Sylvio Ferraz Mello: Uma Trajetória Singular
Olá leitor!
Segue abaixo uma interessante entrevista com o Dr. Sylvio
Ferraz Mello, professor emérito e ex-diretor do Instituto de Astronomia,
Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), que
foi agraciado Brouwer Award, premio este
concedido a pesquisadores que deram uma contribuição de destaque na área
Astronômica. A entrevista foi publicada na edição de setembro de 2016 da “Revista
Pesquisa FAPESP”.
Duda Falcão
ENTREVISTA
Sylvio Ferraz Mello: Uma Trajetória Singular
Estudos do astrofísico ajudaram a entender
características e
anomalias na órbita de asteroides e outros corpos
celestes
MARCOS PIVETTA e
IGOR ZOLNERKEVIC
Revista Pesquisa FAPESP
ED. 247 - Setembro 2016
© LÉO RAMOS
Em 22 de maio, o paulistano Sylvio Ferraz Mello,
professor emérito e ex-diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências
Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), esteve em Nashville. A
visita à meca da música country não era para assistir a shows. Ferraz Mello foi
aos Estados Unidos para participar da reunião anual da Divisão de Astronomia
Dinâmica da Sociedade Americana de Astronomia, que o agraciara com o Brouwer
Award, prêmio concedido a pesquisadores que deram uma contribuição de destaque
na área.
A astronomia dinâmica estuda os movimentos dos corpos
celestes, como satélites, planetas e asteroides, regidos principalmente pelas
interações gravitacionais entre esses objetos. Não é uma área que costuma gerar
manchetes em publicações não especializadas. Mas suas teorias, equações e
modelos são a base para explicar por que o Sistema Solar e, mais recentemente,
os conjuntos de exoplanetas exibem suas atuais configurações.
Físico de origem, Ferraz Mello é o associado número 1 da
Sociedade Astronômica Brasileira (SAB). Fez doutorado na Universidade de Paris
(Sorbonne) em 1967. De 1987 a 1994, foi coordenador adjunto da área de
Exatas e Engenharias da FAPESP. Em sua carreira, estudou as órbitas de
satélites, de asteroides e, ultimamente, de exoplanetas. Seus modelos ajudaram
a entender, entre outras questões, por que há muitos asteroides no Sistema
Solar com período orbital de oito anos e poucos ou quase nenhum com período de
quatro e seis anos.
Um dos fenômenos mais estudados por Ferraz Mello é a
ressonância, um tipo de influência gravitacional que um corpo celeste exerce
sobre outro quando seus períodos orbitais são comensuráveis. Ou seja, quando o
período de um é uma proporção racional do outro, como no caso de asteroides que
demoram seis anos para dar uma volta ao Sol, metade do tempo necessário para
Júpiter completar a mesma tarefa. Nesta entrevista, além das pesquisas, Ferraz
Mello conta um pouco de sua trajetória, que inclui a passagem pela astronomia
do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), pelo Observatório Nacional (ON),
a longa carreira na USP e a participação no trabalho de prospecção do sítio em
que seria instalado nos anos 1970 o Observatório do Pico dos Dias, do
Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA). “Descobrimos o lugar quase por
acaso”, lembra, ativo, em sua sala no IAG, às vésperas de completar 80 anos em
outubro.
Idade
80 anos
Especialidade
Dinâmica do Sistema Solar e sistemas planetários
extrassolares
Formação
Graduação em física pela Universidade de São Paulo
(1959); doutorado em astronomia pela Universidade de Paris/Sorbonne (1966)
Instituição
IAG-USP
Produção
científica
137 artigos, 40 capítulos de livros, 19 livros como autor
ou organizador. Orientou 17 mestrados e 23 doutorados (1 em andamento
O senhor recebeu o Brouwer Award por algum trabalho
específico ou pelo conjunto da obra?
Foi fundamentalmente pelo meu trabalho sobre asteroides.
