A Nova Era Espacial da China: Foguetes Reutilizáveis

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O portal SpaceNews postou ontem (25 de agosto de 2025) uma matéria intitulado "China is about to start trying to land and reuse its rockets". A presente postagem representa uma análise estratégica e detalhada do tema, sintetizando dados da matéria em tela e de ouras fontes.

A partir de uma análise holística e robusta, o texto busca  apresentar alguns avanços da China em foguetes reutilizáveis. A ideia foi de mapear o cenário competitivo, identificar os principais players, analisar os progressos técnicos e projetar as implicações estratégicas da ascensão chinesa no setor de lançamentos espaciais.

O primeiro estágio do Zhuque-3 de aço inoxidável antes dos testes de fogo estático em junho de 2025 (Crédito: Landscape / Spacenews)

A indústria espacial chinesa está em um ponto de inflexão decisivo, migrando de um modelo predominantemente centrado em foguetes descartáveis para um ecossistema dinâmico e competitivo de tecnologias reutilizáveis. O principal catalisador para essa transição é a crescente demanda de grandes constelações de satélites de internet, como a Guowang e a Spacesail. A necessidade de lançar dezenas de milhares de satélites em órbita baixa da Terra (LEO) a custos drasticamente menores está forçando o ritmo da inovação e fomentando o surgimento de um vibrante setor privado.

Empresas comerciais como LandSpace, Galactic Energy e i-Space estão na vanguarda, com testes de voo de Decolagem e Pouso Vertical (VTVL) e cronogramas ambiciosos para lançamentos orbitais em 2025 e 2026. Seus projetos, como o Zhuque-3, PALLAS-1 e SQX-3, estão prestes a validar a tecnologia de reuso em voo orbital. Paralelamente, o setor estatal, através da China Aerospace Science and Technology Corporation (CASC), também está desenvolvendo variantes reutilizáveis de seus foguetes Long March. Essa estratégia dual — público e privado — demonstra um esforço coordenado para garantir a liderança espacial a longo prazo, com o setor comercial agindo como um banco de testes ágil para tecnologias que podem ser posteriormente integradas ao programa estatal.

Embora o progresso seja notavelmente rápido, existem desafios técnicos e operacionais significativos. Os cronogramas são ambiciosos e podem sofrer atrasos. A incerteza inerente a essa fase inicial de testes, especialmente para o primeiro pouso orbital da LandSpace, é um fator a ser monitorado de perto, ainda que a transparência (principalmente dos insucessos) não algo inerente ao ambiente. O sucesso dessas iniciativas terá um impacto profundo no mercado global de lançamentos, posicionando a China como um competidor formidável para empresas como a SpaceX e alterando a economia de acesso ao espaço.

Um Catalisador do Mercado: A Demanda das Megaconstelações e o Paradigma da Reutilização

Historicamente, o programa espacial chinês dependeu de sua robusta, mas tradicional, família de foguetes descartáveis Long March (Longa Marcha), operada pela estatal CASC. Esses veículos, embora confiáveis e capazes de realizar uma ampla gama de missões — de LEO a transferências translunares / transmarcianas —, não foram concebidos para as economias de escala exigidas pelo mercado de satélites contemporâneo. A economia de um lançamento de foguete descartável é intrinsecamente linear: o custo do veículo é amortizado em uma única missão, independentemente da carga útil.

A principal força motriz por trás da inovação em reutilização na China não é simplesmente a emulação do sucesso de empresas ocidentais, mas uma necessidade econômica premente e estratégica. O governo chinês e as empresas estatais estão promovendo o desenvolvimento de vastas constelações de satélites de internet, como a Guowang e a Spacesail, com planos para implantar dezenas de milhares de satélites em órbita baixa da Terra. O lançamento de uma única missão tem um custo fixo elevado. 

No entanto, quando um plano exige a implantação de milhares de satélites, o custo por quilograma em órbita o fator financeiro torna-se dominante. Foguetes descartáveis tornam o custo proibitivo para constelações de grande escala. O modelo de reutilização, que dilui o custo de desenvolvimento em múltiplos voos, é a única solução viável e economicamente sustentável. 

Essa necessidade de acesso frequente e de baixo custo ao espaço está, portanto, criando um mercado doméstico e uma justificativa econômica para os investimentos maciços em tecnologia de reuso, ecoando diretamente o modelo de negócios da SpaceX com a constelação Starlink.

