Política Externa de Empresas Multinacionais?
Olá leitor!
Segue abaixo mais um artigo do Sr. José Monserrat Filho postada
ontem (10/01) pelo companheiro André Mileski em seu "Blog Panorama Espacial".
Duda Falcão
Política Externa de Empresas Multinacionais?
“Na guerra ou na paz, o setor privado se transformou no setor
público.” John Kenneth
Galbraith, A economia das fraudes inocentes –
Verdades para o nosso tempo,
São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 56. (1)
José Monserrat Filho *
O novo Secretário-Geral da Organização das Nações
Unidas, o português Antônio Guterres, falando aos funcionários da ONU, em
Nova York, no dia 3 de janeiro, “reclamou das nações mais ricas por sua
negligência na hora de assumir suas responsabilidades em questões globais”,
tema que gera muitos debates no mundo inteiro. Para Guterres, “vivemos num
mundo em que se multiplicam os conflitos que se inter-relacionam com este novo
fenômeno do terrorismo global. Conflitos nos quais se despreza o Direito
Humanitário Internacional e se cometem graves violações dos direitos humanos, e
nem sequer se respeitam os direitos dos refugiados.” (2)
Como as mais poderosas empresas do mundo devem
reagir diante desta desordem geral? “Para poderem navegar pelas
complexidades geopolíticas do mundo moderno, as empresas precisam 'privatizar'
a política externa, internalizando muitos elementos tradicionalmente empregados
na arte de governar”, recomenda a revista Harvard Business Review/Brasil,
edição de setembro de 2016, no artigo de John Chipman “Por que sua empresa
precisa de uma política externa – As multinacionais devem ficar atentas à
crescente volatilidade geopolítica”. (3)
A revista vale-se do prestígio da Harvard
University. Fundada em 1636 com campus em Cambridge,
Massachusetts, essa é a mais antiga instituição de ensino superior dos EUA e
goza de fama mundial. Em 2012, seu orçamento de 30 bilhões de dólares foi o
maior de todas as universidades do mundo. Sua visão dos problemas tende a
refletir a opinião do grande empresariado americano – não raro polêmica. (4)
Chipman afirma, por exemplo, que, ante “a velocidade dos acontecimentos e as
lentas reações dos EUA”, “o apetite para a intervenção tanto por parte dos
decisores políticos dos EUA como do público está em declínio” e que, “como
resultado, o mundo tende a ficar menos estável – esta é a primeira razão de as
multinacionais se concentrarem novamente no risco geopolítico”. Mas será mesmo
que a instabilidade atual do mundo se deve, ainda que em parte, à inapetência
do intervencionismo americano? A invasão ilegal do Iraque não ocorreu em 2003?
O cenário global de hoje é bem mais complicado. Em
artigo publicado no jornal Valor, de 6 de janeiro, Cristian Klein cita o
jornalista e escritor Carlos Amorim, que lançou pela Ed. Record uma trilogia
sobre o crime organizado. No terceiro volume, Assalto ao Poder, sobre a
infiltração do crime em instituições do Estado e do mercado, Amorim enfatiza:
“O crime organizado começa na favela e termina em Wall Street.” Klein procura
explicar: “O crime organizado precisa de um mecanismo de autopreservação que
exige atuação política. Não falo de bandido em cima de laje de favela, mas do
crime infiltrado nas instituições públicas, na democracia, na economia formal.”
Para dar uma ideia da dimensão do fenômeno, Klein
apresenta dados impressionantes: “A atuação das organizações criminosas em
escala global movimenta, anualmente, de acordo com a ONU, entre US$ 3 trilhões
e US$ 4 trilhões. É maior do que o PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil. Não
seria possível movimentar tamanha quantidade de dinheiro sem o sistema
bancário, de troca de capitais. É um leque amplo de envolvimentos, uma operação
criminosa transnacional que envolve gente de todos os escalões sociais, e
governos.” (5)
David Harvey, geógrafo e antropólogo britânico,
professor emérito da Universidade da Cidade de Nova York e ex-professor das
Universidades Johns Hopkins, nos EUA, e Oxford, no Reino Unido, considera, por
sua vez, que “é estupidez tentar entender o mundo do capital sem levar em conta
os cartéis de drogas, os traficantes de armas e as várias máfias e outras
formas criminosas de organização que desempenham papel significativo no mercado
mundial”. (6) Poderosas corporações financeiras, portanto, não podem não
participar ativamente de tais atividades.