Duas outras questões também devem ter influenciado. Uma foi o peso que a
comunidade de astronomia dinâmica tem hoje na América Latina. Há três anos, a
Divisão de Astronomia Dinâmica da Sociedade Americana de Astronomia fez sua
reunião anual em Paraty e levou um susto. Foi o maior encontro deles em número
de participantes. Aqui há poucas reuniões. Então, quando tem uma, vai todo mundo.
Acho que também pesou a atuação na revista da comunidade, a Celestial Mechanics
and Dynamical Astronomy. Desde 2001, sou o editor-chefe, cargo que deixarei no
próximo ano.
Em 1983, um asteroide ganhou seu nome, o 5201
Ferraz-Mello. Por que recebeu essa homenagem?
Praticamente todos os colegas da comunidade de astronomia
dinâmica tem o seu asteroide. Não é uma exclusividade. O descobridor desse, Ted
Bowell, é uma pessoa com quem sempre me dei bem e ele me deu esse prêmio. É um
asteroide muito peculiar. Fiquei muito feliz e comecei a trabalhar com esse
asteroide. Descobri nele características dinâmicas notáveis. Ele tem um período
próximo de seis anos, é ressonante, e está numa órbita bem alongada. Foi
observado no Soar [Observatório Austral de Pesquisa Astrofísica, no Chile] por
colegas do Rio de Janeiro e descobrimos que pode se tratar de um cometa extinto
ou de um que nunca se acendeu. Daqui a dois anos, ele se aproximará bastante da
Terra e poderá ser bem observado. Poderemos verificar se aparece uma auréola de
gás em volta dele. Quando chegar mais perto do Sol, ele poderá se aquecer e
formar uma cabeleira. Isso seria um indicativo de que ele tem algo de cometa.
Por que resolveu estudar o fenômeno da ressonância
orbital em asteroides?
Antes, eu trabalhava com a dinâmica de satélites, área
relativamente ingrata, extremamente importante, mas pequena. Eu conhecia quase
todo mundo. Devia haver menos de 100 pesquisadores seniores no mundo nessa
área. É um setor que necessita de conhecimentos muito precisos para embasar as
missões espaciais. Em determinado momento, vi que havia uma similaridade entre
um problema específico dos satélites e dos asteroides. Pensei em aproveitar o
gancho. Naquele tempo, eram conhecidos talvez 40 ou 50 satélites enquanto já se
conheciam mais de mil asteroides. Esse era, portanto, um assunto mais rico, com
uma comunidade muito maior. Comecei a trabalhar com asteroides na década de
1980.
Mas o que o atraiu exatamente para esse campo?
Vi que havia problemas com asteroides não resolvidos que
mereciam um estudo sistemático. Houve também uma circunstância favorável. Eu
estava com um grupo muito bom de alunos de pós-graduação no IAG. Quase todos
eram bolsistas da FAPESP e dois deles depois do doutorado receberam vários
prêmios. Com esse grupo, montei um projeto temático que me permitiu comprar uma
workstation com alta capacidade de processamento, era top de linha. Tinha então
um poder de cálculo maior do que muitos colegas do exterior. Os processadores
Risc da HP tinham acabado de sair e uma das primeiras máquinas veio para cá.
Conseguimos estudar vários problemas dos asteroides e resolver alguns.
Como eram esses problemas?
Sempre falo em números redondos para ficar mais fácil.
Júpiter leva um período de 12 anos para dar uma volta ao redor do Sol. Os
períodos dos asteroides se situam entre dois e 12 anos. Alguns deles estão em
ressonância orbital com o planeta. Tem períodos comensuráveis com o de Júpiter.
Então se encontram com Júpiter sempre no mesmo ponto de sua órbita. Asteroides
que não estão em ressonância cruzam com Júpiter cada vez em um lugar diferente.
A ressonância altera de forma significativa o movimento do asteroide,
amplificando sua órbita. Essa saga começou com estudos de outros pesquisadores
sobre asteroides com período de quatro anos, um terço do de Júpiter. Eles
queriam saber por que não existem asteroides com período de quatro anos no
Sistema Solar. Essa particularidade é denominada falhas de Kirkwood.
