Corrida Sobre o Gelo
Olá leitor!
Os países
que mais investem em pesquisa antártica são os Estados Unidos, o Reino Unido, o
Japão e a Alemanha. “Formam o primeiro pelotão de pesquisa, alguns com estações
em diferentes pontos da Antártida e navios quebra-gelos capazes de atingi-las”,
diz Jef-ferson Simões. Num segundo pelotão vêm países como a China e a Índia,
que multiplicaram seus investimentos na região recentemente, além da França, da
Noruega e da Rússia. O Brasil, com o crescimento dos grupos de pesquisa nos
últimos anos, estaria num terceiro pelotão, com ambições de ascender ao
segundo. “Estamos melhores do que Argentina e Chile, nossos vizinhos da América
do Sul que têm presença mais antiga e ostensiva no continente”, diz o professor
Rocha-Campos.
Segue abaixo uma matéria publicada na “Revista Pesquisa
FAPESP” (edição 194) destacando que depois da tragédia na estação Comandante Ferraz,
pesquisadores brasileiros, inclusive do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (INPE), discutem como produzir ciência mais competitiva na Antártida.
Duda Falcão
POLÍTICA C&T
Corrida Sobre o Gelo
Depois da tragédia na estação, pesquisadores brasileiros
discutem como produzir uma ciência mais competitiva na
Antártida
FABRÍCIO MARQUES
Edição Impressa 194
Abril 2012
© ROSALINDA MONTONE
A reconstrução da Estação Comandante Ferraz, a base de
pesquisa brasileira na Antártida destruída pelo fogo na madrugada do dia 25 de
fevereiro, deverá ter início apenas daqui a dois anos, para ser concluída por
volta de 2016. Mas a tragédia, que matou dois militares e foi deflagrada por um
incêndio em geradores de energia, teve pelo menos um efeito imediato: reacendeu
o debate sobre as ambições da ciência brasileira no continente gelado e as
estratégias necessárias para que o trabalho dos pesquisadores do país ganhe
mais relevância. Há consenso entre os cientistas de que a estação deveria ser
reconstruída de modo a aumentar sua segurança mas também a garantir suporte
especial aos pesquisadores – até então, a complexa e cara logística para
abastecer a estação e transportar pessoas, a cargo da Marinha, por vezes
deixava os objetivos científicos em segundo plano.
Também há uma percepção em comum de que o modelo vigente
de financiamento à pesquisa sobre a Antártida, com editais do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que patrocinam projetos por
dois anos, merece ser aperfeiçoado, garantindo recursos de longo prazo
principalmente para programas que coletem e forneçam dados para a pesquisa
sobre as mudanças climáticas. A influência da Antártida no clima do Brasil
compara-se à da Amazônia, mas ainda é pouco conhecida. “As mudanças climáticas
são o grande tema de pesquisa na Antártida e permeiam disciplinas como a
glaciologia, a meteorologia ou a biologia”, diz Antonio Carlos Rocha-Campos,
professor aposentado do Instituto de Geociências da USP e coordenador do Centro
de Pesquisas Antárticas da universidade. Com uma superfície de 13,6 milhões de
quilômetros quadrados quase integralmente coberta por geleiras, o continente é
o mais alto, mais frio, mais seco e com ventos médios mais fortes do planeta.
Um novo modelo de gestão da pesquisa na Antártida também
é desejável, afirma o glaciólogo Jefferson Cardia Simões, professor da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o primeiro brasileiro a
atingir o polo Sul geográfico por terra numa expedição científica, em 2004.
“Não se trata apenas de ter uma nova estação, mas de reconstruí-la pensando em
várias frentes”, diz Simões, que enumera algumas delas: a cooperação com outros
países, capaz de compartilhar custos e elevar a qualidade da pesquisa, o apoio
a acampamentos e expedições em outras regiões do continente e a racionalização
do trabalho dos pesquisadores. “A comunidade científica tem de assumir as
decisões de gestão sobre a estação e a pesquisa na Antártida. Hoje há uma
competição entre a logística, a cargo da Marinha, e a ciência, a cargo dos
pesquisadores. E, no dia a dia, as prioridades se perdem por excesso de
demanda”, afirma o pesquisador. O contingente de brasileiros envolvidos na
pesquisa antártica tem aumentado. Com isso, a pressão para que todos passem
temporadas no continente, com todo o custo e a logística envolvidos nisso, é
cada vez mais intensa. “Mas não é possível que todos queiram ir a campo todos
os anos. Há um tempo de coletar dados e outro de analisá-los. E há pesquisas
que podem ser feitas sem precisar ir à Antártida, utilizando dados obtidos lá”,
diz o glaciólogo.
