O Antropocentrismo e a Era Espacial
Olá leitor!
Segue abaixo um novo artigo escrito pelo Sr. José Monserrat
Filho e postado hoje (23/03) pelo companheiro André Mileski em seu no Blog
Panorama Espacial.
Duda Falcão
O Antropocentrismo e a Era
Espacial
José
Monserrat Filho*
“A que nível de
responsabilidade e solidariedade os indivíduos e
grupos devem aspirar para o bem das gerações presentes e
futuras?”
Christian Brünner, em “A Ética
no Espaço Exteior”1
O livro “Ética da Solidariedade
Antropocósmica”, do filósofo brasileiro Olinto Antonio Pegoraro1, nos brinda
com uma reflexão instigante sobre as origens e a atualidade daquela que ele
chama de “a mais completa e harmoniosa visão do mundo”, elaborada pela Escola
Estoica, que começou a se desenvolver no século IV a. C.
“A tese dos antiquíssimos
estoicos”, afirma Pegoraro, “é a tese da recentíssima Carta da Terra, da
Unesco”, lançada no ano 2000, que “nos convoca a olhar a Natureza e daí tirar
as diretrizes de ações de respeito à totalidade do Universo”2. A Carta mostra
um quadro dramático e urgente já no preâmbulo: “Estamos diante de um momento
crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o
seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e
frágil, o futuro reserva, ao mesmo tempo, grande perigo e grande esperança.”
O perigo está em que “a
capacidade de recuperação da comunidade de vida e o bem-estar da humanidade
dependem da preservação de uma biosfera saudável com todos seus sistemas
ecológicos, uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras
e ar limpo”.
A esperança está em que “somos
uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum” e que “é
imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns
para com os outros, com a grande comunidade de vida e com as futuras
gerações”.3
Pegoraro lembra, porém, que
“nós todos, e todas as gerações anteriores, fomos formados pela ética
antropocêntrica, segundo a qual todas as coisas do universo (minerais, vegetais
e animais) são subordinadas ao homem, e estão a nosso uso e consumo”. Descartes
chamava o homem de “senhor e dono da natureza”.4 Pegoraro frisa que “hoje esse
antropocentrismo não faz sentido”, porque “a ética transbordou para todas as
realidades, trata da proteção das três formas de vida e do meio ambiente onde
se desenvolve a vida, como a água, o ar, a luz e os sais minerais; no campo
ético incluem-se necessariamente os produtos tecnocientíficos”. Logo, “a ética
não é só das pessoas, mas da sociedade política e de todas as coisas do planeta
Terra”.
Para o filósofo, “é espantoso
constatar que nossa ética milenar não era universal, pois envolvia apenas o
homem; agora, felizmente, estamos chegando à ética cósmica, na qual tudo o que
existe, no macrocosmo infinitamente grande ou no microcosmo infinitamente
pequeno, contém em si, na sua existência, dignidade ética”.5
Ele recorda que “a ética
antropocêntrica sempre visou à virtude e à felicidade constituídas a partir do
esforço humano, da educação e do hábito de praticar o bem e fazer atos justos”
e que, por sua vez, “os estoicos buscaram exatamente o mesmo resultado a partir
do reconhecimento de todos os seres como filhos da Natureza, donde resultava a
'convivência harmoniosa entre a natureza, o daimon (razão) que habita cada um
de nós e a vontade do governador do universo'”, conforme escreveu o filósofo grego
Crísipo (280-208 a. C.)6.
A tudo isso hoje, nota
Pegoraro, chamamos ética da solidariedade antropocósmica, ou seja, “o
reconhecimento do valor ético intrínseco à estrutura íntima de cada existência,
seja pedra, palmeira, pássaro ou ser humano. Esse reconhecimento gera
solidariedade, aliança, convívio (oikeiosis estoico) do ser humano com o
cosmos”. Daí sua conclusão de que “estamos a caminho da 'ética universal
concreta', e não de generalizações metafísicas”.7 A meta é alcançar “a aliança
do homem com a natureza”, que antes era “o conjunto de coisas apenas com valor
de troca” e hoje tem um “valor ético intrínseco”, pois, “por pressão da
tecnociência, criamos paradigmas éticos não só temporais e provisórios, mas
também abrangentes de todas as coisas: todas elas têm valor ético intrínseco à
sua existência”.8
A Carta da Terra já incorpora o
novo paradigma, ao assinalar que “a Terra, nosso lar, é viva como uma
comunidade de vida incomparável; o bem-estar da humanidade depende da
preservação de uma biosfera saudável com todos seus sistemas ecológicos, uma
rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo.
Enfim, a proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um dever
sagrado.”