© ARQUIVO PESSOAL
Ferraz Mello em 1997 com os ex-alunos Daniela Lazzaro,
Tatiana
Michtchenko, Fernando Roig, Cristian Beaugé, Alessandro Simula,
Roberto
Vieira Martins, Tadashi Yokoyama e Rodney Gomes.
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Como assim?
Quando olhamos a distribuição dos asteroides, encontramos
corpos com período maior ou menor, mas não de quatro anos. Por que no ponto que
seria um terço do período de Júpiter não há asteroides? Essa questão foi
resolvida nos anos 1980 antes de eu começar a estudar asteroides. A ressonância
provoca reações chamadas de caóticas na órbita de um corpo. O asteroide roda ao
redor de Júpiter, mas, como recebe um impulso gravitacional do planeta gasoso
sempre no mesmo lugar, sua órbita começa a se deformar. Ela vai ficando
extremamente alongada. O asteroide começa a excursionar em uma área muito maior
do Sistema Solar. Isso pode levá-lo a uma quase colisão com Marte. Ao colidir,
deixa de ser um asteroide com período de quatro anos. Continua existindo, mas
em outra órbita. Em nosso primeiro trabalho estudando essa questão, vimos que a
situação era muito mais drástica do que os colegas haviam verificado.
Drástica em que sentido?
Nessa situação, o asteroide não só podia cruzar a órbita
de Marte, mas também a da Terra. Ele pode passar a menos de 1 milhão de
quilômetros (km) de distância da Terra, o que é muito perto. Nada impede que um
dia um objeto desses venha a colidir com a Terra. Isso não quer dizer
necessariamente uma colisão física, mas passar muito perto. Se isso ocorrer, o
asteroide será desviado de sua trajetória para uma outra órbita. Esse tipo de
instabilidade está presente em muitos asteroides. Em seguida, tentei estudar
com o mesmo método asteroides com período de seis anos, mas a abordagem não
funcionou. A órbita desses asteroides não crescia o suficiente para levar a uma
colisão com outros planetas.
O que o senhor fez então?
Comecei a trabalhar com a família de asteroides com período de oito anos,
equivalente a dois terços do de Júpiter. Esse caso é um pouco diferente. Em vez
de existir uma falha, há um grupo de asteroides com esse período. Muita gente
tentava entender por que era assim. Então, como eu disse antes, compramos um
bom computador e melhoramos o modelo para essa situação. Quanto mais complicado
o modelo, mais complexas ficam as equações. Para estudar a ausência de
asteroides de quatro anos, havíamos adotado um modelo simples, com três corpos.
Colocamos o Sol, Júpiter e um asteroide em órbita. Mas, graças ao novo
equipamento, fizemos um modelo mais complexo, com um corpo a mais, para os
asteroides com período de oito anos. Havia o Sol, o asteroide, Júpiter e
Saturno. Quando introduzimos esse planeta a mais no modelo, tudo se resolveu
tranquilamente. Conseguimos inclusive explicar até por que não há grandes
asteroides com período de seis anos. Não há asteroides antigos nessa
ressonância, apenas pedrinhas que entraram lá recentemente.
Quer dizer que o modelo servia para explicar tanto a
ausência de grandes asteroides com período de seis anos quanto o excesso de
asteroides com período de oito anos?
Quando escrevemos as equações para os asteroides de seis
e de oito anos, vimos que elas eram rigorosamente as mesmas. Mas por que havia
falta de asteroides de um tipo e excesso de outro? Por que alguns podiam ser
desviados para perto de um planeta e outros não? Para responder a essa questão,
tivemos de fazer o nosso trabalho mais longo até então. Concluímos que os dois
casos eram idênticos, mas a escala de tempo associada a cada situação era
diferente. Era uma questão numérica. O lugar onde estão os asteroides de oito
anos também vai se esvaziar desses corpos, só que isso ainda não ocorreu.
Calculamos que sejam necessários 10 bilhões ou 20 bilhões de anos para que isso
ocorra na região com os asteroides de oito anos. Mas o Sistema Solar tem só 5
bilhões de anos. Na região onde estavam os asteroides com período de seis anos
o tempo de esvaziamento é de 100 milhões a 1 bilhão de anos. Já deu tempo para
isso ocorrer. Assim matamos a charada.
