Zygmunt Bauman e a Desigualdade Como Moto-Perpétuo
Olá leitor!
Segue abaixo mais um interessante
artigo de Direito Espacial escrito pelo Sr.
José Monserrat Filho e postado
pelo companheiro André Mileski dia (15/01) em seu no Blog Panorama Espacial.
Duda Falcão
Zygmunt Bauman e a Desigualdade
Como Moto-Perpétuo
“Pois àquele que tem, lhe será dado e lhe será dado em
abundância, mas ao que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado.” Mateus 13.12
José Monserrat Filho *
15/01/2017
Falecido em 9 de janeiro, aos 91 anos, o pensador
polonês Zygmunt Bauman, professor emérito das Universidades de Varsóvia e
de Leeds (Reino Unido), abordou questões do cotidiano contemporâneo das pessoas
do mundo inteiro, com visão abrangente, profunda, humanista e, ao mesmo tempo,
acessível e comunicativa. Famoso por ter cunhado o conceito de “liquidez” que
aplicou aos problemas e costumes da sociedade humana no nosso tempo, deixou
análises vigorosas sobre as desigualdades sociais que têm se espalhado pelo
planeta em ritmo avassalador.
Seu livro A riqueza de poucos beneficia todos nós? –
publicado em inglês em 2013 e em português em 2015 (pela Zahar) – tem, como
primeira de suas quatro epígrafes, a citação do Evangelho de São Mateus que
considerei apropriado e justo colocar no início deste texto. A frase atesta que
o flagelo da desigualdade “não chega a ser novidade” e reflete o espírito do
volume, conciso mas contundente, no qual Bauman enfrenta, muitos séculos
depois, “um debate apaixonado a partir de processos completamente novos,
espetaculares, chocantes e reveladores”.
Logo na introdução, ele lembra: “Na era do iluminismo, durante a vida de
Francis Bacon, Descartes ou mesmo Hegel, o padrão de vida em qualquer lugar da
Terra nunca era mais que duas vezes superior àquele em vigor na região mais
pobre. Hoje, o país mais rico, o Qatar, se vangloria de ter uma renda per
capita 428 vezes maior que aquela do país mais pobre, o Zimbábue (a comparação
é entre médias).” Nunca se viu tamanha desigualdade em toda a história humana.
Para Bauman, “a obstinada persistência da pobreza no planeta que vive os
espasmos de um fundamentalismo do crescimento econômico é bastante para levar
as pessoas atentas a fazer uma pausa e refletir sobre as perdas diretas, bem
como sobre os efeitos colaterais dessa distribuição da riqueza”. Que, na
realidade, é uma “não-distribuição da riqueza”. A seu ver, “o abismo crescente
que separa os pobres e sem perspectiva de abastados, otimistas, autoconfiantes
e exuberantes – abismo cuja profundidade já excede a capacidade de todos,
exceto dos mais fortes e inescrupulosos arrivistas – é razão óbvia para
ficarmos gravemente preocupados”.
A propósito, ele concorda com quem adverte que “a principal vítima da
desigualdade será a democracia, já que a parafernália cada vez mais escassa,
rara e inacessível da sobrevivência e da vida aceitável se torna objeto de
rivalidades cruelmente sangrentas (e talvez de guerras) entre os bem providos e
os necessitados e abandonados” (1). Para Bauman, essa assertiva desmonta “uma
das justificativas morais básicas da economia livre de mercado, isto é, que a
busca do lucro individual também fornece o melhor mecanismo para a busca do bem
comum” (grifo do autor).
Ele está convencido de que “a riqueza acumulada no topo da sociedade,
ostensivamente, não obteve qualquer ‘efeito de gotejamento’; nem tornou
qualquer um de nós, em qualquer medida, mais rico; nem nos deixou mais seguros
e otimistas quanto a nosso futuro e o de nossos filhos; nem tampouco, segundo
qualquer parâmetro, mais felizes.”
Pelo contrário. “Pessoas que são ricas estão ficando mais ricas apenas
porque são ricas. Pessoas que são pobres estão ficando mais pobres porque
já são pobres”, observa Bauman e completa: “Hoje, a desigualdade continua a
aprofundar-se pela ação de sua própria lógica e de seu momentum. Ela não carece
de nenhum auxílio ou estímulo a partir de fora – nenhum incentivo, pressão ou
choque. A desigualdade social parece agora estar mais perto de se transformar
no primeiro moto-perpétuo da história – o qual os seres humanos, depois de
inumeráveis tentativas fracassadas, afinal conseguiram inventar e pôr em
movimento.”
