[Artigo] Mercosul Espacial, a Agenda Pendente
Caros leitores e leitoras do BS!
É com satisfação que compartilho com vocês um artigo interessante, escrito e enviado ao BS por nosso amigo e apoiador argentino, Martín Marteletti. O tema abordado é a agenda pendente do Mercosul Espacial, uma reflexão oportuna e relevante para todos que acompanham o desenvolvimento da cooperação espacial na região.
Mercosul Espacial, a Agenda Pendente
Fonte: Portal Infobae.com
Por Martin Marteletti
08/07/2925
No âmbito da recente reunião do Mercosul realizada esta semana na Argentina, onde os líderes da região se reuniram para discutir os desafios e oportunidades do bloco, emerge com urgência uma agenda que, embora nem sempre visível, é crucial para o futuro estratégico e tecnológico da região: a corrida espacial.
Para além dos debates económicos e políticos tradicionais, a capacidade de acesso autónomo ao espaço e o desenvolvimento de uma indústria espacial robusta apresentam-se como pilares fundamentais para a soberania, o desenvolvimento científico e a competitividade global. Exploraremos como Argentina e Brasil, os principais atores neste domínio, estão a traçar os seus caminhos espaciais e o imenso potencial que uma verdadeira integração poderia desencadear para um "Mercosul Espacial" que transcenda fronteiras e ambições individuais.
É importante notar que, embora o Mercosul seja composto por todos os seus países membros e associados, Argentina e Brasil destacam-se como os países motores desta integração espacial, impulsionados pela sua história, trajetória, investimentos significativos e conquistas notáveis no setor. Juntos, os seus orçamentos espaciais anuais combinados podem ser estimados em centenas de milhões de dólares, um valor considerável para a região, embora ainda modesto em comparação com as grandes potências espaciais globais.
O Futuro Espacial da América Latina: Argentina, Brasil e o Potencial de Integração
A corrida espacial do século XXI não é exclusiva das grandes potências; é um cenário dinâmico onde nações emergentes e startups audaciosas buscam seu lugar. Na América Latina, Argentina e Brasil se erguem como os principais contendores no desenvolvimento de capacidades espaciais, cada um com abordagens e pontos fortes distintos. Uma análise aprofundada de seus programas, tanto estatais quanto privados, revela um panorama de ambição, desafios e um imenso potencial de integração que poderia redefinir sua posição global.
Argentina: A Aposta na Inovação e na Soberania Tecnológica
O programa espacial argentino, liderado pela Comissão Nacional de Atividades Espaciais (CONAE - Comisión Nacional de Actividades Espaciales (CONAE)), INVAP, ARSAT e VENG, demonstrou uma notável capacidade no desenvolvimento e fabricação de satélites de alto valor agregado e complexidade. A série SAOCOM, com seus satélites equipados com radar de abertura sintética (SAR) em banda L, representa uma tecnologia de ponta dominada por poucos países, crucial para a gestão de emergências e aplicações produtivas. Esses satélites fazem parte do Sistema Ítalo Argentino de Satélites para a Gestão de Emergências (SIASGE), uma colaboração estratégica com a Itália que permitiu o desenvolvimento conjunto de capacidades avançadas. Os satélites geoestacionários ARSAT (ARSAT-1 e ARSAT-2), por sua vez, garantiram a soberania argentina sobre suas posições orbitais de telecomunicações, com o ARSAT-SG1 em desenvolvimento. Além disso, projetos como a série SAC (com colaborações históricas com a NASA dos Estados Unidos em missões como SAC-B, SAC-C e SAC-D/Aquarius), o futuro SABIA-Mar, a missão ARTEMIS (em que a Argentina participa com um microssatélite) e os satélites de futura geração SAOCOM 2 e a série SARE (Satélites Argentinos de Observação Remota para Emergências) consolidam a expertise em observação da Terra e aplicações científicas. A Argentina também mantém acordos com a Agência Espacial Europeia (ESA) e a Comissão Europeia para intercâmbio de dados e colaboração em exploração espacial. No âmbito privado, a Satellogic destaca-se como líder global no desenvolvimento e operação de uma grande constelação de nanossatélites de observação da Terra de alta resolução, demonstrando um ecossistema industrial vibrante.