A sua resposta foi logo aceita pela comunidade
científica?
A primeira vez que apresentei esse trabalho foi em
Belgirate, na Itália, em 1993. Estávamos em um evento, no segundo andar de um
prédio, e quase me jogaram pela janela quando expus meus resultados. Me
obrigaram mesmo a eliminar várias passagens no artigo que publiquei nos anais
desse evento.
Qual era a crítica fundamental ao trabalho?
Acho que era ter encontrado algo que os outros não tinham
achado e ter mostrado as órbitas em que os asteroides dão esses grandes pulos
gravitacionais. Para chegar a esse cálculo, de que a região com os asteroides
de seis anos se esvaziava em no máximo 1 bilhão de anos, usei uma fórmula
empírica, que havia sido deduzida por pesquisadores de Harvard a partir de
experimentos numéricos. Sabemos que a fórmula é uma verdade prática,
estatística, mas não há um teorema matemático que a prove. Logo depois, recebi
um excelente aluno da República Tcheca, David Nesvorny, que ficou encarregado
de estudar essa questão com uma metodologia mais robusta e de mais fácil
aceitação pelos meus colegas europeus, de formação mais matemática. Ele fez um
grande trabalho. Ficou anos programando e calculando e mostrou de maneira
irrefutável, por A mais B, que um tipo de asteroide sumia da ressonância em
menos de 1 bilhão de anos enquanto o outro precisaria de pelo menos 10 ou 20
bilhões de anos para sumir. Nessa história, houve algo divertido. Uma das
pessoas que estavam na reunião de Belgirate e que me colocou várias questões –
amigavelmente, pois éramos todos amigos – era um estudante, um recém-doutor de
Milão, Alessandro Morbidelli. Mais tarde, ele se rendeu aos nossos argumentos e
usou até uma figura nossa para ilustrar a capa do livro que escreveu sobre a
dinâmica do Sistema Solar.
© ARQUIVO PESSOAL
Em frente ao Palais de L‘Institut, em Paris, por volta
de
1970: doutorado na Sorbonne.
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Como o senhor começou a estudar a órbita dos
exoplanetas?
Houve uma situação gozada. Fiquei dois anos no
Observatório Nacional, no Rio, entre 1999 e 2001, e depois voltei para a USP.
Quando retornei, a professora Tatiana Michtchenko, que fez parte da minha
equipe de alunos e que hoje trabalha na sala ao lado da minha, estava estudando
os movimentos em sistemas ressonantes de exoplanetas, com outro ex-integrante
da equipe, o pesquisador argentino Cristian Beaugé. Eu também estava começando
a pesquisar essa questão, mas com outra abordagem, estudando a evolução de
sistemas ressonantes sob o efeito da maré [efeito secundário da gravidade que
faz as partes mais próximas de um corpo serem mais atraídas do que as mais
distantes]. Um dia mostrei uma figura para eles e eles me mostraram outra,
idêntica à minha. Tínhamos chegado aos mesmos resultados. Acho que fomos os
primeiros a estudar sistemas de exoplanetas cujas órbitas são ressonantes entre
si. Um dos sistemas estudados foi o Gliese 876, cujo planeta mais interno
precisa de 200 dias para dar a volta ao redor de sua estrela, enquanto o outro
planeta demora 400 dias, exatamente o dobro.
Foi a melhora dos espectrógrafos que permitiu a
descoberta dos planetas extrassolares?
Exatamente. Hoje um espectrógrafo mede velocidades
radiais com precisão de 1 metro por segundo. O Usain Bolt corre 10 metros por
segundo. O equipamento mede o efeito Doppler do Usain Bolt. Realmente a
precisão é fantástica.
Como o senhor avalia hoje a astronomia brasileira?