Bauman acompanha o aumento da remuneração de um diretor executivo das
maiores empresas americanas em comparação com o salário médio de um trabalhador
de fábrica. Em 1960, o diretor executivo ganhava doze vezes mais que o
trabalhador. Em 1974, 35 vezes mais. Em 1980, 42 vezes mais. Em 1990, 84 vezes
mais. Em meados de 1990, 135 vezes mais. E, em 2000, já era 531 vezes mais. Não
parece um moto-perpétuo em contínua aceleração?
Notável é a crítica de Bauman a um trecho do discurso de Margaret Thatcher
(1925-2013) feito durante visita aos EUA, em 1970, já como alta funcionária do
governo inglês, do qual seria a primeira-ministra em 1979-90. Thatcher –
que não tardaria a promover a desregulamentação do setor financeiro, a
flexibilização do mercado de trabalho e a privatização de empresas estatais –
disse então: “Uma das razões por que valorizamos indivíduos não é porque sejam
todos iguais, mas porque são todos diferentes… Eu diria: permitamos que nossos
filhos cresçam, alguns mais altos que outros, se tiverem neles a capacidade de
fazê-lo. Pois devemos construir uma sociedade na qual cada cidadão possa
desenvolver plenamente seu potencial, tanto para seu próprio benefício quanto
para o da comunidade como um todo”.
Escreve Bauman a respeito: “Observe que a premissa crucial que leva a
afirmação de Thatcher a parecer quase evidente em si mesma – a suposição de que
a ‘comunidade como um todo’ seria adequadamente servida por todo cidadão
dedicado a seu ‘próprio benefício’ – não foi explicada com clareza, sendo aqui
aceita como ponto pacífico. Como observa Dorling (2), de maneira sarcástica,
Thatcher pretende que ‘a capacidade potencial deva ser tratada como a altura’
(isto é, algo que está além do poder de interferência humana); assim como
presume, mais uma vez sem provas, que diferentes indivíduos tenham por natureza
capacidades diversificadas, em vez de possuir distintas capacidades a serem
desenvolvidas, porque cabem a cada um diferentes condições sociais.”
“Em outras palavras” – esclarece Bauman –, “Thatcher toma como ponto
pacífico, como algo evidente, que nossas diferentes capacidades, assim como
nossas diferentes alturas, são determinadas por nascimento, ‘normalizando’
desse modo a implicação de que pouco ou quase nada há na capacidade humana para
mudar esse veredicto do destino. Essa foi uma das razões pelas quais, no fim do
século passado, ‘tornou-se aceita a estranha noção de que, ao agir
egoisticamente, de algum modo, as pessoas beneficiam as outras’” (3).
No capítulo dedicado a Algumas grandes mentiras, Bauman nos oferece
breve lista de “falsas crenças”, “talvez aquelas que, mais que todas as demais,
têm responsabilidade pelo flagelo da desigualdade e seu crescimento em
aparência incontrolável e metastático”:
“1. O crescimento econômico é a única maneira de lidar com os desafios e de
algum modo resolver todos e quaisquer problemas que a coabitação humana
necessariamente gere.
2. O aumento permanente do consumo, ou a rotatividade acelerada de novos
objetos de consumo, talvez seja a única ou, pelo menos, a principal e mais
efetiva maneira de satisfazer a busca humana pela felicidade.
3. A desigualdade entre os homens é natural; assim, ajustar as oportunidades de
vida humana à sua inevitabilidade beneficia todos nós, enquanto adulterar seus
preceitos prejudica todos.
4. A rivalidade (com seus dois lados, a eminência do notável e a
exclusão/degradação do desprezível) é, simultaneamente, condição necessária e
suficiente para a justiça social, assim como para a reprodução da ordem
social.”
O final é inesperado e de uma franqueza sem ranhuras, com corajosa e
dramática dose de otimismo: “Permita-me acrescentar que atribuir a si mesmo
responsabilidade pelo mundo é um ato ostensivamente irracional. A decisão de
assumi-la, complementada pela responsabilidade por essa decisão e suas
consequências, contudo, é a última chance de salvar a lógica do mundo da
cegueira que ele sofre e das suas consequências homicidas e suicidas.”
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial
(SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial,
Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da
Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI)
e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.
Referências
1) Do artigo Especie humana ameaçada de extinção (Human species, endangered),
de Michel Rocard, Dominique Bourg e Floran Augagner, publicado no jornal Le
Monde, na edição de 3 de abril de 2011.
2) Dorling, Daniel,
Injustice: Why Social Inequality Persists?, Polici Press, 2011, p. 197.
3) Id Ibid.
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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