Como Regulamentar a Exploração e o Uso da Lua?
Olá leitor!
Segue abaixo mais um interessante artigo escrito pelo Dr.
José Monserrat Filho e postado dia (17/02) pelo companheiro André Mileski em seu "Blog Panorama Espacial".
Duda Falcão
Como
Regulamentar a Exploração
e o Uso da Lua?
José Monserrat Filho*
17/02/2015
“Não se pode ignorar que os
corpos celestes, por sua própria natureza, levantam problemas específicos que
requerem soluções específicas. Isto, de fato, já se reflete em algumas normas
já adotadas”. Manfred Lachs1
Algumas empresas privadas
norte-americanas estão empenhadas em conseguir mudar o Tratado do Espaço
Exterior2, de 1967, ratificado por 103 países, inclusive os EUA, a China e as
outras grandes potências espaciais, e assinado por outros 25. Considerado o código
maior das atividades espaciais, o Tratado adota os princípios básicos que
regulam a exploração e uso tanto do espaço, como da Lua e demais corpos
celestes. Não será fácil encontrar consenso para alterá-lo, como exige o
próprio tratado.
Uma de tais empresas, a Bigelow
Aerospace, sediada em Nevada, EUA, fabricante de módulos infláveis para
moradias e outras instalações, consultou a Administração Federal de Aviação
(Federal Aviation Administration – FAA), encarregada de licenciar os voos
espaciais privados, sobre as condições legais para estabelecer um assentamento
na Lua – plano estimado em cerca de US$ 12 bilhões, a realizar-se em 2025. A
notícia, exclusiva, foi distribuída pela Agência Reuters no dia 3 de fevereiro
último e mereceu um artigo de Kenneth Chang publicado no “The New York Times”,
logo após, no dia 9, sob o título “Um plano de negócios para o espaço”.
Na carta resposta enviada em
dezembro passado, ainda segundo a Reuters, a FAA informou à Bigelow que
“pretende alavancar a autoridade do atual regime de licenciamento para
encorajar os investimentos do setor privado nos sistemas espaciais, com a
garantia de que as atividades comerciais possam ser conduzidas sem qualquer
interferência”. Em outras palavras, segundo a interpretação de “especialistas”:
“A Bigelow poderá instalar uma de suas habitações infláveis na Lua e esperar
receber direitos exclusivos sobre o seu terreno, bem como sobre as áreas
relacionadas que possam ser utilizadas para mineração, exploração e outras
atividades.”
No entanto, a própria FAA
esclareceu: “Não demos [à Bigelow] licença para pousar na Lua. Falamos de uma
revisão [da regulamentação] das cargas úteis, que, potencialmente, poderão ser
parte de um futuro pedido de licença de lançamento [ao espaço]. Mas isso serve
ao propósito de documentar uma proposta séria de uma empresa norte-americana
para engajar-se numa atividade com alto nível de implicações políticas.” E
disse mais: “Reconhecemos a necessidade do setor privado de proteger seus bens
e seu pessoal na Lua ou em outros corpos celestes.”
Robert Bigelow, fundador da
empresa requerente, disse à Reuters que a decisão da FAA de incentivar as
atividades privadas no satélite natural da Terra, “não significa que há
propriedade privada na Lua; significa apenas que ninguém está licenciado para
pousar em cima de você e em cima de onde você realiza suas atividades de
prospecção e exploração”.
A carta da FAA foi elaborada em
coordenação com os Departamentos de Estado, de Defesa e de Comércio, e também
com a NASA, o que pode significar que ela reflete a opinião do Governo dos EUA,
afirma a Reuters. E destaca: a carta marca a ampliação da competência da FAA,
que passa a licenciar também os lançamentos privados à Lua e demais corpos
celestes, inclusive os asteroides. E salienta ainda o grande trabalho jurídico
e diplomático que precisa ser feito para administrar o potencial
desenvolvimento comercial da Lua e de outros corpos extraterrestres.
