Um Brasileiro no Censo da Via Láctea
Olá leitor!
Segue abaixo uma matéria/entrevista postada hoje (16/01)
no "Blog Mensageiro Sideral" do site do Jornal Folha de São Paulo, dando
destaque a participação do astrônomo brasileiro Alberto
Krone-Martins na “Missão Gaia” da Agência Espacial Europeia (ESA).
Duda Falcão
Um Brasileiro no Censo da Via Láctea
Por Salvador Nogueira
16/01/2014 - 15:00
No começo do ano, o
satélite europeu que vai fazer o maior censo estelar da história da Via Láctea
chegou à sua órbita de trabalho. Localizada a cerca de 1,5 milhão de km da
Terra (mais de três vezes a distância entre o planeta e a Lua), ela permitirá à
missão, chamada Gaia, monitorar precisamente cerca de 1 bilhão de estrelas —
uma amostra representativa, considerando que a galáxia inteira tem entre 100
bilhões e 400 bilhões de estrelas (o número exato, claro, ninguém
sabe). Trata-se de uma grande aventura científica, que infelizmente não
conta com a participação oficial do Brasil. Mas não é por falta de competência.
Afinal, como em quase todas as missões espaciais estrangeiras, se você procurar
bem, vai acabar achando um ou dois brasileiros lá no meio do povo. No caso
do Gaia, lançado em dezembro do ano passado, nosso país está representado pelo
astrônomo Alberto Krone-Martins, que no momento trabalha na Universidade de
Lisboa, em Portugal, focado no processamento de dados da missão.
Concepção artística do satélite Gaia, da ESA (Agência Espacial Europeia). |
O principal objetivo da missão
é usar pequenas variações nas posições relativas das estrelas para determinar
sua distância e movimento ao redor do centro da Via Láctea. A luz proveniente
delas será colhida por dois espelhos dentro do satélite, e os dados devem também
revelar muitas outras coisas, como a descoberta de planetas extrassolares e a
presença de asteroides ainda não contabilizados em nosso sistema planetário.
“As medidas do Gaia vão tocar
diretamente ou indiretamente todas as áreas da astronomia”, diz o astrofísico
brasileiro ao Mensageiro Sideral. “Vamos
aprender mais sobre a estrutura do espaço-tempo, sobre os asteroides do Sistema
Solar, provavelmente também sobre alguns cometas, sobre as órbitas de nossos
vizinhos, sobre como estrelas nascem, evoluem e morrem, sobre os planetas ao
redor dessas estrelas, sobre a estrutura de nossa galáxia e sobre como ela
provavelmente aos poucos se originou a partir da canibalização de outras
galáxias menores, sobre as galáxias mais próximas de nós, sobre algumas galáxias
mais distantes, sobre supernovas nessas galáxias e sobre quasares ainda mais
distantes. Após o catálogo Gaia ser finalizado, até mesmo a própria escala de
distâncias em nosso Universo pode ser modificada!”
Confira abaixo a íntegra do
bate-papo sobre a empolgante missão, que não é da USS Enterprise, mas também é
de cinco anos…
Alberto Krone-Martins no centro de controle da missão em Darmstadt, na Alemanha. |
Mensageiro
Sideral – Como você foi parar no projeto do satélite Gaia?
Alberto
Krone-Martins - Além da
paixão pela Astronomia, muito alimentada pelo Clube de Astronomia de São Paulo
(CASP), sempre me acompanhou uma vontade de encarar grandes desafios. E o Gaia
estava cheio deles! Ouvi falar dessa missão espacial ainda durante a graduação
em física no IF da Universidade de São Paulo, em uma visita ao Observatório
Abrahão de Moraes, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências
Atmosféricas (IAG) daquela universidade. Após terminar o mestrado no IAG-USP,
passei alguns meses trabalhando na Universidade de Barcelona, onde escrevi uma
parte do “Simulador do Universo” do Gaia. Depois disso realizei o doutorado
(com apoio da FAPESP, da CAPES, do Cofecub e do CNES) entre a Universidade de
São Paulo e a Université de Bordeaux. Nessa época, trabalhando com o Prof.
