A “Corrida do Ouro” do Século 21 é no Espaço
Olá leitor!
Segue abaixo mais um interessante
artigo escrito pelo Sr. José
Monserrat Filho e postado pelo
companheiro André Mileski dia (10/01) em seu no Blog Panorama Espacial.
Duda Falcão
A “Corrida do Ouro” do Século
21 é no Espaço
José
Monserrat Filho *
“Privatiza-se o público, mas não se publiciza o privado.”
Giberto Dupas1
O presidente dos Estados Unidos (EUA) promulgou, em 25 de
novembro de 2015, a lei HR 2262 sobre o direito privado de minerar asteroides,
a Lua e outros corpos celestes.
A Folha de S. Paulo divulgou o fato em 6 de janeiro de
2016 – 40 dias depois. É difícil entender como um evento de tamanha relevância
internacional tenha levado tanto tempo para merecer uma informação, ainda que
incompleta. E ainda por cima sem dar detalhes da lei.
A Seção 402 do Título IV da nova lei tenciona facilitar
“a exploração comercial e a recuperação comercial dos recursos espaciais por
cidadãos dos Estados Unidos", e promover "o direito dos cidadãos dos
Estados Unidos de se envolver em explorações comerciais tendo em vista a
recuperação comercial de recursos do espaço livres de interferências
prejudiciais, em conformidade com as obrigações internacionais dos Estados
Unidos e sujeitas a autorização e supervisão contínua por parte do Governo
Federal ".
Segundo o parágrafo 51303 da lei, os cidadãos dos EUA
engajados na recuperação comercial de um recurso de asteroide ou de um recurso
do espaço, sob este capítulo "terá direito a qualquer recurso de asteroide
ou do espaço [assim] obtido, inclusive de possuir, apropriar-se, transportar,
usar e vender os recursos de asteroides ou os recursos do espaço obtidos em
conformidade com a legislação aplicável, incluindo as obrigações internacionais
dos Estados Unidos ".
A nova lei americana peca antes de mais nada por legislar
nacionalmente sobre um fato que pertence à jurisdição internacional. Desde o
início da Era Espacial – inaugurada pelo Sputnik-1 em outubro de 1957 –, o
espaço exterior é considerado bem comum da humanidade.
Por isso, só pode ser regulamentado pela comunidade de
países, em especial através das Nações Unidas, onde foram discutidos,
elaborados e aprovados os principais tratados (depois ratificados pelos
Estados) e resoluções sobre as atividades espaciais, liderados pelo Tratado do
Espaço, de 1867, o código maior do espaço.
Criar uma lei nacional para ordenar a atividade de
mineração nos corpos celestes é um ato ilícito à luz da letra e do espírito do
Direito Espacial Internacional. Basta ler os dois primeiros artigos do Tratado
do Espaço. O Artigo I, § 1, determina que “a exploração e o uso do espaço
cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e
interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento
econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade”. E o Artigo II
reza que “o espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não
poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso
ou ocupação, nem por qualquer outro meio”.
A nova lei dos EUA, é verdade, não permite formalmente o
estabelecimento de apropriação nacional sobre os corpos celestes. Ocorre que o
direito de propriedade privada sobre os recursos espaciais está baseado num
artifício no mínimo duvidoso: os astronautas americanos e sondas da União
Soviética e do Japão recolheram amostras de rochas lunares e trouxeram-nas para
a Terra apenas para fins de pesquisa científica; isso bastou para que alguns
advogados americanos mais sagazes concluíssem, recentemente, pela existência
prévia do direito de propriedade privada sobre recursos da Lua e de outros
corpos celestes, inclusive, e em e especial, dos asteroides.
A debilidade da alegação fica evidente ante a igualdade
que se busca estabelecer entre a coleta eventual de uma porção de amostras para
fins científicos e a extração industrial sistemática de riquezas minerais para
fins comerciais, com imprevisível impacto no mercado mundial do setor. É claro também que para desenvolver uma
indústria extrativa num corpo celestes é preciso, queira-se ou não, instalar um
complexo produtivo na área a ser minerada e fazê-lo funcionar durante o tempo
necessário para esgotar as jazidas encontradas. Esse complexo será, com
certeza, um estorvo ao cumprimento do § 2 do Artigo I do Tratado do Espaço,
segundo o qual “o espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes,
poderá ser explorado e utilizado livremente por todos os Estados sem qualquer
discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o direito
internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos
celestes”.