A capacidade de formação de recursos humanos é outro pilar fundamental da estratégia argentina. O Instituto de Altos Estudos Espaciais "Mario Gulich" (IG), uma iniciativa conjunta da CONAE e da Universidad Nacional de Córdoba, é um centro de excelência reconhecido internacionalmente. O Gulich oferece programas de pós-graduação, como o Mestrado em Aplicações de Informação Espacial (MAIE) e o Doutorado em Geomática e Sistemas Espaciais, atraindo e formando estudantes de diversos países da região latino-americana. Isso não só fortalece a base de talentos da Argentina, mas também contribui para o desenvolvimento de capacidades espaciais em toda a América Latina, fomentando uma rede de profissionais e conhecimentos compartilhados.
No que diz respeito ao acesso ao espaço, o programa estatal Tronador, impulsionado pela CONAE e VENG, busca a capacidade de lançar cargas úteis de maior porte. Embora tenha enfrentado desafios e relatos de "paralisia" (que, em um cenário otimista, poderiam ser tendenciosos e desmentidos por avanços técnicos), o êxito em um teste de turbobomba (um componente crítico e complexo de motores líquidos de alto desempenho) seria um marco monumental. Isso posicionaria a Argentina em um seleto grupo de nações com domínio de tecnologia de propulsão avançada, essencial para lançadores de maior capacidade (centenas de quilogramas). O programa inclui o Tronador II, com capacidade para colocar satélites de entre 500 e 750 kg em órbita, e o futuro Tronador III, projetado para transportar até 1000 kg (1 tonelada) para órbita baixa terrestre (LEO).
Complementando a iniciativa estatal, a startup TLON Space emerge com o microlançador Aventura I. Sua proposta é audaciosa: um foguete ultraleve (25 kg para LEO) que utiliza propelentes "verdes" e um sistema de propulsão com eletrobombas, similar ao bem-sucedido Electron da Rocket Lab. A TLON aspira a um custo de lançamento de US$ 500.000 (US$ 20.000/kg), um preço disruptivo para lançamentos dedicados. Esse valor é tão baixo que, para colocar 1 kg de satélite em órbita, seria necessário o equivalente a aproximadamente 75.472 kg de soja argentina, uma comparação que sublinha a disparidade de valor entre a produção terrestre e o acesso espacial. A viabilidade desse custo depende de uma produção em massa (embora a meta de 200 lançamentos/ano seja irrealista a curto prazo, um ritmo de 5-10 lançamentos/ano seria um sucesso considerável) e da reutilização da primeira etapa, provavelmente por meio de paraquedas, uma estratégia sensata para microlançadores que minimiza o consumo de propelente. Além disso, outras empresas argentinas mostram-se muito promissoras no cenário espacial: Epic Aerospace, com seus serviços de transporte de última milha, que visa otimizar a inserção de satélites em suas órbitas finais, e LIA Aerospace, focada no desenvolvimento de sistemas de propulsão ecológicos, contribuindo para a sustentabilidade da exploração espacial.
Brasil: A Consolidação do Programa Estatal e o Impulso ao Setor Privado
O Brasil, por sua vez, consolidou seu programa espacial governamental através da Agência Espacial Brasileira (AEB) e do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA). O VLM-1 (Veículo Lançador de Microssatélites) é seu principal projeto de lançador orbital, projetado para 150 kg para LEO, utilizando propelente sólido. Embora sua estreia orbital tenha sido adiada, o programa avançou no desenvolvimento e testes de motores-chave como o S50, mas estagno devido a problemas com a empresa Avibras, contratada para produzir os mototres. No âmbito satelital, o Brasil possui uma trajetória em satélites de observação da Terra (SCD, Amazonia-1, Amazonia-2 como parte da Missão Amazônia para monitoramento do desmatamento) e a série CBERS (em colaboração com a China), até o CBERS 4A, todos ópticos, e os projetos futuros do CBERS-5 e o futuro CBERS-6 que buscam melhorar a capacidade de monitoramento climático e de recursos terrestres via payload radar).