© ARMANDO HADANO/INPE
De fato, um gargalo histórico do Programa Antártico
Brasileiro (Proantar) diz respeito à oportunidade de visitar a estação.
Estima-se que pelo menos 250 pesquisadores brasileiros estejam envolvidos
atualmente em projetos de pesquisa sobre o continente gelado. A estação é capaz
de abrigar cerca de 20% desse contingente. E nem sempre é possível aproveitar
todo o potencial da base. Em 2009, a Marinha incorporou um navio polar a seu
trabalho na região, o Almirante Maximiano, mas em 2011 ele trabalhou
praticamente sozinho, pois o Ary Rongel, navio oceanográfico que dá apoio à
estação, estava avariado. Quem consegue espaço na estação também enfrenta
incertezas. “Já fiquei uma semana sem poder sair, por falta de condição
climática para fazer coletas”, diz Rosalinda Montone, professora do Instituto
Oceanográfico da USP, cujo grupo perdeu no incêndio boa parte do material que
havia coletado neste verão. “Vamos recuperar pouca coisa”, afirma ela, que
pesquisa poluentes orgânicos no ambiente marinho.
Um Lugar no Navio e na Estação
A chance de viajar nos dois navios da Marinha e de passar
uma temporada na estação costuma ser reservada a projetos contemplados em
editais periódicos do CNPq e, mais recentemente, dos dois Institutos Nacionais
de Ciência e Tecnologia (INCT) dedicados à pesquisa antártica. Um deles
trabalha com o papel da massa de gelo no sistema climático e estuda as
variações do clima na Antártida e suas relações com o Brasil. O outro está
voltado mais à questão do impacto da atividade humana no ambiente antártico. “A
seleção dos projetos é rigorosa e temos avançado no sentido de formar redes em
vez de estimular o trabalho isolado de pesquisadores”, diz Jefferson Simões.
Há uma queixa recorrente de que faltam linhas de
investimento para projetos de longo prazo. “O fato de um dos grupos do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) não ter sido selecionado no
último edital do CNPq fez com que interrompêssemos uma série histórica de dados
meteorológicos na estação, por falta de quem as coletasse”, diz o oceanógrafo
Ronald Buss de Souza, responsável do programa antártico do INPE. Ilana Wainer,
professora do Instituto Oceanográfico da USP, ressalta a importância de
financiar a coleta de dados capazes de fertilizar pesquisas de grupos que precisam
de informações sobre o continente – sem necessariamente ir até lá todo verão.
“Nunca estivemos tão bem de financiamento como agora. Mas, para garantir o
monitoramento das variáveis do clima, é preciso mais do que projetos com apenas
dois anos de duração. Seria importante ter financiamento contínuo”, afirma
Ilana, cujo trabalho sobre a modelagem do clima na Antártida depende, em grande
medida, de dados sobre o oceano Austral e a variação na extensão do mar
congelado. No seu caso, a dependência maior é da disponibilidade dos dois
navios da Marinha, importantes para a coleta de dados sobre o oceano. O
incêndio na estação e a utilização dos navios para resolver problemas
logísticos deverão comprometer um dos projetos em que Ilana está engajada, o
Paleoantar, que previa a obtenção de amostras de gelo para tentar entender os
chamados pulsos de degelo, possíveis gatilhos para variações climáticas.
© ILUSTRAÇÃO
SOBRE IMAGEM DA NASA DRüM
FOTOS 1.
CHRIS DANALS/NSF 2. GAELEN MARSDEN
3. NIPR 4.
ABR 5. INSTITUTO ANTÁRTICO 6. AGADEZ
Ela afirma, porém, que o Brasil não precisa investir
sozinho. Cita o exemplo do recém-criado Southern Ocean Observing System (SOOS),
rede multidisciplinar que busca fazer observações do oceano Antártico capazes
de abastecer linhas de pesquisa sobre as mudanças climáticas, o aumento do
nível do mar e o impacto do aquecimento global sobre os ecossistemas marinhos.