Líderes da Corrida Comercial Chinesa de Foguetes

O cenário chinês de foguetes comerciais é caracterizado pela proliferação de empresas ágeis que estão buscando replicar o sucesso de empresas ocidentais. As abordagens tecnológicas variam, mas o objetivo de Decolagem e Pouso Vertical (VTVL) para a reutilização do primeiro estágio é uma meta compartilhada.

LandSpace e o Foguete Zhuque-3

A LandSpace é uma das empresas mais proeminentes na corrida pela reusabilidade. Seu foguete, o Zhuque-3, destaca-se por sua abordagem técnica. Ele utiliza metano e oxigênio líquido (methalox) como propelentes e, de forma notável, seu primeiro estágio é construído em aço inoxidável. Essa escolha de material o diferencia da maioria dos projetos análogos ao Falcon 9 e o alinha conceitualmente com a Starship da SpaceX, o que sugere um foco na durabilidade e na simplificação da fabricação, embora o aço seja mais pesado do que as ligas de alumínio convencionais.

Em setembro de 2024, a LandSpace realizou com sucesso um teste de recuperação de decolagem e pouso vertical (VTVL) do Zhuque-3, alcançando uma altitude de 10 km. Este marco foi crucial, demonstrando a capacidade da empresa de realizar um pouso propulsivo controlado. Três missões orbitais do Zhuque-3 foram agendadas para 2025, com a empresa visando a recuperação do primeiro estágio nessas missões. 

Uma análise mais aprofundada baseada em comunidades de especialistas sugere que a própria empresa teria declarado que a tentativa de pouso orbital só ocorreria a partir do terceiro ou quarto voo, possivelmente em meados de 20, Esta discrepância entre os cronogramas públicos otimistas e as projeções mais cautelosas ilustra a complexidade e a incerteza inerente ao desenvolvimento de foguetes reutilizáveis. 

Em termos de desempenho, o Zhuque-3 tem uma capacidade de carga útil de 18.300 kg para LEO em modo reutilizável. Isso o coloca em uma posição competitiva, comparável aos 22,800 kg do Falcon 9, embora ainda inferior.

Galactic Energy e a Família PALLAS

A Galactic Energy está desenvolvendo os foguetes PALLAS-1 e PALLAS-2. O PALLAS-1 é um foguete de dois estágios que utiliza propelentes de querosene e oxigênio líquido (kerolox), uma arquitetura mais tradicional e análoga ao Falcon 9. Seu voo inaugural estava prevista para o primeiro semestre de 2025, com duas missões comerciais já agendadas. 


O PALLAS-1 pode transportar 8 toneladas para LEO. O PALLAS-2, uma versão atualizada, está em desenvolvimento com montagem e testes previstos para serem concluídos em 2025, e sua capacidade será significativamente maior, atingindo 30 toneladas para LEO.3

i-Space e o Programa SQX

A i-Space é outra empresa comercial com um histórico de testes de VTVL bem-sucedidos, tendo concluído voos em novembro e dezembro de 2023. O progresso contínuo da empresa é demonstrado pelos planos para seu foguete de próxima geração, o SQX-3. 


O primeiro lançamento orbital com teste de recuperação está agendado para dezembro de 2025, e o primeiro voo de reutilização do primeiro estágio (após recuperação e reforma) está planejado para junho de 2026. A ambição da empresa é reforçada pelo fato de que a construção da plataforma de recuperação marítima já foi iniciada em novembro do ano passado.

Deep Blue Aerospace e o Foguete Nebula-1

A Deep Blue Aerospace está progredindo com seu foguete reutilizável Nebula-1, movido a kerolox. O veículo completou com sucesso 10 dos 11 testes críticos durante seu voo de recuperação vertical em alta altitude em setembro de 2024. 


A empresa adota uma abordagem mais cautelosa, focando em testes de recuperação em alta altitude para 2025 e 2026 antes de iniciar voos suborbitais comerciais em 2027.

O Setor Estatal: A CASC e a Reutilização do Long March

O programa espacial chinês tem sido historicamente dominado pela China Aerospace Science and Technology Corporation (CASC), responsável pela família de foguetes Long March, que são majoritariamente descartáveis. No entanto, a agência estatal não está imune à necessidade estratégica de reusabilidade. A CASC está ativamente desenvolvendo novos foguetes da série Long March com capacidades de reuso, demonstrando que o movimento de reusabilidade na China não se restringe ao setor privado.