Um aspecto relevante do programa espacial brasileiro é sua estratégia de aquisição de competências tecnológicas através de colaborações internacionais. Historicamente, o Brasil tem trabalhado estreitamente com a China no programa de satélites CBERS, o que tem permitido um significativ compartilhamento de conhecimento e capacidades no desenvolvimento de plataformas multimissão e sensores. A construção do satélite geoestacionário SGDC, por exemplo, implicou uma importante capacitação tecnológica de engenheiros brasileiros na empresa francesa Thales Alenia Space. Além disso, o Brasil tem buscado diversificar e suprir suas carências com outros países como a Finlândia, da qual adquiriu satélites de radar em banda X (como os da empresa ICEYE, por exemplo, para o projeto Carcará II da Força Aérea Brasileira, que visam aprimorar a capacidade de sensoriamento remoto). No passado, para o projeto VLS (Veículo Lançador de Satélites), o Brasil também adquiriu tecnologia de controle e guiagem da Rússia, além de estudos em propulsão líquida. O Brasil também tem futuros projetos de satélites meteorológicos para melhorar a previsão do tempo e o monitoramento climático. Outros projetos satelitais futuros incluem o SatVHR (Satélite de Muito Alta Resolução), a missão lunar SelenITA e o microssatélite Garatéa-L. O Brasil também tem aberto sua base de Alcântara a operadores internacionais, ganhando experiência operacional. A presença de empresas argentinas como INVAP (fabricante de satélites) e VENG (desenvolvedor de lançadores) em feiras e eventos no Brasil também sugere um ambiente de potencial intercâmbio tecnológico e colaboração no setor espacial regional, incluindo possíveis contribuições argentinas para o desenvolvimento da plataforma multimissão brasileira.
O grande diferencial do Brasil nos últimos anos tem sido o forte impulso e respaldo financeiro governamental às suas startups privadas de lançadores. Consórcios com o liderados pela CENIC Engenharia receberam investimentos significativos para desenvolver seus próprios pequenos veículos lançadores orbitais, como o MLBR (Microlançador Brasileiro), com metas de lançamento para 2026. Isso, somado à abertura do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) a operadores privados (como a sul-coreana Innospace, que já realizou um lançamento suborbital bem-sucedido de lá), cria um ecossistema robusto que mitiga os riscos de financiamento e acelera o desenvolvimento.
O Potencial de Integração: Um Ecossistema Espacial Latino-Americano de Fato
Se Argentina e Brasil decidissem transcender a concorrência e forjar uma colaboração eficaz, o resultado seria um ecossistema espacial regional de fato com uma posição global significativamente fortalecida.
1) Lançadores Diversificados e Complementares: A combinação dos lançadores sólidos e líquidos do Brasil (VLM-1, ML-BR, VLN-AKR) com a tecnologia de turbobombas do Tronador argentino e a proposta disruptiva do Aventura I da TLON Space, criaria um portfólio que cobre um amplo espectro de cargas úteis e tecnologias. Essa flexibilidade e redundância seriam únicas na região.
2) Centros de Lançamento Estratégicos:
2.1) Alcântara (Brasil): Sua proximidade ao equador (~ 2° Sul) oferece uma vantagem inigualável para lançamentos a órbitas geoestacionárias e de baixa inclinação, maximizando a eficiência do combustível graças ao efeito da rotação terrestre.
2.2) Barreira do Inferno (Brasil): Também próximo ao equador (~ 5° Sul) não oferece a vantagem de Alcântara para lançamentos órbitas geoestacionárias, por estar circundado por uma região densamente povoada, permite lançamentos de veículos de menor porte tanto para o norte, quanto para o sul, ou qualquer órbita intermediária e equatorial direção leste.
2.3) Manuel Belgrano (Argentina): Sua localização mais ao sul é ideal para lançamentos a órbitas polares e heliossíncronas (SSO), cruciais para satélites de observação da Terra.
3) Estações Terrenas de Rastreamento, Controle e Recepção de Dados:
3.1) Argentina: A CONAE opera uma rede estratégica que inclui:
3.1.1) A Estação Terrena Córdoba (Falda del Carmen, Córdoba), que atua como o principal centro de controle de missão e recepção de dados.
3.1.2) A Estação Terrena Tierra del Fuego (Tolhuin, Tierra del Fuego), crucial para o rastreamento e controle de satélites de órbita polar devido à sua localização austral.
3.1.3) A Estação Terrena Antártida (na Base Belgrano II, Antártida), de importância vital para o acesso e controle de satélites polares, complementando a cobertura.
3.1.4) A Estação Terrena Río Gallegos (Río Gallegos, Santa Cruz), também estratégica para a comunicação com satélites de órbita polar.
3.1.5) Além disso, a Argentina conta com a Estação Deep Space 3 – Malargüe (Mendoza), operada em colaboração com a ESA para missões de espaço profundo, e a Estação CLTC-CONAE-NEUQUEN (Bajada del Agrio, Neuquén), fruto de um acordo com a China para rastreamento e controle.
3.2) Brasil: O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) gerencia o Centro de Rastreamento e Controle de Satélites (CCS), que opera com:
3.2.1) As Estações Terrenas de Cuiabá (Mato Grosso), fundamental para o rastreamento, envio de comandos e recepção de telemetria e dados.