“Ele não é realizável por um só país”, diz. Ilana lembra que os estudos sobre
processos climáticos em escala local estão na fronteira do conhecimento e que
os modelos computacionais têm dificuldade de simular os processos de interação
entre o clima na Antártida e no hemisfério Sul. Num exemplo de pesquisa que
pode ajudar a abastecer esses modelos, o grupo de Ilana, em associação com
pesquisadores do Rio de Janeiro e da França, chegou à conclusão de que o
aumento do buraco na camada de ozônio sobre a Antártida, nos anos 1980, gerou
mudança no regime dos ventos no continente gelado com fôlego para alterar a
temperatura da superfície do mar na Bahia. “Constatamos uma relação de causa e
efeito entre a diminuição dos corais e o aumento do buraco de ozônio. O buraco
aumentou a diferença de temperatura entre a Antártida e os trópicos, intensificou
o vento, e houve decréscimo de corais na Bahia. Apesar de o buraco ter
diminuído, não é certo que a situação dos corais tenha melhorado. Os efeitos do
aquecimento global podem ter compensado, apesar de os ventos terem voltado ao
normal.”
Nos últimos dois anos Rocha-Campos, da USP, também apelou
à cooperação internacional para levar adiante suas pesquisas. Ele conta com a
retaguarda de uma base argentina – aproveitando que sua pesquisa é feita em
parceria com o Instituto Antártico Argentino. “Já coletamos as amostras de
rocha na ilha Rei George, não muito distante da estação brasileira em outras
ocasiões. Para a pesquisa avançar, é preciso visitar outros lugares”, diz o
professor. Um grupo de pesquisadores sob sua liderança identificou recentemente
uma estrutura glacial fundamental para esclarecer a história paleoclimática da
Antártida durante o período Mioceno (há cerca de 15 milhões de anos). A
estrutura – denominada pavimento de clastos glacial – comprova ter havido um
período de expansão do manto de gelo da Antártida Ocidental. Rocha-Campos
articula-se com outros pesquisadores brasileiros para obter financiamento a fim
de que o Brasil participe do programa Antarctic Drilling (Andrill), consórcio
internacional que vem realizando sondagens geológicas na margem continental
antártica. “Se conseguirmos recursos para participar, estaremos no mainstream
da pesquisa geológica na Antártida”, afirma.
Situada na ilha do Rei George, na parte mais quente do
continente antártico, a Estação Comandante Ferraz garantia fácil acesso para os
dois navios brasileiros – não por acaso, vários outros países instalaram bases
naquela região. Fica numa baía ampla, com praias largas, o que favorece a
logística e reduz custos, mas era capaz de dar apoio a um conjunto restrito de
pesquisas, por exemplo, no campo da biologia marinha, o mais comprometido pelo
incêndio. Composta por mais de 60 módulos interligados, foi crescendo ao longo
do tempo até assumir as feições de uma vila à beira-mar. No inverno, um número
menor de pesquisadores permanecia na base. Nessa fase, o acesso não era mais
feito pelos navios – que só vão ao continente entre outubro e abril –, mas por
aviões da FAB. “O local é ideal também porque tem dois lagos que são fonte de
água”, diz Rosalinda Montone, da USP, que esteve na Antártida 17 vezes.
© FABIO MELO FONTES
A tragédia interrompeu 40% das pesquisas brasileiras na
Antártida – sinal de que a presença científica do país no continente já não
dependia exclusivamente da estrutura gerenciada pela Marinha. De um lado,
módulos de coleta de dados situados a uma distância entre 300 metros e 1
quilômetro da base incendiada foram poupados. De outro, vinha avançando o
número de pesquisas que não eram realizadas na estação. A viagem de Jefferson
Cardia Simões ao polo Sul geográfico, no final de 2004, onde colheu testemunhos
(cilindros) de gelo, dependeu de um esquema logístico que envolveu viagens em
aviões chilenos e o aluguel de trator polar em parceria com outros
pesquisadores – ao largo do esquema da Marinha. Em janeiro, uma equipe liderada
por Heitor Evangelista, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e
Jefferson Simões instalou o Criosfera I, primeiro módulo científico brasileiro
no interior do continente antártico para obtenção de dados climáticos,
localizado 2,5 mil quilômetros ao sul da estação.