O caso FAA/Bigelow pode ser
analisado com base em dois acordos internacionais, elaborados e aprovados pelo
Subcomitê Jurídico do Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço
Exterior (UNCOPUOS) e adotados pela Assembleia Geral das Nações Unidas, antes
de serem lançados à assinatura pelos Estados: o já referido Tratado do Espaço,
de 1967, e o Acordo da Lua3, de 1979. Mas, aqui, cabe basear-se apenas no
Tratado do Espaço, já que o Acordo da Lua não foi ratificado pelos EUA e nem
por qualquer outra grande potência espacial.
Pelo Art. 1º, § 2º, a Lua pode
ser explorada e utilizada livremente por todos os Estados sem qualquer
discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o direito
internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos
celestes. Exploração, aqui, quer dizer, estudo, pesquisa, enquanto utilização
significa uso para manter o assentamento. Ou seja, a Bigelow pode pousar na
Lua, para estudá-la e utilizá-la livremente, para a sua manutenção. Mas, para
tanto, precisa de autorização do governo dos EUA. Isso porque, pelo Art. 6º, o
governo dos EUA é responsável internacional pelas atividades realizadas na Lua
pelos organismos públicos e por entidades não-governamentais, como empresas
privadas, e tem o dever de autorizar e vigiar tais atividades continuamente.
Quanto à determinação de que deve “haver liberdade de acesso a todas as regiões
dos corpos celestes” – e da Lua, portanto –, ela certamente indica que o acesso
a todas as regiões da Lua é livre e não pode haver qualquer empecilho,
inclusive a propriedade privada, que possa impedir o acesso a elas.
Pelo Art. 2º, a Bigelow não
verá a transformação em propriedade privada do local de seu módulo inflável,
nem da região que ela explora e utiliza, pois “a Lua e demais corpos
celestes não poderão ser objetos de apropriação nacional por proclamação de
soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio”. Rand Simberg,
pesquisador do Instituto Empresa e Competição, com sede em Washington, alega
ter descoberto uma lacuna no Art. 2º: pode haver propriedade privada sem
soberania nacional.4 Isto é, onde não há soberania nacional pode haver
propriedade privada. Na Lua, não pode haver soberania, mas pode haver
propriedade privada. Simberg, porém, não parece perceber que a soberania é que
instala, consagra e protege a propriedade. Além disso, o Art. 2º é de
abrangência total. Não deixa abertura para nenhuma outra interpretação: veda a
apropriação da Lua por proclamação de soberania, por uso ou ocupação e por
qualquer outro meio.
Por outro lado, pelo Art. 8º,
os EUA, em cujo registro figuram os objetos da Bigelow lançados à Lua,
conservarão esses objetos sob sua jurisdição e controle, enquanto eles se
encontrem na Lua. Os direitos de propriedade sobre os objetos levados ou
construídos na Lua, assim como seus elementos constitutivos, permanecerão
inalteráveis enquanto tais objetos ou elementos se encontrarem na Lua e durante
seu retorno à Terra. Os objetos ou elementos constitutivos de objetos
encontrados na Lua deverão ser restituídos ao Estado em cujo registro estão
inscritos, devendo esse Estado fornecer, sob solicitação, os dados de
identificação antes da restituição. Para o Tratado do Espaço, os objetos da
Bigelow são de responsabilidade dos EUA, mesmo que, para a legislação nacional
norte-americana, eles sejam propriedade privada da Bigelow.
Pelo Art. 9º, os EUA, ao
explorarem e usarem a Lua, deverão fundamentar-se nos princípios da cooperação
e da assistência mútua, e exercerão as suas atividades na Lua levando na devida
conta os interesses correspondentes dos demais Estados. Como as atividades da Bigelow
estão necessariamente sob a responsabilidade dos EUA, elas devem também
fundamentar-se nos mesmos princípios de cooperação e da assistência mútua, e
levar em devida consideração os interesses correspondentes dos demais Estados e
suas organização e entidades.
Ainda pelo Art. 9º, se os EUA
têm razões para crer que uma atividade ou experiência realizada na Lua pela
Bigelow, empresa privada nacional dos EUA, poderia criar um obstáculo capaz de
prejudicar as atividades dos demais Estados e seus nacionais na exploração e
utilização pacífica da Lua, os EUA deverão fazer consultas internacionais
adequadas antes de empreenderem (ou autorizarem) a referida atividade ou
experiência. Assim também, qualquer Estado que tenha razões para crer que uma
experiência ou atividade realizada na Lua por outro Estado, ou por seus
nacionais, criaria um obstáculo capaz de prejudicar as atividades de exploração
e utilização da Lua, poderá solicitar a realização de consultar internacionais
sobre a referida atividade ou experiência.