3.2.2) A Estação Terrena de Alcântara (Maranhão), que complementa a rede de rastreamento e controle, especialmente para lançamentos a partir do CLA.
3.3) Resultado: Uma capacidade de acesso orbital completa, permitindo alcançar qualquer tipo de órbita com a máxima eficiência, complementada por uma rede robusta e geograficamente diversificada de estações terrenas para controle e recepção de dados em todo o espectro orbital, desde o equador até os polos.
4) Indústria Satelital de Vanguarda: A experiência argentina em satélites SAR e GEO de alta complexidade (INVAP, ARSAT) se unirá à força brasileira em observação da Terra e coleta de dados (INPE, Visiona), criando uma capacidade combinada para projetar, fabricar e operar uma gama completa de satélites de diversas complexidades e aplicações.
5) Agências, Universidades e Indústria Integradas: CONAE e AEB atuariam como coordenadores estratégicos, definindo políticas conjuntas, alocando recursos e harmonizando regulamentações. INVAP, VENG, INPE, DCTA, Visiona, CENIC e as universidades colaborariam em P&D, compartilhando conhecimentos e recursos, e estabelecendo programas conjuntos de pós-graduação e intercâmbio. Isso fomentaria um polo de conhecimento e desenvolvimento sinérgico.
6) Projetos Privados Potencializados: Startups como TLON Space, Epic Aerospace, LIA Aerospace (Argentina), Pion Labs, DeltaV e CENIC(Brasil) poderiam colaborar no desenvolvimento de subsistemas ou até mesmo em missões conjuntas, aproveitando as forças mútuas e dinamizando o mercado regional.
Posição Global e Ações para a Integração:
Um ecossistema espacial latino-americano integrado se colocaria em uma posição significativamente mais elevada no ranking global, superando muitos atores emergentes e se aproximando de potências de segundo nível como Japão ou Índia. Deixaria de ser a soma de dois programas e se tornaria uma entidade espacial regional com uma oferta integral.
Para que essa integração eficaz se concretize, seriam necessárias ações concretas e um compromisso político e técnico sustentado:
1. Acordos Binacionais Estruturantes: Estabelecer tratados e memorandos de entendimento que definam áreas de cooperação, mecanismos de financiamento conjunto e marcos regulatórios harmonizados.
2. Financiamento Conjunto e Estável: Criar fundos binacionais para projetos estratégicos, garantindo a continuidade do financiamento além dos ciclos políticos individuais.
3. Harmonização Regulatória e de Licenças: Simplificar os processos de licenciamento para lançamentos e operações satelitais transfronteiriças, criando um "espaço comum" regulatório.
4. Padrões e Protocolos Comuns: Desenvolver e adotar padrões técnicos comuns para interfaces de lançadores/satélites, comunicações e processamento de dados, facilitando a interoperabilidade.
5. Intercâmbio de Pessoal e Capacitação Conjunta: Fomentar programas de intercâmbio de engenheiros, cientistas e técnicos entre agências, empresas e universidades.
6. Projetos de P&D Colaborativos: Identificar sinergias no desenvolvimento de tecnologias críticas.
7. Uso Compartilhado de Infraestruturas: Acesso mútuo a centros de testes de motores, instalações de integração satelital e estações terrestres.
8. Estratégia de Mercado Unificada: Apresentar uma oferta conjunta ao mercado internacional.
Conclusão
O fato de qualquer um dos dois países conseguir colocar um objeto em órbita com tecnologia própria seria um marco definidor na disputa regional, validando sua capacidade tecnológica integral e conferindo soberania. No entanto, a verdadeira sustentabilidade a longo prazo e uma posição global relevante seriam alcançadas por meio da integração eficaz. A Argentina, com sua profunda experiência em satélites de alta complexidade e o potencial de seu programa Tronador, juntamente com a agilidade da TLON Space, Epic Aerospace e LIA Aerospace, e o Brasil, com seu robusto programa estatal de lançadores, seu impulso às startups privadas e sua estratégia de aquisição e transferência de tecnologia internacional, têm os ingredientes para construir uma potência espacial latino-americana que não apenas satisfaça suas necessidades nacionais, mas também se projete como um ator-chave na fronteira final.
A colaboração é a chave para desbloquear este imenso potencial, criando um mercado regional vibrante onde universidades, empresas e organismos de todos os 11 países membros e associados do Mercosul, que somam mais de 400 milhões de habitantes, demandem e ofereçam serviços e produtos espaciais, impulsionando a inovação e o crescimento conjunto.
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