Privatização do Espaço?
Olá leitor!
Segue abaixo um interessante artigo escrito pelo Sr. José
Monserrat Filho e postado dia (01/03) no
site “Sul21”, tendo como tema a Privatização do Espaço.
Duda Falcão
OPINIÃO PÚBLICA
Privatização do Espaço?
“O desafio é afirmar um direito novo, rejeitando as
pretensões de um direito antigo.
” Pierre Dardot e Christian Laval, Comum –
Ensaio sobre a revolução no século XXI,
São Paulo: Boitempo Editorial, 2017, p. 243. (1)
Por José Monserrat Filho (*)
01/03/2018
Foto: (Divulgação/SpaceX)
No espaço cósmico, a lei atual não permite
a propriedade
privada.
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No planeta Terra, o instituto da propriedade privada
beneficia seu proprietário, inclusive e principalmente nas áreas econômicas e
financeiras. Elemento essencial do sistema capitalista, inclui o direito de
usar, gozar e dispor de determinada coisa, de modo absoluto e exclusivo,
sobretudo de empresas altamente rentáveis. Tal visão é dominante nos EUA,
países da Europa e em vários lugares do mundo. Outros países, porém, limitam o
direito de propriedade privada aos bens e objetos de uso pessoal e familiar.
Neles, esse direito não pode servir para abarcar e acumular terras, fábricas e
outros meios de produção industrial, comercial e bancária – considerados bens
de utilidade pública. Ou seja, não deve ser exercido de forma ilimitada, por
afetar o direito alheio. Cabe ao Poder Público limitar o direito de cada
indivíduo e empresa privada. A propriedade privada pode prejudicar a sociedade
se não for devidamente controlada e regulada, sustentava o célebre economista
britânico John Maynard Keynes (1883-1946).
No Brasil e numa série de países, desenvolvidos ou não, o
direito à propriedade privada é amplo, inclusivo e em especial, para pessoas e
empresas privadas. Os países de largo acesso à propriedade privada, em geral se
consideram “democráticos”. Os países que restringem a propriedade privada
costumam ser acusados de “antidemocráticos”, “autoritários” e até
“ditatoriais”. Mas isso é consideração política, não jurídica. A Carta das
Nações Unidas, base do Direito Internacional Contemporâneo, adotada em 26 de
junho de 1945 e em plena vigência – embora pouco respeitada –, estabelece o
princípio da igualdade de direitos entre as nações e da autodeterminação dos povos,
considerados como medidas apropriadas para fortalecer a paz universal. Logo,
adotar ou não a propriedade privada é um direito de autodeterminação de cada
nação. Não há uma lei internacional legitimando este ou aquele regime de
propriedade. Cada povo escolhe o que lhe parece mais conveniente.
No espaço cósmico, a lei atual não permite a propriedade
privada. O Tratado do Espaço Cósmico, de 1967, em seu Artigo 2º, é bem claro
neste sentido: “O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não
poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso
ou ocupação, nem por qualquer outro meio.” Além disso, seu Artigo 1º determina:
“A exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos
celestes, devem ter em mira o bem e interesse de todos os países, qualquer que
seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência
de toda a humanidade.”
No texto em inglês, a expressão “incumbência de toda a
humanidade” é traduzida como “Province of all mankind”, ou seja,
lugar de toda a humanidade. Isso significa que o espaço cósmico é patrimônio
comum da espécie humana e não pode pertencer a ninguém em particular.
Impedimentos à propriedade privada no espaço e nos
corpos celestes. O Artigo 1º reza também: “O espaço cósmico, inclusive
a Lua e demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado livremente por
todos os Estados sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em
conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a
todas as regiões dos corpos celestes”. Ele estabelece ainda que “o espaço
cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, estará aberto às pesquisas
científicas, devendo os Estados facilitar e encorajar a cooperação
internacional naquelas pesquisas”. As normas que consagram a “liberdade de
acesso a todas as regiões dos corpos celestes”, e a abertura do espaço e os
corpos celestes às pesquisas científicas, com os Estados facilitando e
estimulando a cooperação internacional nessas pesquisas, sinalizam claramente o
veto imposto pelo Tratado do Espaço a qualquer tentativa de instalar
propriedade privada ou mesmo uma indústria privada para se apossar apenas das
riquezas minerais. Está assim afastada – pelo menos enquanto o Tratado do
Espaço viger – a possibilidade legal da propriedade privada sobre corpos
celestes (Lua e asteroides, sobretudo), não aceita pela maioria dos países.
Isso certamente traz de volta a teoria das “zonas de
não-interferência”. Aqui dá-se por certa e legítima a exploração
industrial e comercial da Lua e asteroides. Mas as leis a respeito, sancionadas
nos EUA, em 25/11/2016, e no Grão-Ducado de Luxemburgo, na Europa, em
13/07/2017, são nacionais. E as leis nacionais têm vigência apenas nos limites
da jurisdição nacional, não sendo competentes para regulamentar o espaço e os
corpos celestes, questões globais, que envolvem todos os países e toda a
humanidade – como manda o Tratado do Espaço – e não podem ser resolvidos por um
país ou um grupo de países, por mais ricos e poderosos que sejam.