Projetos chave em andamento incluem o foguete Long March 10A, projetado para ser parcialmente reutilizável para missões tripuladas em LEO, e o Long March 9, uma futura plataforma de lançamento superpesada, que está sendo projetada para ser parcialmente reutilizável inicialmente e, no futuro, totalmente reutilizável. A coexistência de uma indústria espacial privada inovadora e de um programa estatal que também adota a tecnologia de reuso é um padrão estratégico único da China. 

O governo permite (se for do seu interesse) a competição e a experimentação no setor comercial, que pode testar e refinar tecnologias de forma mais ágil. Paralelamente, o setor estatal mantém o controle sobre os ativos de lançamento mais críticos e de maior capacidade. A inovação do setor privado pode então ser integrada ou servir de base para os programas estatais mais amplos. Esse modelo minimiza o risco para missões estratégicas e acelera a curva de aprendizado nacional.

O quadro abaixo consolida as informações técnicas e os cronogramas dos principais players chineses, fornecendo uma visão clara das diferentes abordagens e do ritmo acelerado de desenvolvimento:

Quadro comparativo dos principais players chineses (Crédito: BS / Diversas Fontes)

Desafios, Oportunidades e Perspectivas Competitivas

Apesar de empresas ocidentais como SpaceX e Blue Origin dominarem esse setor há quase uma década e meia, a reusabilidade de foguetes não é uma tecnologia trivial. Os desafios são multifacetados e incluem a complexidade do pouso propulsivo em alta velocidade, o estresse térmico e estrutural do reingresso atmosférico, e a logística de recondicionamento do veículo entre os voos. A escolha da LandSpace pelo aço inoxidável no Zhuque-3, por exemplo, pode oferecer vantagens em durabilidade e resistência térmica durante o reingresso, mas também traz o desafio de um maior peso seco, exigindo mais propulsão para o pouso.

Uma observação recorrente é a percepção de que muitas das empresas chinesas, como o PALLAS-1, são descritas como "clones do Falcon 9". No entanto, essa abordagem pode ser vista não como uma falta de originalidade, mas como uma estratégia (eufemista) deliberada de "seguidor rápido" (fast-follower). Em vez de tentar uma inovação radical do zero, as empresas chinesas estão adotando um modelo já validado e bem-sucedido. Isso lhes permite pular etapas custosas de pesquisa e desenvolvimento de conceitos básicos, focando na engenharia de produção e na melhoria contínua. É uma abordagem que já se mostrou eficaz em outras indústrias chinesas e que visa acelerar o desenvolvimento.

O sucesso da China na reusabilidade não se limitará a suas próprias demandas internas. A China está se posicionando para se tornar um concorrente de peso no mercado global de lançamentos, potencialmente oferecendo serviços a custos inferiores. Isso intensificará a competição com players como a SpaceX, Rocket Lab e a futura ArianeGroup, forçando uma reavaliação das estratégias de preços e tecnologia em todo o mundo. Ainda que existam embargos americanos, a capacidade de reusabilidade de seus veículos, quando dominada, permitirá à China capturar uma parcela significativa do mercado de lançamentos de megaconstelações, um segmento que se tornará dominante nas próximas décadas.

O Caminho à Frente

Ainda que com um modelo com muito "envolvimento" governamental, o cenário espacial chinês está em um momento crucial e dinâmico. O progresso em direção à reusabilidade, impulsionado por uma demanda de mercado sem precedentes e apoiado por uma estratégia estatal de longo prazo, é inegável. A coordenação entre o setor privado inovador e um programa estatal em determinada e infreável  evolução cria um ecossistema diferente do modelo ocidental, mas robusto e capaz de superar os desafios técnicos e operacionais que se apresentam.

Nesse contexto, os próximos 12 a 24 meses serão decisivos para o desenvolvimento e testes dos protótipos de reutilizaveis chineses. O sucesso das tentativas de pouso orbital por empresas como LandSpace e i-Space confirmará a China como uma potência de reusabilidade e validará seus modelos de negócios. 

A capacidade de lançar e reutilizar foguetes de forma confiável e econômica permitirá à China não apenas lançar e sustentar operacionalmente suas próprias megaconstelações, mas também competir no mercado global, alterando fundamentalmente a economia do acesso ao espaço e acelerando o desenvolvimento de uma nova geração de infraestrutura orbital. 

A corrida global pelo domínio do espaço nunca foi tão intensa. Ela passa, inevitavelmente pelos veículos / sistemas reutilizáveis e a China está se posicionando para ocupar e disputar a liderança mundial, também, nesse segmento.


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