Ramachrisna Teixeira e a Dra. Christine Ducourant, demonstramos que era possível
usar o Gaia para estudar objetos celestes extensos, como outras galáxias ou
quasares em que se pode ver a galáxia hospedeira — o que deve em alguns casos
perturbar as medidas que são usadas como referência para medir as posições das
estrelas da Via Láctea. Estudar esses objetos extensos com o Gaia era tido como
algo quase impossível de se fazer até então, uma vez que o satélite foi
desenhado para estudar apenas objetos pontuais. Mas no final não apenas
mostramos que era possível, como também implementamos quase tudo o que era
necessário para tornar isso possível e mostramos que as informações que o Gaia
pode vir a nos dar sobre esses objetos, por causa de sua resolução,
provavelmente serão as mais precisas disponíveis por algum tempo! Desde então
tenho trabalhado continuamente na missão, agora na Universidade de Lisboa.
Eu digo “essa missão”, e não
“esse satélite”, porque não é só o satélite que importa. Também é toda uma
grande colaboração de análise de dados, chamada DPAC (Data Processing and
Analysis Consortium), que engloba centenas de pesquisadores e de engenheiros de
software espalhados por toda Europa — e alguns bem poucos também em outros
países, como o Brasil. Diferentemente de outros projetos astronômicos, como o
Hubble, por exemplo, as observações realizadas pelo Gaia não são imagens, e per
se não têm praticamente nenhum uso para a comunidade astronômica antes da
produção do catálogo Gaia. E é o DPAC que é encarregado de criar esse catálogo,
que terá influência direta ou indireta em todas as áreas da astronomia.
E não só! Partes desse catálogo
também poderão ter influência em outras atividades humanas. Um exemplo: muitas
pessoas estão acostumadas a usar aparelhos de GPS para se locomover, e a maior
parte de nós sabe que esses aparelhos usam sinais de satélites para se
localizar, certo? Mas você já se perguntou como é que os satélites de GPS se
localizam e determinam seu posicionamento e orientação? Esse “controle de
atitude”, no jargão técnico, no mínimo necessita de um catálogo com posições de
objetos no céu, um “mapa” para guia-los. Hum…
Mensageiro
Sideral – O Gaia vai basicamente fazer um censo da Via Láctea. Um bilhão de
estrelas é uma amostra bem representativa das que deve ter nossa galáxia. Será
o suficiente para determinar com precisão coisas que há tempos queremos saber,
como, por exemplo, o número de braços da galáxia?
Krone-Martins - Para muitas coisas sim. O exemplo que deu, o número de
braços da galáxia, será conhecido com bastante acurácia. Mas não apenas o
número, como também sua estrutura e, talvez, sua evolução serão conhecidas.
Após o catálogo Gaia ser completado teremos pela primeira vez na história da
humanidade uma visão precisa e acurada de grande parte de nossa galáxia em três
dimensões, e de todos os seus componentes estruturais: os braços, o disco, o
bojo, as deformações que podem existir no limite da galáxia, o halo etc. E
ainda mais do que isso, não somente teremos uma visão estática. Uma vez que as
medidas e o processamento nos fornecem os movimentos tridimensionais desses objetos,
poderemos mesmo ver os movimentos de muitas dessas estrelas!
Mensageiro
Sideral – O componente de exoplanetas da missão também é bem empolgante. Não há
a chance de achar outras Terras, mas pelo menos saberemos com que frequência
temos Júpiters em órbitas longas, não? Qual a importância de determinar isso?
Krone-Martins - Para se entender como se formam e evoluem os sistemas
planetários é necessário criar modelos teóricos e principalmente incluir de
forma detalhada a dinâmica, a evolução de parâmetros orbitais do sistemas.
