O Papel das Megaempresas nas Atividades Espaciais
Olá leitor!
Segue abaixo mais um interessante
artigo escrito pelo Sr. José
Monserrat Filho e postado pelo
companheiro André Mileski ontem (10/03) em seu no Blog Panorama Espacial.
Duda Falcão
O Papel das Megaempresas nas
Atividades Espaciais
José
Monserrat Filho *
“Na
guerra ou na paz, o setor privado se transformou em setor público.” John Kenneth Galbraith (1908-2006), renomado economista
americano1
As empresas privadas não são
novas nas atividades espaciais em geral.
Elas atuam nessa área desde os anos 60, como pioneiras, por exemplo, dos
satélites de comunicação. A presença delas está regulamentada pelo Art. 6º do
Tratado do Espaço de 19672. Considerado a lei maior do setor, esse tratado está
em pleno vigor. Ratificado por 103 países e assinado por 20 outros, é
reconhecido pelos demais países como costume, por nunca ter sido alvo de qualquer
tipo de protesto ou recusa.
O Art. 6º determina que os Estados
arquem com a responsabilidade internacional pelas atividades espaciais
nacionais realizadas tanto por organizações estatais quanto por empresas
privadas e velem para que tais atividades cumpram os princípios e normas do
Tratado do Espaço. Ainda pelo Art. 6º, as atividades espaciais das empresas
privadas devem ser autorizadas e constantemente supervisionadas pelo respectivo
Estado.
As empresas, pois, podem
atuar no espaço, mas dependem da permissão e controle do país onde tenham sua
sede central. Eventuais danos e prejuízos
por elas causados a terceiros serão ressarcidos pelo Estado. Esse, depois,
poderá cobrar das empresas a indenização paga.
Os sujeitos do Direito Espacial
– ramo do Direito Internacional Público encarregado de criar o regime jurídico
do espaço exterior e regular as atividades ali exercidas – não são as empresas
privadas, são os Estados e as organizações espaciais internacionais ou
regionais, como a Agência Espacial Europeia (ESA)3. O Tratado do Espaço é
acordo de Estados, como o próprio nome diz. Muitas empresas privadas costumam
participar apenas como consultoras, por exemplo, nas reuniões da União
Internacional de Telecomunicações (UIT)4 – instituição de Estados.
O Estado – que representa ou
deveria representar o poder público – situa-se, portanto, acima das empresas
privadas, por mais poderosas que sejam. Isso é fundamental no Direito Espacial.
Assim se relacionam Estados e empresas privadas, pelo menos formalmente. Essa
questão deveria ser mais amplamente discutida, tanto do ponto de vista legal e
político, quanto econômico.
Aí surge quem condene “a
promiscuidade obscena entre políticos e empresários”, como o senador Bernie Sanders (1941-), candidato à
Presidência dos Estados Unidos (EUA), com 86% das intenções de voto entre os eleitores
democratas de 17-24 anos, embora não seja o favorito no pleito. Ele afirma:
“Não representamos os interesses de Wall Street e das grandes corporações, nem
queremos o dinheiro deles.” E formula propostas concretas: regulamentação do
sistema bancário, quebrando os mamutes financeiros em proveito de pequenas
instituições que se dediquem ao sistema produtivo e não a especular com papeis
sem lastro na economia real.
Essas informações vêm de Daniel
Aarão Reis (1946-), professor de História Contemporânea da Universidade Federal
Fluminense (UFF), em seu artigo “A primavera americana”, publicado n'O Globo,
em 23 de fevereiro passado. A seu ver, “o 'fenômeno' Sanders evidencia o
desgaste da hegemonia do capital financeiro e a descrença no establishment político”.
“Nos EUA, as manifestações
dos jovens de todas as classes, pobres e remediados, todos eleitores de Bernie Sanders, revelam que o
mal-estar se dissemina pelo mundo desenvolvido”, observa, por sua vez, o
economista Luiz Gonzaga Belluzzo (1942-)5. E salienta: “Nascidos do ventre das
novas formas de negócios comandadas pelo enlace entre megaempresas e grandes
bancos ‘globalizados’, os deserdados acompanham as lideranças que pretendem
falar em nome do interesse público.” Belluzzo ironiza: “Não espanta que a
retórica de Sanders nos EUA e de Jeremy Corbyn na Inglaterra dispare contra os
símbolos do podre poder global, a Wall Street e a City londrina. A galera da
finança retruca com a soberba e o descaso habituais. Para a turma da bufunfa, o
que os deserdados da fortuna pensam, sentem ou reivindicam são deformações
nascidas do egoísmo dos ignorantes, em contraposição ao egoísmo racional e
esclarecido dos senhores da finança.”