É uma astronomia de boa qualidade. Temos vários colegas
que são muito respeitados em suas áreas. O problema, como o de toda ciência
brasileira, é que temos um pesquisador que é referência internacional em cada
área. Tem um na especialidade A, outro na B e outro na C. Mas não existe massa
crítica para formar equipes. Sofremos do mal da universidade. Quando abre uma
vaga, ela deve procurar a melhor pessoa possível para o posto. O concurso para
aquela vaga tem de ser amplo. Só que, às vezes, a pessoa escolhida, que é a
melhor, não está interessada em nada do que os outros pesquisadores da
universidade fazem. Para a universidade, está tudo bem. A diversificação é
importante para ela. Mas, do ponto de vista do estabelecimento científico, isso
não contribui para a manutenção de equipes. Elas se formam, têm um certo tempo
de vida, mas o trabalho não tem continuidade. Mesmo os institutos ligados aos
CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], que
poderiam pensar diferente, acabam fazendo exatamente como as universidades.
Como surgiu seu interesse pela astronomia? Alguém na
família era pesquisador?
Um tio, Ary Ferraz Mello, era químico e teve uma grande
influência no que fiz. Ele trabalhava em cursos técnicos e também foi professor
universitário. Escreveu um livro de química analítica que foi usado em várias
universidades e chegou a ser convidado para vir para a USP, mas já estava com a
vida toda encaminhada e não aceitou. Naquele tempo, nos anos 1960, trabalhar na
USP era para rico. Podia-se ficar três, quatro meses sem receber até que a
burocracia da contratação terminasse. Mas a entrada na astronomia foi meio por
acaso. Até hoje tenho dificuldade em me considerar astrônomo. Sou físico, não
astrônomo. Minha física tem muita matemática. Na França, onde fiz doutorado, a
astronomia fundamental era colocada dentro da matemática. Não sei como é hoje.
Acho que hoje seria um doutorado em astronomia, nem em física, nem em matemática.
O senhor foi funcionário técnico da USP antes de ser
professor. Como ocorreu isso?
Em 1955, entrei no curso de física da USP, que funcionava
no prédio da rua Maria Antônia, no centro de São Paulo, e ali fiquei cinco
anos. Um dia fomos tomar café no bar da esquina com o professor de mecânica,
Abrahão de Mo-raes. Ele estava com um caderno na mão e colocou em cima da mesa.
Havia um carimbo no caderno, no qual estava escrito Observatório de São Paulo.
Nem sabia que existia um observatório em São Paulo. Então comecei a fazer
perguntas para ele sobre astronomia. Alguns meses depois, ele me convidou para
ser técnico no observatório, que fica no Parque do Estado, no bairro da Água
Funda [o IAG funcionou lá até o início deste século]. Eu estava no segundo ano da
faculdade e era estagiário no acelerador Van de Graaff, com o professor Oscar
Sala. No IAG, fiquei vários anos como técnico, fazendo cálculos para
publicações do instituto. A história é mais complexa do que isso, com um longo
período lecionando no Colégio Bandeirantes, depois na Física da USP, mas, mais
tarde, acabei vinculado ao IAG e aqui estou até hoje.
© ARQUIVO PESSOAL
Com Luiz Muniz Barreto, Abrahão de Moraes e o belga Sylvain
Arend:
reunião de astrônomos em Hamburgo em 1964.
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Houve um estudo interessante sobre o primeiro satélite
artificial soviético, o Sputnik?
Luiz de Queiroz Orsini e Antônio Hélio Guerra Vieira, da
Escola Politécnica, fizeram uma antena para medir as radiações que atravessam a
ionosfera e chegam até aqui quando o centro da galáxia passa pelo meridiano. A
antena era uma rede de fios, não uma parabólica. Eles queriam fazer a medida
todos os dias e ver como variava a ionosfera. Quando lançaram o Sputnik em
1957, apareceu no registrador a passagem do satélite. Acompanhamos o Sputnik 1
e o 2.
Como técnico, o senhor já pensava em ser pesquisador?
Fiz o curso de física para ser pesquisador. Tinha isso na
cabeça.
O que era a astronomia brasileira nessa época?