E qual é o papel da
tecnociência neste panorama? Aqui, Pegoraro nos leva até o filósofo alemão
Martim Heidegger (1889-1976), que tem uma famosa conferência sobre a questão
técnica. Com base em Heidegger, Pegoraro faz ampla acusação: “Foi justamente a
tecnociência que criou o atual estado do mundo, tomado por máquinas de todo o
tipo para produzir objetos, em espantosa variedade, concentrados em shoppings,
supermercados, lojas e agências de automóveis, verdadeiros templos do consumo.
Vivemos empilhados nos andares de imensos prédios urbanos em todo o mundo.
Enfim, sentimo-nos sufocados pelos produtos técnico-científicos e quase
perdemos o contato com a natureza, que submetemos à nossa dominação e
devastação.”
Mas Pegoraro reconhece que
Heidegger não culpa a tecnociência pela devastação que ela introduz no
ecossistema. E aponta: “Culpada é a razão calculante, é o homo faber, que reduz
a natureza a um reservatório de energia para mover a indústria poluente. A
solução não é a destruição da tecnociência, mas a conversão do homem calculante
em meditante, que vê a natureza integrada numa totalidade de sentido”.9
Rodrigo Nunes, professor de
Filosofia da PUC-Rio, concorda e salienta: “Somos, em suma, uma espécie
natural, cuja cultura, tendo modificado a natureza de maneira radical, agora se
nos opõe com a resistência bruta e muda de uma natureza que parecemos incapazes
de modificar.”
Até ontem, considerava-se
“realista” quem se opunha à defesa da natureza em favor do que é “bom para a
economia”. O que é ser “realista” hoje? Nunes responde com ironia: “No momento
em que a ciência afirma que o planeta é incapaz de suportar o atual ritmo e
modelo de desenvolvimento econômico, ser realista em relação à economia sem ser
realista em relação a seu suporte físico é exatamente como acreditar que existe
almoço de graça; que, contra toda a lógica, o planeta pode continuar a oferecer
energia e absorver dejetos indefinidamente e cada vez mais rapidamente.
Trata-se, em resumo, de um 'realismo' que completa a certeza de que só se
faz omelete quebrando ovos com a crença mágica numa Galinha dos Ovos de Ouro
infinitamente dadivosa.”10
Algo muito semelhante se vê
hoje no espaço exterior, quando as atividades ali exercidas se tornam cada vez
mais necessárias à vida cotidiana das nações e povos do nosso planeta. Estamos
nos aproximando velozmente da hora em que as órbitas mais utilizadas não mais
suportarão o atual ritmo e modelo de desenvolvimento dos programas espaciais,
seja pelo acúmulo de detritos, seja pelo perigo das armas que ali se planejam
instalar com crescente determinação. O espaço corre o risco de se transformar
em campo de batalha e teatro de guerra.
A abundância de luzes de alguns
lugares da Terra vista do espaço não apenas polui a visão do Universo, como é um
monumento ao desperdício.11
Pouco aprendemos na prática das
ameaças de esgotamento da Terra, cada vez mais difícil de superar. A mesma
lógica destrutiva insiste em ocupar o espaço próximo de nós e imprescindível à
humanidade contemporânea. Há muitos planos para conter esse contínuo
agravamento, é verdade. Mas quase nada sai do papel. Estamos rolando num plano
inclinado e nossa reação é modesta e beira a irresponsabilidade. Falta uma
verdadeira e sólida cooperação que una todos os países e povos na defesa da
Terra, bem como do espaço e das atividades espaciais – bens de uso comum da
espécie humana, que ainda sofrem os efeitos egoístas e daninhos do
antropocentrismo.
* Vice-Presidente da Associação
Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do
Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia
Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de Cooperação
Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Este artigo reflete apenas
a opinião do autor.
Referências
(1) Professor da Universidade
de Graz, Áustria.
(2) Pegoraro, Olinto Antônio,
Ética da Solidariedade Antropocósmica, Rio de Janeiro: Mauad X, 2014, p. 10.
(3) Do site
www.cartadaterrabrasil.org. Ver também Boff, Leonardo, Ética e Moral, Petrópolis:
Vozes, 2003, p. 109.
(4) René Descanter, filósofo,
físico e matemático francês (1596-1650). Autor de “Discurso sobre o Método”,
“Meditações sobre Filosofia”, “Princípios de Filosofia”, “As paixões da alma”.
(5) Pegoraro, Idem Ibid, p. 11.
(6) Bréhier, Émile, Les stoiciens.
Paris: Gallimart, 1962.
(7) Pegoraro, Idem Ibid, p. 12.
(8) Pegoraro, Idem Ibid, p. 13.
(9) Pegoraro, Idem Ibid, p. 14.
(10) Nunes, Rodrigo, O realismo
talvez não seja o que você imagina – A natureza também não dá almoço grátis,
Folha de S. Paulo, Caderno Ilustríssima, p. 3.
(11) Extraterrestrial Altruism – Evolution and Ethcs in the Cosmos,
Douglas A. Vakoch (Ed.), Germany, Berlin Heidelberg: Springer-Verlag, 2014, p.
IX.
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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