O “acesso a todas as regiões dos corpos celestes” exige,
necessariamente, que não se levante nenhum obstáculo para isso, muito menos uma
instalação extrativa operada por um país ou empresa. A questão se complica mais
ainda se o asteroide for carregado para dentro da nave espacial de um país ou
empresa, a fim de ser melhor e mais completamente minerado. Seria o sequestro
de um bem público.
A nova lei menciona “a recuperação comercial de recursos
de asteroides e do espaço” (commercial recovery of an asteroid resource or a
space resource). Por que usar o termo “recuperação comercial”, se a explotação
comercial dos referidos recursos estará sendo realizada pela primeira vez? Como
recuperar o que nunca antes foi achado ou perdido? Não haverá nenhuma forma de
recuperação no caso. Haverá, sim, coleta, mineração ou extração de minerais.
Por que substituir as palavras realmente adequadas para a questão?
Diz a notícia da Folha de S. Paulo que o presidente Obama
“assinou a chamada 'Lei do Espaço' para promover a exploração privada do
espaço, algo que já começou a ser realizado por empresas como a Space X e a
Orbital ATK, com missões na Estação Espacial Internacional e planos além da
órbita terrestre”. É um grande equívoco.
A contratação de empresas privadas para efetuar tais
missões na estação internacional e também lançar satélites é ação legal,
regulada por leis nacionais dos EUA, e nada tem a ver com o estabelecimento
unilateral do direito de propriedade privada para empresas americanas sobre
recursos de asteroides e do espaço, que só podem ser usados para bem e no
interesse de todos os países, como “province of all mankind” (incumbência de
toda a humanidade), ou seja, bens públicos, conforme o Tratado do Espaço. Os
EUA tem todo o direito de estimular os planos e demandas de suas empresas
privadas. O que não pode é fazer isso fora de sua jurisdição nacional.
A verdade é que ainda não existe um regime internacional
discutido e aprovado no âmbito das Nações Unidas (Comitê para o Uso Pacífico do
Espaço Exterior – COPUOS, em inglês), como tem ocorrido desde os primórdios das
atividades espaciais. Tal regime poderá perfeitamente incluir a ativa
participação de empresas privadas de qualquer país, como propõe o Acordo da Lua
em seu famoso Artigo 11, ou como foi adotado pela Convenção das Nações Unidas
sobre o Direito do Mar, de 1982, e o acordo de 1995, que, como destaca Vicente
Marotta Rangel, resultou da “conciliação de interesses discrepantes entre
Estados industrializados, aptos a se beneficiar unilateralmente” dos recursos
dos fundos (solo e subsolo) dos oceanos, tendo em vista conhecimentos
tecnológicos adquiridos e a utilização de capital disponível, e os Estados em
desenvolvimento, que pleiteavam “participação e controle dos recursos e dos
benefícios deles resultantes”, além dos “Estados que seriam prejudicados pela
exploração [explotação] de recursos minerais de que efetiva ou potencialmente
dispõem”.3
Isso mostra que a conciliação de interesses é possível,
necessária e urgente, como exigência política e legal para enfrentar com êxito
os agudos conflitos que hoje assolam o planeta.
Sobre a “corrida do ouro”, sobretudo na Califórnia no
século 19, o historiador americano H. W.
Brands (1953-) observa que ela difundiu-se pelo resto do país, e incorporou-se
ao novo “sonho americano”. E explica: “O velho 'sonho americano'....era o sonho
dos puritanos, do almanaque de Benjamin Franklin... de homens e mulheres
satisfeitos com acumular una modesta riqueza pouco a pouco, ano após ano após
ano. O novo 'sonho' é um sonho de riqueza instantânea, ganha num abrir e fechar
de olhos, graças à audácia e à boa sorte. [Este] sonho dourado... converteu-se
numa parte proeminente da psique americana...”4
Só que não é um sonho. É um pesadelo. Piora a situação
global. Aumenta a concentração de renda, a desigualdade entre países e pessoas,
e a tensão no mundo. Os EUA precisam acordar deste tsuname de egoismo.
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito
Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de
Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA)
e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação
(MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.
Referências
1) Dupas, Gilberto (1943-2009), Tensões contemporâneas
entre o público e o privado, São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 19.
3) Reflexões sobre a Convenção do Direito do Mar, André
Panno Beirão, Antônio Celso Alves Pereira (organizadores). – Brasília : FUNAG,
2014. O artigo de Vicente Marotta Rangel intitula-se “Fundos oceânicos”. De
1994 a 2015, Rangel foi Juiz do Tribunal Internacional do Direito do Mar,
sediado em Hamburgo, Alemanha, entre 1994 e 2015.
4)
Brands, H. W., The Age of Gold: The California Gold Rush and the New American
Dream, Anchor, 2003.
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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