Em seu artigo “Revisitando ‘zonas de não interferência’
no espaço” (29/01/2018), Cody Knipfer (codyknipfer@gmail.com),
mestrando do Instituto de Política Espacial da Universidade George Washington,
nos EUA, escreve que, “das várias empresas com planos de pousar na Lua em 2019
ou 2020, algumas pretendem no final das contas criar operações de mineração.
Outras aumentam o investimento para minerar asteroides. Alguns países,
incluindo os EUA, instituíram regimes legais favoráveis à extração e
apropriação de recursos físicos derivados do espaço.” (2)
Cody Knipfer se pergunta: como a mineração da Lua ou de
um asteroide pode ser protegida contra um concorrente? Digamos que o competidor
está decidido a explorar o mesmo local, garantindo acesso irrestrito ao lugar
onde o empresário inicial instalou suas máquinas para extrair recursos
minerais. Todos os obstáculos a isso precisam ser superados para que a
mineração espacial industrial e comercial comecem para valer. Por isso, é
indispensável criar um regime legal e regulatório para habilitar as empresas
interessadas. Mesmo que as próprias atividades de empresas privadas no espaço ou
em corpos celestes por conta própria ainda sejam um tema jurídico
não-resolvido, pois o Tratado do Espaço que não as permite segue em vigor. Pelo
Tratado, um país não tem amparo legal para declarar como seu um lote na Lua ou
num asteroide, e manter os outros países longe da sua alegada propriedade. Uma
empresa privada agindo por iniciativa própria não tem direito legal a um local
no espaço ou num corpo celeste, mesmo que já tenha estacionado equipamentos
permanentes por lá.
Sem um alicerce legal para impedir a interferência em suas
operações espaciais, a solução empresarial seria evoluir através da prática e
das regras de conduta. A mudança, pois, não exigiria a revisão do Tratado por
seus signatários. Bastariam as regras de conduta construídas ou impostas na
prática política, segundo os interesses das empresas privadas.
Para Cody Knipfer, a solução pode estar na ideia da “zona
de não interferência”. A seu ver, essa zona, por exemplo, situa-se
ao redor de uma nave espacial ou de uma instalação de superfície onde outras
empresas privadas ou indivíduos não podem entrar e realizar suas próprias
atividades. É uma teoria lançada nos EUA, como parte do licenciamento
necessário para o funcionamento de uma nave espacial de uma entidade não
governamental – em geral, empresa privada. Segundo Cody Knipfer, nada disso
viola o Tratado do Espaço. Agora, com as atividades de empresas privadas na Lua
e em asteroides, e com os governos dos EUA e de Luxemburgo próximos de reformar
o regime jurídico para habilitá-las, a ideia da “zona de não interferência”
será certamente muito bem-vinda. Não importa que, no quadro jurídico global, a
participação das empresas privadas seja, como vimos, ilegal, fora da lei.
O que vale não é o tratado ratificado pela maior parte dos países, é a decisão
de quem tem mais poder, embora seja minoritário. (3)
(*) José Monserrat Filho, Vice-Presidente
da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), ex-Chefe da
Assessoria de Cooperação Internacional do Ministério da Ciência e Tecnologia
(2007-2011) e da Agência Espacial Brasileira (AEB) (2011-2015), Diretor
Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, e Membro Pleno da
Academia Internacional de Astronáutica. Ex-diretor da revista Ciência Hoje e
editor do Jornal da Ciência, da SBPC, autor de Política e Direito na Era
Espacial – Podemos ser mais justos no Espaço do que na Terra?, Ed.
Vieira&Lent, 2017. E-mail: <jose.monserrat.filho@gmail.com>.
Referências
1) Pierre Dardot é filósofo e pesquisador da
Universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense. Christian Laval é professor de
sociologia da mesma Universidade. Além do “Comum”, Dardot e Laval
publicaram juntos “A nova razão do mundo” (Boitempo, 2016)
e “Marx, prènom: Karl” (Gallimar, Paris, 2012).
2) “Revisitando ‘zonas de não interferência’
no espaço”, artigo de Cody Knipfer, pós-graduando do Instituto de Política
Espacial da Universidade George Washington, nos EUA.
3) Falk, Richard A., The
Declining World Order – America’s Imperial Geopolitics, New York and London,
Routledge, 2004. pp. VIII-IX.
Literatura
Engels, Friedrich (1820-1895), A
Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Rio de Janeiro:
Edições BestBolso, 2016. Engels nasceu na Prússia. Foi parceiro de Karl Marx na
autoria de várias obras, entre as quais o Manifesto Comunista, de
1848. Ajudou a publicar os dois últimos volumes de O Capital. Após
a morte de Marx.
Weber, Max (1864-1920), A Ética
Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, Edição de Antônio Flávio
Pierucci, sociólogo e filósofo brasileiro (1945-2012), São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
Piketty, Thomas, O Capital no Século XXI,
Rio de Janeiro: Ed. Intrínseca, 2014. Por esse livro, o autor recebeu o Yrjö
Jahnsson, conferido em 2013 pela Associação Europeia de Economia.
Fonte: Site Sul21 - https://www.sul21.com.br
Comentário: Gostaríamos de agradecer publicamente a nossa leitora Mariana Amorim Fraga pelo envio deste artigo.
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