Por falar em ironia, vale o
que escreveu Veríssimo em sua crônica6 de domingo, 6 de março: depois de lembrar a famosa frase de Einstein
– “Deus não joga dados com o universo” –, o cronista compara: “Deus não é um
jogador, o universo não está aí para ele jogar contra a sorte e contra ele
mesmo. Já os semideuses que controlam o capital especulativo do planeta Terra
jogam com economias inteiras e podem destruir países com um lance de seus
dados, ou um impulso de seus computadores, em segundos.”
Veríssimo vai ainda mais longe:
“A metafísica dos semideuses é inédita. Não tem passado nem convenções. É a
destilação final de uma abstração, a do capital desassociado de qualquer coisa
palpável, até do próprio dinheiro. Como o dinheiro já é a representação da
representação da representação de um valor aleatório, o capital transformado em
impulso eletrônico é uma abstração nos limites do nada – e é ela que rege as
nossas economias e, portanto, as nossas vidas.”
Com dose menor de ironia,
John Kenneth Galbraith, amigo e
conselheiro do presidente John F. Kennedy (de 1961 a 1963), notou – em seu
livro “A Economia das fraudes inocentes: verdades para o nosso tempo”, lançado
nos EUA em 20047 –, que, na visão estabelecida, “o sempre ameaçador ataque do
governo à iniciativa privada” costuma ser “condenado como socialismo por
retórica radical”, enquanto “os avanços das empresas privadas sobre o setor
público por concessões de influências ou atividades são bem menos debatidos ou
nunca o são”.
Para Galbraith, “a
administração das empresas deve ter autoridade para agir, mas não para praticar
furtos aparentemente inocentes. Considerando o poder das empresas, essa é a
nossa necessidade mais desafiadora e urgente. Uma sociedade marcada por
infortúnios e crimes econômicos corporativos não sobreviverá de forma útil e
prestimosa”.
É a sociedade das
corporações que comanda as principais atividades espaciais hoje, para a paz e/ou para a guerra, sem definir claramente
onde acaba uma e começa a outra, como mostra a nova “Guerra Fria”, a que
estamos todos condenados. Ou seja, são os semideuses da divina abstração que
dominam, em grande escala, a Terra e o céu, sem permitir a regulação das
questões básicas de segurança espacial.
Acaso não foi o lobby
implacável dessas poderosas divindades que
levou o Congresso e a Presidência dos EUA a aprovarem a lei de 25 de novembro
de 2015, concedendo às empresas privadas americanas o direito de propriedade
sobre minerais preciosos por elas extraídos dos asteroides, da Lua e demais
corpos celestes? Essa lei nacional ousa regular uma questão obviamente
internacional e viola de modo flagrante o princípio fundamental do Tratado do
Espaço, que considera o espaço como um bem comum de toda a humanidade (the
province of all mankind).
Como reagirão as nações do
mundo aos semideuses, neste caso? Sairão
mais uma vez vitoriosos os filhos de Zeus, com o privilégio de concentrar em
seus polpudos bancos os trilhões de dólares que o negócio promete? Ou terão de
se curvar ao bom senso, ao Direito Internacional e aos legítimos interesses e
necessidades das grandes maiorias do nosso planeta?
* Vice-Presidente da
Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA); Diretor
Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial; Membro Pleno da
Academia Internacional de Astronáutica (IAA); e ex-Chefe da Assessoria
Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da
Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.
Referências
1) Do livro “A economia das
fraudes inocentes – Verdade para o nosso tempo”, São Paulo: Companhia das
Letras, 2008, p. 56.
2) Ver seção de textos em www.sbda.org.br.
5) Artigo intitulado “Os
jovens de Bernie Sanders”, CartaCapital, 24/02/2016, p. 53.
6) Crônica de Luiz Fernando
Veríssimo
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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