Contudo, esses modelos teóricos precisam ser restringidos, o que é feito graças
às observações de muitos tipos de sistemas planetários distintos, de várias
massas e arquiteturas orbitais diferentes, incluindo esses Jupíteres em órbitas
longas. Os diferentes tipos de observações de exoplanetas nos fornecem
parâmetros diferentes desses corpos celestes, e algo muito central é que a
astrometria com a precisão do Gaia não permite apenas a detecção de um bom
número de novos exoplanetas, mas também a confirmação de quais planetas
detectados anteriormente por velocidade radial ou trânsito existem realmente, e
não são apenas algum tipo de sinal criado por fenômenos ocorrendo na atmosfera
da estrela.
Além disso, parâmetros como a
inclinação dos planos orbitais dos planetas e suas massas são informações dadas
com acurácia pela astrometria. Isso é extremamente importante, pois munidos
dessas informações é possível determinar se é possível ou não existirem
planetas tipo Terra dentro da “zona habitável” de tais sistemas.
E sim, o Gaia não atingirá a
precisão necessária para realizar a detecção e caracterização de exoplanetas de
planetas terrestres em torno de estrelas parecidas com o Sol. Mas como para
isso é necessário apenas precisão, e não acurácia, e precisão é mais simples de
atingir, estamos quase chegando ao ponto em que será possível fazê-lo. Para
isso já temos um conceito de missão espacial astrométrica para finais da
próxima década sendo preparado em banho-maria.
Mensageiro
Sideral – O Gaia também permitirá o estudo da matéria escura em torno da Via
Láctea, mapeando a trajetória de estrelas no halo galáctico?
Krone-Martins - Sim. A partir das medidas que o satélite irá realizar
poderemos reconstruir o potencial gravitacional da Via Láctea. Comparando esse
potencial reconstruído a partir dos movimentos das estrelas com o potencial
inferido a partir da distribuição da matéria luminosa é possível determinar a
diferença entre o movimento que se observa e aquele que seria esperado dada a
quantidade de matéria observada. E isso será realizado não apenas no halo, mas
também em outros componentes estruturais de nossa galáxia. Outro ponto
interessante é que o Gaia realizará testes extremamente precisos da
relatividade geral — ordens de magnitude mais precisos do que feito até hoje –,
pois, para atingir a precisão e acurácia requeridas, todo tratamento de dados
leva em conta as deformações da trajetória da luz na proximidade de planetas do
Sistema Solar. Se existirem problemas com a relatividade geral, esses problemas
serão percebidos durante a análise dos dados da missão.
Mensageiro
Sideral – Qual é o mais empolgante aspecto do satélite, na sua opinião?
Krone-Martins - É uma pergunta engraçada, pois honestamente é bem difícil
de responder… tudo é tão empolgante!
Se estamos falando no objeto
“satélite”, ele provavelmente é uma das peças mais precisas construídas pela
humanidade. Relojoaria suíça? Nem perto. A estrutura inteira do Gaia e seus
espelhos são construídos com um material tão rígido quanto o diamante — e é o
maior instrumento já construído pelo ser humano com esse material. Os ângulos
entre os espelhos dentro do satélite são monitorados constantemente utilizando lasers
e uma técnica extremamente precisa chamada interferometria. O relógio interno
do satélite? Um relógio atômico. E a câmera? É simplesmente a maior câmera já
lançada ao espaço, além de uma das mais precisas já construídas, contendo quase
um bilhão de pixels distribuídos em uma área de aproximadamente um metro por
meio metro. Os detectores, chamados CCDs, foram desenvolvidos (e grande parte
da tecnologia necessária foi inventada) sob medida para o Gaia, e entre
conceito e a produção se passou uma década!