Pelo Art. 11, os EUA, para
favorecer a cooperação internacional, concordam, na medida em que isto seja
possível e realizável, em informar ao Secretário-Geral da Organização das
Nações Unidas, bem como ao público e à comunidade científica internacional,
sobre a natureza da condução das atividades da Bigelow, o lugar onde serão
exercidas e seus resultados. O Secretário-Geral da Organização das Nações
Unidas, por seu turno, deverá estar em condições de assegurar, assim que as
tenha recebido, a difusão efetiva dessas informações.
Pelo Art. 12, as instalações,
materiais e veículos espaciais da Bigelow na Lua deverão ser acessíveis, em
condições de reciprocidade, a representantes dos demais Estados. Estes
representantes notificarão, com antecedência, qualquer visita projetada, de
modo a que as consultas desejadas possam realizar-se, e que se possa tomar o
máximo de precauções para garantir a segurança e evitar perturbações no
funcionamento normal da instalação a ser visitada.
A estas situações concretas
conduz uma leitura atenta do Tratado do Espaço, tal como vigora ainda hoje,
embora na visão de muitos especialistas ele necessite urgentemente ser
atualizado, ainda que mantendo incólumes seus princípios basilares.
O Acordo da Lua, por sua vez,
permite, em seu famoso Art. 11, § 5º, a exploração comercial e industrial
(explotação) dos recursos lunares dentro de um regime internacional, a ser
criado assim que tal explotação estiver prestes a tornar-se possível. Esse
regime internacional teria como objetivo, entre outros, “promover a
participação equitativa de todos os Estados Partes nos benefícios auferidos dos
recursos lunares, levando em especial consideração os interesses e necessidades
dos países em desenvolvimento e os esforços dos Estados que contribuíram, direta
ou indiretamente, na exploração da Lua”. O Acordo da Lua, aprovado por
unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 1979, foi
posteriormente rejeitado pelas principais potências espaciais, sobretudo
em vista de sua definição da Lua e seus recursos naturais como “patrimônio
comum da humanidade” e do princípio da participação equitativa dos benefícios
resultantes dos recursos lunares entre os países em desenvolvimento e os
desenvolvidos.
Hoje, às vésperas de se tornar
viável a mineração na Lua e em asteroides, ainda não há – nem em debate – um
acordo internacional para ordenar a explotação dos recursos dos corpos
celestes. Trata-se de mais uma questão global, de interesse para todos os
países e povos. Não pode nem deve ser resolvida de forma unilateral por um ou
alguns países, sem “levar na devida conta os interesses correspondentes dos
demais Estados” e de suas entidades nacionais, públicas ou privadas.
Os especialistas do Núcleo de
Estudos de Direito Espacial (NEDE) da Associação Brasileira de Direito
Aeronáutico e Espacial (SBDA), têm se manifestado a favor de que o Brasil
assine e ratifique o Acordo da Lua, especialmente para gerar uma discussão mais
aprofundada, em especial no âmbito das Nações Unidas, sobre como regulamentar a
exploração das riquezas naturais situadas em outros corpos celestes, em
benefício de todos os habitantes da Terra.
* Vice-Presidente da
Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor
Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da
Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de
Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Este artigo reflete
apenas a opinião do autor.
Referências
(1) Lachs, Manfred (1914-1993), The Law of Outer Space – An Experience
in Contemporary Law-Making, The Netherlands: Martinus Nijhoff Publishers and
International Institute of Space Law, 2010, p. 45.
(2) Ver texto total na seção de
documentos do site www.sbda.org.br.
(3) Ver também na seção de documentos
do site www.sbda.org.br.
(4) Ver Could legal 'loophole' lead to land claims on other world,
Wired, Adam Mann, 05/04/2012, www.wired.com/2012/04/moon-mars-property/.
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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