Em 1990, Jean Ziegler, então membro do Parlamento
suíço, lançou o livro A Suíça Lava Mais Branco. Em
2015, 25 anos depois, entrevistado por Jamil Chade, do jornal O Estado de S.
Paulo – lembra o Jornal GGN de 1º de março de 2015 –, Ziegler insiste na mesma
acusação: “A Suíça é o principal local de lavagem de dinheiro do nosso planeta,
o local de reciclagem dos lucros da morte”. Agora, com o vazamento das 100 mil
contas secretas do banco HSBC na Suíça – notícia definida como “terremoto mundial”
–, ele adverte: “É apenas a ponta do iceberg”. E esclarece: “Na maioria dos
países, quem regula os bancos é um órgão estatal. Na Suíça, é uma empresa semi
privada paga pelos bancos. Uma agência que regula bancos bancada pelos bancos.”
E mais: o governo suíço “sabia que o dinheiro vinha das drogas colombianas, da
máfia, do terrorismo e da lavagem de dinheiro. Mas até hoje nenhum processo foi
aberto”. (7)
As relações entre empresas transnacionais e Estados
tiveram sua fase mais crítica nas décadas de 1960-1970. Os
princípios da soberania sobre os recursos naturais e da autodeterminação dos
povos, sobretudo com a liberdade de escolha do regime político, da organização
social e do modelo econômico – foram consagrados na Carta das Nações Unidas, de
1945, e nas propostas aprovadas pela Assembleia Geral nos documentos
"Declaração de Estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Mundial" e
"Plano de Ação para o Estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica
Mundial" e "Carta de Direitos e Deveres dos Estados". Meta principal:
diminuir a disparidade de poder nas relações econômicas entre países
desenvolvidos e em desenvolvimento. Essas posições do chamado “terceiro mundo”
chocaram-se e ainda se chocam abertamente com a autonomia e a garantia de
investimentos exigida pelas firmas transnacionais. (8) As Nações Unidas até
hoje não lograram regulamentar a conduta dessas empresas, apesar dos vários
projetos propostos. O sonho de consumo das transnacionais parece ser o de se
tornarem sujeitos do Direito Internacional, como os Estados.
O Acordo que Regula as Atividades dos Estados na
Lua e outros Corpos Celestes (Acordo da Lua) – preparado durante os anos 70 e
aprovado por unanimidade pela Assembleia Geral da ONU, em 1979 – embora conte
hoje com apenas 16 ratificações e quatro assinaturas – foi fortemente
influenciado pelos países em desenvolvimento. Isso fica particularmente claro
em seu Artigo 4º (“Especial atenção deve ser dada aos interesses das gerações
presentes e futuras” e “à necessidade de promover níveis de vida mais elevados
e melhores condições de progresso e desenvolvimento econômico e social”) e em
seu Artigo 11, que define a Lua (e os outros corpos celestes) e seus recursos
naturais como “patrimônio comum da humanidade” e cria um regime internacional
para a explotação dos recursos naturais lunares baseada na participação
equitativa de todos os Estados interessados – desenvolvidos e em
desenvolvimento – nos benefícios auferidos de tais recursos. (9) As empresas
transnacionais rechaçam categoricamente esse princípio.
Voltando ao artigo de Chipman, ele sustenta:
“Hoje, as empresas assumem o controle direto de sua imagem e reputação
internacional. Poucas desejam ser vistas principalmente como o braço comercial
de uma nação em particular”. E cita um caso que caiu muito mal na opinião
pública mundial: em 1954, a United Fruit Company foi cúmplice do golpe de
Estado na Guatemala conduzido pelo governo dos EUA, que derrubou o presidente
Jacobo Arbens Guzmán, democraticamente eleito. Arbens expropriara terras não
utilizadas da empresa americana, dentro de um programa legal de reforma
agrária, amplamente apoiado no país. 29 anos depois, no Chile, em 1973, o golpe
chefiado pelo General Augusto Pinochet depôs o presidente Salvador Allende,
também democraticamente eleito. Allende nacionalizara corporações americanas,
inclusive a do cobre. O golpe mobilizou greves de caminhoneiros, tropas de
açambarcadores de alimentos e produtos essenciais, e movimentos de protestos,
com decisiva ajuda de Washington e financiamento de empresas transnacionais,
que, graças ao regime militar, tiveram de volta suas propriedades. (10)
Por isso, com certeza, Chipman lembra: “Nos últimos
anos do século 20, muitas empresas decidiram recuar para parecer politicamente
neutras.”
