pelas Nações Unidas, embora tenha sido ratificado por
apenas 16 países e assinado por outros quatro. (5)
Em seu Artigo 4º, o Acordo da Lua repetem o
Artigo 1º (§ 1º) do Tratado do Espaço, afirmando que “a exploração e o uso da Lua são incumbência
de toda a humanidade e se realizam em benefício e no interesse de todos os
países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico ou
científico”.
Mas tem o mérito de adotar duas novas disposições, em termos irrecusáveis: “Especial atenção deve
ser dada aos interesses das gerações presentes e futuras, bem como à
necessidade de promover níveis de vida mais elevados e melhores condições de
progresso e desenvolvimento econômico e social, em conformidade com a Carta da
Organização das Nações Unidas”.
Preparado em grande parte pelos países em
desenvolvimento ao longo dos anos 70 – década em
que os chamados países não alinhados tiveram importante atuação no cenário
internacional –, o Acordo da Lua estabelece o princípio da relevância
intergeneracional e ressuscita o amplo compromisso social adotado pela Carta
das Nações Unidas na promoção de “níveis de vida mais elevados e melhores
condições de progresso e desenvolvimento econômico e social”.
O Acordo da Lua tem sua maior contribuição no
Artigo 11, que começa estabelecendo, no § 1º, que “a Lua e
seus recursos naturais são patrimônio comum da humanidade”. O § 2º reafirma e
adapta o Artigo 2 do Tratado do Espaço: “A Lua não pode ser objeto de
apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por
qualquer outro meio”. E o § 3º detalha esse princípio da não-apropriação: “A
superfície e o subsolo da Lua, bem como partes da superfície ou do subsolo e
seus recursos naturais, não podem ser propriedade de qualquer Estado,
organização internacional intergovernamental ou não-governamental, organização
nacional ou entidade não-governamental, ou de qualquer pessoa física. O
estabelecimento na superfície ou no subsolo da Lua de pessoal, veículos,
material, estações, instalações e equipamentos espaciais, inclusive obras
vinculadas indissoluvelmente à sua superfície ou subsolo, não cria o direito de
propriedade sobre sua superfície ou subsolo e suas partes. Estes dispositivos
não devem prejudicar o regime internacional referido no § 5º deste Artigo.”
O § 5º propõe a criação de um regime
internacional para ordenar a exploração dos recursos naturais da Lua: “Os Estados-Partes se comprometem (...) a
estabelecer um regime internacional, inclusive os procedimentos adequados, para
regulamentar a exploração dos recursos naturais da Lua, quando esta exploração
estiver a ponto de se tornar possível”.
O § 6º reza que, para facilitar a criação do
regime Internacional, os Estados-Partes devem informar ao
Secretário-Geral da ONU, ao grande público e à comunidade científica
internacional, da forma mais ampla e prática possível, “sobre todos os recursos
naturais que eles possam descobrir na Lua”. É o princípio da transparência,
para fomentar a cooperação no mais alto grau possível.
E o § 7º alinha os principais objetivos do regime
internacional, frisando que pode haver outros. São eles,
conforme o texto do Acordo:
“a) Assegurar o aproveitamento ordenado e seguro
dos recursos naturais da Lua;
b) Assegurar a gestão racional destes recursos;
c) Ampliar as oportunidades de utilização destes
recursos; e
d) Promover a participação equitativa de todos os
Estados-Partes nos benefícios auferidos destes recursos, tendo especial
consideração para os interesses e necessidades dos países em desenvolvimento,
bem como para os esforços dos Estados que contribuíram, direta ou
indiretamente, na exploração da Lua.”
Muito se tem debatido sobre o conceito de
patrimônio comum da humanidade, contido no Acordo da Lua e na Convenção das Nações Unidas
sobre o Direito do Mar, de 1982 (7). Isso é sempre positivo, claro. No caso,
porém, o importante é que, sendo ou não universalmente aceito o princípio de
patrimônio comum da humanidade, o espaço e os corpos celestes são res communis
omnium – bem comum a todos –, que não pode de modo algum ser objeto de
apropriação, e sua exploração e uso devem atender ao bem e ao interesse de
todos os países, como incumbência de toda a humanidade – conforme rezam o
Artigo 2º e o Artigo 1º (§ 1º) do Tratado do Espaço.