Se falarmos no desafio que é
preparar toda a análise de dados, ele provavelmente originou uma das mais
complexas colaborações científicas existentes. O processamento é distribuído
entre centros de supercomputadores dedicados que estão espalhados pela Europa,
e de forma distinta de experimentos onde os dados podem ser naturalmente
distribuídos e analisados de forma separada (como em estudos de altas
energias). No caso do Gaia os dados são interdependentes e a análise exige
troca periódica de informação entre esses centros. Para tornar tudo isso
possível, foram necessários muitos milhões de linhas de código não apenas para
analisar os dados mas também para testar os próprios códigos de forma
completamente automática, além de uma enorme dedicação que também pode ser
contada em milhões de horas de seres humanos, para cálculos matemáticos,
redação de páginas de documentação e muitos milhares de horas de
teleconferências e de reuniões presenciais, que por vezes podem ser acaloradas!
É um processo empolgante de aprendizado sobre projetos e pessoas — tanto no
nível pessoal quanto social. Ao participar de algo assim, acaba-se também
aprendendo a fazer com que centenas ou milhares de pessoas, todas altamente
qualificadas, muitas com opiniões fortes e muito bem fundamentas, cheguem em
uma finalidade comum. E isso tudo ainda continua pelo menos até 2021! O
lançamento está apenas em três quintos do total da missão.
E se falarmos de tudo o que
poderemos aprender sobre o nosso Universo com o Gaia! Como disse antes, as
medidas do Gaia vão tocar diretamente ou indiretamente todas as áreas da
astronomia. Vamos aprender mais sobre a estrutura do espaço-tempo, sobre os
asteroides do Sistema Solar, provavelmente também sobre alguns cometas, sobre
as órbitas de nossos vizinhos, sobre como estrelas nascem, evoluem e morrem,
sobre os planetas ao redor dessas estrelas, sobre a estrutura de nossa galáxia
e sobre como ela provavelmente aos poucos se originou a partir da canibalização
de outras galáxias menores, sobre as galáxias mais próximas de nós, sobre
algumas galáxias mais distantes, sobre supernovas nessas galáxias e sobre
Quasares ainda mais distantes. Após o catálogo Gaia ser finalizado, até mesmo a
própria escala de distâncias em nosso Universo pode ser modificada! Sabia que
existe um grande problema não resolvido sobre a distância até um dos
aglomerados de estrelas mais próximos de nós? As teorias de evolução estelar e
medidas dos brilhos aparentes das estrelas dizem uma coisa, assim como medidas
astrométricas relativas (que são dependentes de modelos). Já as medidas
astrométricas globais realizadas pela missão espacial antecessora do Gaia,
chamada Hipparcos, mesmo depois de muitos anos de escrutínios constante, dizem
outra. Quem está certo? Apenas após o Gaia saberemos! E se existem essas
discrepâncias sistemáticas em medidas de objetos próximos, que são apenas o
primeiro degrau na escada de distâncias do Universo, imagine como isso pode se
propagar para objetos cujas medidas dependem desse primeiro degrau!
Dito tudo isso, provavelmente o
mais empolgante aspecto da missão Gaia é aquele que ainda não nos apercebemos.
Conhece aquela frase da abertura de Jornada nas Estrelas?
“Audaciosamente indo aonde ninguém jamais esteve”? Então, o Gaia nos permite
continuar a levar o conhecimento cada vez mais longe. E a astrometria, a base
da astronomia e o âmago da missão Gaia, que tem acompanhado o ser humano desde
que olhamos pela primeira vez para o céu, em algum momento de nosso
desenvolvimento também permitirá fazê-lo literalmente.
Fonte: Blog “Mensageiro Sideral“ – http://mensageirosideral.blogfolha.uol.com.br
Comentário: Pois é leitor, apesar do governo de corruptos,
debiloides e irresponsáveis que temos, iniciativas pessoais como esta colocam o
Brasil pelo menos participando dos grandes projetos espaciais e astronômicos em
andamento no mundo. Gostaria de agradecer publicamente ao leitor paulista José Ildefonso
pelo envio desta interessante matéria/entrevista.
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