Não existia. Fui um dos primeiros a sair do país para
estudar e a voltar. Trabalhei com o professor Abrahão de Moraes [físico e
astrônomo, dirigiu o Instituto Astronômico e Geofísico, primeira designação do
atual IAG-USP, de 1955 a 1970] de 1956 até ir para a França em 1962. Estava com
ele o tempo inteiro. No início, até dividia a mesa de trabalho com ele.
Depois do doutorado fora, como foi o retorno ao
Brasil, já com a ditadura instalada?
Foi um período meio cinzento. Quando terminei o
doutorado, não tinha emprego na USP. Estava a ponto de voltar para o Brasil,
mas não sabia o que ia fazer. Muitos anos depois fiquei sabendo que circulara a
notícia de que eu seria comunista e tinha até ficha no Dops. De fato, eu havia
sido do Partido Socialista antes de sair do Brasil. Isso pode ter influenciando
as coisas por aqui, mas, certamente, não da parte do Abrahão. Um dia, ainda em
Paris, encontrei uns professores do ITA que lá estavam fazendo estágio e falei
das minhas dificuldades. Eles sugeriram que eu fosse para o ITA. Dei risada e
pensei o que faria no meio dos militares. Então me contaram que o ITA tinha
acabado de instalar um telescópio e o reitor, professor Francisco Antônio Lacaz
Netto, queria desenvolver a astronomia. Escrevi uma carta para ele e pedi para
dar aula no departamento de matemática. Respondeu que na matemática não haveria
emprego, mas, se eu viesse para desenvolver a astronomia, me empregaria. Fui
para o ITA, onde fiquei oito anos. Lá criei a primeira pós-graduação em
astronomia no Brasil, em 1968. Logo depois apareceu a do Mackenzie, criada pelo
Pierre Kaufmann. Voltei a trabalhar de novo no IAG quando criaram a
pós-graduação aqui em 1973, primeiro só em tempo parcial, para dar aulas. Mas
continuei também no ITA até 1975, quando vim definitivamente para a USP.
É verdade que o senhor é o sócio número 1 da SAB,
criada em 1974?
Sim, sou. Mas foi porque eu que fiz a lista dos
associados iniciais. Se você tivesse feito, também seria o número 1. O número
inicial de sócios era da ordem de 60 pessoas. Enchia uma sala. Estávamos
tentando organizar a astronomia de algum modo no Brasil. Fizemos uma reunião no
prédio da reitoria velha da USP, onde o IAG tinha algumas salas. Ali tivemos a
reunião em que decidimos formar uma sociedade. Nessa época, havia um trabalho
conjunto da USP, do Observatório Nacional, do ITA, da Universidade Federal de
Minas Gerais, do Mackenzie, para dotar o Brasil de um observatório. Estávamos
procurando o sítio para montar o Laboratório Nacional de Astrofísica, o LNA.
Quando ainda estava no ITA, coordenei os anos finais dessa procura.
Foi fácil escolher o Pico dos Dias, em Brazópolis
(MG)?
Não foi, não. Descobrimos a área por acaso. Havia um
problema: estávamos fazendo prospecção do melhor lugar para instalar o
observatório no Brasil, mas não tínhamos um bom mapa da região onde estava o
pico. Tínhamos de adivinhar onde as coisas estavam. Na época, os melhores mapas
publicados eram as cartas aeronáuticas. Elas tinham todo o relevo marcado, o lugar
onde estavam os picos, as serras. O estado de Minas Gerais ocupava várias
folhas enormes do mapa, com muitos detalhes. Mas, por azar, Brazópolis ficava
na área de exclusão aérea da escola de aeronáutica de Guaratinguetá. Nessa
área, o mapa era todo hachurado e ali não se via nenhum pico. Quando estávamos
estudando um pico próximo dali, em Maria da Fé, Germano Rodrigo Quast, que se
aposentou recentemente do LNA, disse, segurando um binóculo: “Que pico é aquele
que estou vendo daqui?”. Assim se descobriu, para a astronomia brasileira, a
existência do Pico dos Dias, em Brazópolis.
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP - Edição 247 - Setembro de
2016
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