Por isso, a ideia de se criar um regime
internacional para gerir racionalmente a explotação dos recursos naturais da
Lua e dos demais corpos celestes, inclusive dos asteroides, bem como a de
“promover a participação equitativa de todos os Estados-Partes nos benefícios
auferidos destes recursos” é perfeitamente alinhada e coerente com a “Cláusula
do Bem Comum”.
Baseadas na lei nacional dos EUA, sancionada em
25 de novembro de 2015 (8),
conferindo o título de propriedade privada às empresas norte-americanas que
extraírem recursos naturais (minerais) de corpos celestes, empresas desta e de
outras potências espaciais mobilizam-se para justificar legalmente a nova
situação, que modifica totalmente o marco jurídico internacional em vigor,
fundado no Tratado do Espaço. Aparentemente, o embate se trava só no campo do
Direito, mas o movimento é poderoso e avassalador, pois, segundo se informa,
envolve interesses e negócios estimados em trilhões de dólares. (9)
O Acordo da Lua não pode ser ignorado nessa
discussão histórica. Ele oferece uma solução mais que razoável. O que
parece em jogo é o rumo das atividades espaciais neste século. Vamos priorizar
o direito público humanizado e democrático ou o direito privado dominador,
dentro do rigor neoliberal, que até hoje não deu certo em nenhum lugar do nosso
planeta?
A humanidade ainda não é sujeito do Direito. Falta-lhe uma instituição para representá-la e
falar em seu nome legitimamente. Mas ceio que ela já é a maior destinatária do
Direito Internacional e também do Direito Espacial Internacional. Essa posição
continuará crescendo na medida em que aumente a consciência dos países e povos
sobre o caráter global dos prolemas – paz, justiça social, saúde e educação,
clima, aquecimento geral, meio ambiente etc. –, a interdependência e
interconexão de todos os habitantes do planeta, e a necessidade de união,
solidariedade e cooperação para enfrentá-los e solucioná-los de modo muito mais
justo, eficiente e racional.
Desse ponto de vista, o debate sobre a explotação
dos recursos espaciais é apenas um item importantíssimo do quadro geral em que
vivemos, que pede nossa mais ativa participação.
Daí que urge uma ética do debate. Edgar Morin
escreve a respeito: “A regra do debate é inerente às instituições filosófica,
científica e democrática. A ética do debate vai mais longe ainda: exige a
primazia da argumentação e a rejeição da anatematização. Longe de descartar a
polêmica, ela a utiliza, mas rejeita todos os meios vis, todos os argumentos de
autoridade, assim como quaisquer tipos de rejeições pelo desprezo, quaisquer
insultos sobre as pessoas.” (10)
Em suma, não se pode tratar quem pensa diferente
como se fosse um inimigo intolerável.
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de
Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto
Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de
Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de
Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB).
E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.
Referências
1) A.A. Cançado Trindade, O Direito Internacional
em um Mundo em Transformação, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 1083.
2) Ver texto completo em www.sbda.org.br.
3) Stiglitz, Joseph E., Globalização: como dar
certo, São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 38.
4) Morin, Edgar, e Kern, Anne Brigitte,
Terra-Pátria, Porto Alegre: Sulina, 2011, p. 23-27.
5) Ver texto completo em www.sbda.org.br
6) Datonou, Dieudonné. Du concept de patrimoine
commun de l'humanité aux droits de l'humanité: etude historico-juridique du
concept de patrimoine commun de l'humanité en droit international, Roma:
Pontificia Università Lateranense, 1995.
8)
H.R.2262 - U.S. Commercial Space Launch Competitiveness Act. Ver texto completo em https://www.congress.gov/bill/114th-congress/house-bill/2262.
9) Ver no site http://theweek.com/articles/462830/how-asteroid-mining-could-add-trillions-world-economy.
10) Morin, Edgar, A Ética do Sujeito Responsável,
in Ética, Solidariedade e Complexidade, com textos de Edgard de Assis Carvalho,
Maria da Conceição de Almeida, Nelly Novaes Coelho, Nelson Fiedler-Ferrara e
Edgar Morin, São Paulo: Palas Ahenas, 1998, p. 73.
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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