O Direito de Legítima Defesa e a Sustentabilidade das Atividades Espaciais
Olá leitor!
Segue abaixo mais um interessante artigo escrito pelo Dr.
José Monserrat Filho e postado dia (08/02) pelo companheiro André Mileski em seu "Blog Panorama Espacial".
Duda Falcão
O Direito de Legítima Defesa e a
Sustentabilidade das
Atividades Espaciais
José Monserrat Filho*
08/02/2015
O direito de recorrer à
legítima defesa no espaço exterior está em debate no fórum da ONU que trata das
atividades espaciais, o Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço
(COPUOS, na sigla em inglês). O tema foi incluído na pauta do Subcomitê Técnico-Científico
do COPUOS, reunido em Viena, Áustria, de 2 a 13 de fevereiro. A ideia é
discutir um conjunto de diretrizes voluntárias destinadas a garantir a
sustentabilidade a longo prazo das atividades espaciais.
Há claro conflito entre o
recurso à legítima defesa, que significa a existência de um ataque armado, e a
meta da sustentabilidade das atividades espaciais, que procura por todos os
meios impedir o uso da força militar em órbitas da Terra.
O problema foi levantado pela
Rússia, que propôs “a elaboração de uma interpretação uniforme do direito de
legítima defesa, segundo a Carta das Nações Unidas, para aplicação no espaço
exterior como fator dirigido a manter o espaço como ambiente seguro e livre de
conflitos e promover a sustentabilidade a longo prazo das atividades
espaciais”.1
A Carta das Nações Unidas, de
1945, reconhece o direito de legítima defesa, individual ou coletiva, em seu
Artigo 51, que reza: “Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de
legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado
contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha
tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança
internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse direito de
legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não
deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a
presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a
ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da
segurança internacionais.”2
Assim, o Artigo 51 estabelece
uma exceção ao Artigo 2º da Carta, que determina em seu ponto 3 que “os membros
da Organização deverão resolver as suas controvérsias internacionais por meios
pacíficos, de modo a que a paz e a segurança internacionais, bem como a
justiça, não sejam ameaçadas”; e, no ponto 4, que “os membros deverão abster-se
nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer
que seja contra a integridade territorial ou a independência política de um
Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objetivos das
Nações Unidas”. Ou seja, a Carta, vigente até hoje, obriga à solução
exclusivamente pacífica das controvérsias entre os países e proíbe a ameaça de
ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política
de um Estado. Ao mesmo tempo, permite que um Estado atacado militarmente
rechace a agressão, mas só até que o Conselho de Segurança da ONU intervenha e
tome as medidas necessárias para manter a paz e a segurança internacionais.
Ocorre que o direito de
legítima defesa tem sido usado como pretexto para justificar guerras
deflagradas como legítima defesa preventiva – não reconhecida pela Carta das
Nações Unidas. Tais deformações não são raras. Costuma-se citar as invasões e
ações militares efetuadas por grandes potências na Nicarágua, Panamá, Iraque, Afeganistão
e em outros países.
Na hipótese de seu uso no
espaço, o recurso à legítima defesa geraria problemas extremamente difíceis de
solucionar juridicamente. Para começar, seria preciso definir a agressão no
espaço, da qual o país atacado poderia licitamente se defender. Digamos que o
ataque a um ou mais satélites seja definido como agressão. Como se daria,
então, o ato de legítima defesa? Com a destruição de satélites, naves e outros
equipamentos do país supostamente agressor? Como identificar claramente o
agressor e saber com absoluta certeza que não se tratou de um acidente,
de uma ação não deliberada? E como imaginar o rechaço legal a um ataque dentro
do limite fixado pelo Artigo 51 da Carta da ONU, isto é, “até que o Conselho de
Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da
segurança internacionais”?
O pior é que um ataque no
espaço, deliberado ou acidental, pode provocar uma reação em cadeia, capaz de
causar danos incalculáveis e apagões de alcance inimaginável, paralisando e até
eliminando serviços indispensáveis hoje prestados aos países e povos de toda a
Terra.