Expedição em 1982
A história do financiamento à pesquisa brasileira na
Antártida teve várias fases. O Brasil aderiu em 1975 ao Tratado da Antártida,
que destina o continente a atividades pacíficas, em especial a pesquisa
científica, e realizou sua primeira expedição até lá em 1982. Com o advento do
Proantar e a inauguração em 1984 da Estação Comandante Ferraz, era a própria
Marinha, por meio da Comissão Interministerial de Recursos do Mar (CIRM), quem
convidava pesquisadores a trabalhar na região. “O programa de pesquisa era
feito sob a demanda do CIRM, que convidava instituições e também buscava
induzir pesquisas em determinadas áreas”, lembra Ronald Buss de Souza. É dessa
época que instituições como o INPE, os institutos Oceanográfico e de
Geociências da USP incorporaram-se ao esforço de pesquisa – o navio
oceanográfico Comandante W. Besnard, da USP, fez seis viagens à Antártida nos
anos 1980, servindo de apoio aos pesquisadores juntamente com o Barão de Tefé,
da Marinha. O segundo momento do Proantar veio em 1991, quando a Marinha
resolveu desincumbir-se de fomentar pesquisas e ateve-se apenas à logística das
viagens e da base. O CNPq passou a cuidar das pesquisas. “Já existia massa
crítica para disputar editais e o CNPq passou a avaliar os projetos por
critérios de produtividade científica”, afirma Souza. Não foi um período fácil.
“A noiva era bonita mas veio sem dote”, diz o professor Rocha-Campos. Os
recursos do CNPq eram limitados e causou alívio, num terceiro momento, o
ingresso do Ministério do Meio Ambiente no Proantar – por determinação de um
protocolo assinado pelo Brasil, as pesquisas passaram a ser monitoradas para
reduzir seu impacto ambiental.
No quarto momento, esse mais recente, o CNPq passou a
lançar editais para selecionar projetos e dois dos Institutos Nacionais de
Ciência e Tecnologia, redes virtuais de excelência mantidas pelo CNPq e pelas
fundações estaduais de amparo à pesquisa, foram criados para se dedicar a
pesquisas na Antártida. Ao longo do tempo, novos grupos de pesquisa foram
organizados, com destaque principalmente para o Rio Grande do Sul. “Ao
contrário do que ocorria nos anos 1980, quando os cientistas faziam concessões
em suas linhas de investigação para incluir a Antártida, hoje já há uma geração
de cientistas dedicada à pesquisa no continente, e essa massa crítica pressiona
por mais recursos e oportunidade de realizar seus estudos”, diz Jefferson
Simões.
© MARIA ROSA PEDREIRO / UFPR
Para Ronald
Buss de Souza, do INPE, já passou o tempo de o Brasil criar um instituto de
pesquisas antárticas, como os que existem em vários países com bases na região.
Ele também considera que a liderança da Marinha é um calcanhar de aquiles do
Proantar. “Os países desenvolvidos criaram institutos de pesquisa antártica de
caráter civil, que administram estações e navios de pesquisa. No Brasil, e
também em países que têm interesses territoriais na Antártida como Chile e
Argentina, são os militares que administram as bases”, afirma. “O chefe da
estação brasileira sempre foi um oficial da Marinha. O pesquisador trabalhando
na Antártida tem de pedir autorização ao oficial para trabalhar fora da estação
– se ele não permitir, nada acontece. O oficial só vai recusar se tiver um
motivo. Mas ele pode criar embaraços para não ter de acompanhar o pesquisador
numa missão espinhosa”, explica. Ele reclama que o Brasil não compreendeu a
importância da Antártida. “Nossa pesquisa sobre clima focalizou a influência da
Amazônia, mas 60% do nosso território está mais sujeito à influência da
Antártida”, diz.
No curto
prazo, o desafio é garantir a manutenção das pesquisas enquanto uma nova
estação não é construída. Manter um dos navios brasileiros docado próximo à
estação durante o verão é uma das alternativas para dar suporte aos
pesquisadores. “O aluguel de um terceiro navio também está sendo cogitado”, diz
Rosalinda Montone. Procurar colaborações que permitam o uso de estações de
outros países é outra opção. Uma concorrência internacional definirá o formato
da nova estação. Ela deve partir do desenho da Estação Juan Carlos, da Espanha,
que não tem módulos contíguos, impedindo a propagação de fogo. O projeto, disse
o comandante da Marinha Júlio Soares de Moura Neto, levará em conta as
sugestões dos pesquisadores. “A razão de estarmos na Antártida é a pesquisa. A
participação dos pesquisadores é extremamente bem-vinda”, disse Moura Neto,
segundo a Agência Brasil.
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP - Edição 194 - Abril 2012
Comentário: Aproveitamos para agradecer publicamente ao
leitor José Ildefonso pelo envio dessa matéria.
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