Mas o próprio Chipman reconhece, logo depois: “A
realidade do século 21 é que as empresas não podem escapar da política nem
continuar a fingir que são neutras. A resposta é abraçar a necessidade de se
engajar política e diplomaticamente.” E acrescenta: “Assim como as empresas
conduzem regularmente a diligência jurídica, a financeira e outras tantas,
devem se comprometer também com a diligência geopolítica.” Em vários níveis e
esferas. As empresas devem ir do geral para o particular: “avaliar o risco
transnacional”; “prestar atenção às tendências políticas regionais”; “avaliar o
risco local”; e “ter cautela com o risco doméstico e com o risco ao redor”.
Para Chipman, esse trabalho todo “requer uma equipe bastante sofisticada de
analistas internos para avaliar continuamente o risco geopolítico, além de
especialistas em assuntos internacionais”. Isso é vital para as empresas
poderem desenvolver sua própria política externa.
“O primeiro princípio da diplomacia corporativa: as
empresas devem criar a sua própria abordagem para governos estrangeiros em vez
de manipular as políticas de seu país de origem ou ser influenciadas por elas”,
aconselha Chipman. Ele frisa que “às vezes, as organizações (empresas) precisam
se separar da política externa de seu país de origem”, mas acha que esse
desenraizamento tem limites: “as empresas não devem se tornar tão apátridas” a
ponto de sentir que não devem pagar impostos em lugar algum. E arremata:
“Deixar de quitar um imposto devido sobre o lucro denota por si só ausência de
boas práticas de política externa: pode prejudicar a reputação de uma empresa e
levar a uma ação forte do governo.” Em países emergentes, alerta Chipman, “a
política interna é particularmente volátil”; por isso, “o equilíbrio interno de
poder entre atores-chave nas esferas econômicas e políticas deve ser
continuamente monitorado”; e “o melhor seguro contra o risco político continua
a ser um profundo e amplo conjunto de relações que reforce a licença da
política implícita da empresa para operar de forma eficaz”, ou seja, concentrar
riquezas em escala crescente.
Concluindo, Chipman salienta que
“os processos de avaliação geopolítica das empresas devem ser abrangentes e sua
política externa corporativa, astuta”. Daí que, cada vez mais, os investidores
vão dar destaque às empresas transnacionais que primam pela aptidão e
habilidade em política externa e pela capacidade de agir diante de choques
geopolíticos.
O que seria uma “política externa astuta”? “Astuta”
é a forma adjetiva de “Astúcia”, que, segundo o Dicionário Aurélio (versão
2004), quer dizer “habilidade de enganar, lábia, solércia, manha, artimanha,
ardil”, além de “malícia e sagacidade”.
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de
Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto
Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de
Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de
Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB).
E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.
Referências
1) John Kenneth Galbraith (1908-2006), economista,
filósofo e escritor norte-americano, conhecido por suas posições keynesianas,
escreveu mais de 40 livros, muitos deles traduzidos para o português.
2) Antônio Guterres (1949-), diplomata, ex-diretor
(2005-2015) da ACNUR, agência das Nações Unidas responsável pelas questões
relativas aos refugiados. Em 2016, foi eleito Secretário-Geral da ONU, aclamado
por todos os 193 Estados-Membros da organização.
5) Ver http://www.valor.com.br/politica/4827968/crime-organizado-comeca-na-favela-e-termina-em-wall-street.
6) David Harvey (1935-), formado na Universidade de
Cambridge, publicou Social Justice and the City e The Limits to Capital (sobre
o pensamento econômico de Marx, com posições heterodoxas em relação a alguns
aspectos da teoria marxista tradicional, como a teoria das crises).
7) Jean Ziegler (1934-), ex-professor de Sociologia
das Universidades de Genebra e Sorbone, em Paris, é consultor do Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas e autor de 25 livros publicados em várias línguas,
inclusive em português.
8) Resolução 3.201, de 1º de Maio de 1974,
Resolução 3.202, de 1º de Maio de 1974) e Resolução 3.281, de 12 de Dezembro de
1974. Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Nova_Ordem_Econ%C3%B4mica_Internacional. Seitenfus, Ricardo, Relações Internacionais, Barueri,
SP: Manole, 2004. p. 131.
9) Ver texto completo do Acordo da Lua em www.sbda.org.br.
10) Seitenfus, Ricardo, Relações Internacionais,
Barueri, SP: Manole, 2004. p. 131.
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
Comentários
Postar um comentário