Tais preocupações,
provavelmente, estão na base da iniciativa atual da Rússia. Sua proposta é
descrita como “parte do esforço em curso para superar o impasse nas discussões
no Comitê [COPUOS] sobre formas e meios de manter o espaço exterior para fins pacíficos
e facilitar a identificação de oportunidades para estabelecer critérios comuns
no trato do problema da legítima defesa do espaço, e chegar a um entendimento
acordado e abrangente sobre como evitar a decisão descontrolada dos Estados no
contexto da interpretação da legítima defesa”.
Na visão da Rússia, “é evidente
que a legítima defesa é utilizada cada vez mais como conceito político e
técnico generalizado, em vez de como conceito jurídico internacional. Em
consequência, há o perigo de que os Estados nem sempre se inclinem a traçar
suas estratégias de legítima defesa no espaço exterior em estrita conformidade
com as normas da Carta da ONU, promovendo, assim, a regulamentação
discricionária desta matéria. Não se trata da conveniência de abordar o problema,
mas de saber se essa boa causa pode ser questionada nas condições em que o
processo de decisão política internacional é crescentemente determinado por
interesses geopolíticos, que claramente se projetam sobre as atividades
espaciais. Não obstante, os Estados devem prestar especial atenção a este
assunto, com um olhar sério e abrangente, tentando fazer um julgamento
comum com base jurídica e nas modalidades da legítima defesa no espaço
exterior”.
Para a Rússia, há imperiosa
necessidade de um posicionamento sobre esta situação, com a elaboração de um
entendimento baseado em conclusão consistente e integrada.
A Rússia “considera que os
Estados-Membros do Comitê (COPUOS) são capazes de identificar aspectos de
cooperação positiva nesta esfera, como revisar e elaborar em conjunto
procedimentos políticos e legais que garantam a interpretação jurídica e
responsável do direito de legítima defesa no espaço exterior, bem como concluir
um acordo sobre o complexo essencial de avaliações objetivas, com conclusões
apoiadas por todos. Seria útil entender como a categoria da legítima defesa é
compreendida em termos de lógica política e tecnocrática, e a que consequências
pode conduzir uma 'abordagem de livre interpretação'. Há ambivalência na
compreensão dos aspectos substanciais da questão da legítima defesa no espaço
que se revela em associações desenvolvidas e conclusões feitas pela academia,
bem como pelas leis nacionais não-coincidentes do setor. Não há certeza de que
o núcleo dos critérios da legítima defesa de acordo com a Carta da ONU esteja
sendo observado em documentos de políticas nacionais e devidamente considerado
na prática. A comunidade internacional precisa de um conjunto de instrumentos
para resolver o problema de manter o espaço exterior para fins pacíficos.
Assim, a questão da legítima defesa merece cuidadosa reflexão no âmbito do
Comitê. A manutenção de normas fundamentais na esfera do direito e da segurança
deve envolver a função da interpretação qualificada do cerne da legítima defesa
no espaço exterior, em inteira conformidade com as bases do Direito
Internacional, em primeiro lugar com a Carta da ONU”.
Eis um material de reflexão que
merece toda nossa atenção. Até porque o Brasil apoia o projeto russo-chinês,
apresentado na Conferência de Desarmamento, em Genebra, Suíça, em 2008, que
veda a instalação de armas e o uso da força no espaço3, além de ser um dos
signatários da resolução aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 2014, pela
qual a maioria de seus Países-Membros se compromete a não ser o primeiro a
instalar armas em órbitas da Terra4.
* Vice-Presidente da
Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor
Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da
Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de
Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Este artigo reflete
apenas a opinião do autor.
Referências
(1) Documento
A/AC.105/C.1/2015/CRP.22
(3) The Treaty on Prevention of the Placement of Weapons in Outer Space
and of the Threat or Use of Force Against Outer Space Objects (PPWT), presented
in 2008.
(4) Ver o blog Panorama
Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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