Somos Todos Planetários, Porém Divididos
Olá leitor!
Segue abaixo mais um interessante
artigo escrito pelo Sr. José
Monserrat Filho e postado pelo
companheiro André Mileski ontem (12/09) em seu no Blog Panorama Espacial.
Duda Falcão
Somos Todos Planetários, Porém Divididos
“O despertar
da humanidade será um processo coletivo ou não será nada.
A mesma luz atravessa todas as gotas.” Pierre Lévy (1)
José Monserrat
Filho *
Nem sempre fomos tão planetários e tão divididos como hoje. Tempo houve,
há milênios, quando não tínhamos a mais ínfima noção do planeta que
habitávamos. Nascemos na África Oriental entre um milhão e 300 mil anos Antes
de Cristo. Vivíamos em bandos, unidos e solidários, para sobreviver o mais
possível. Caçávamos e coletávamos. Protegíamos nossa prole e disputávamos
comida com outros bandos similares a nós, em meio a ataques de animais
selvagens, intempéries inclementes e desastres naturais, contra os quais não
tínhamos a menor defesa.
O mundo de então – a natureza pura – era, ao mesmo tempo, nossa vida e nossa
morte, nossa casa e nosso forno, nossa comida e nossa fome, nosso prazer e
nossa dor, nossa escola para o bem e para o mal, nosso atraso e nosso
presente-futuro, nosso desaparecimento ou perpetuação.
Fomos do Homo erectus ao Homo sapiens e ao Homo sapiens sapiens – “o
homem que sabe o que sabe”, já pensa e tem um cérebro bem mais desenvolvido que
o de seus ancestrais.(2) Foi o que nos permitiu chegar às capacidades e aos
talentos destrutivos capazes de fazer da Terra o que ela é hoje, a caminho de
um colapso sem precedentes, ou mudá-la, salvando-a e criando uma situação mais
humana, lúcida, benéfica e justa para toda sua crescente e diversificada
população.
Hoje, a natureza, degradada e envenenada como nunca antes, continua sendo
para nós o que sempre foi: a escolha entre rumos que se excluem. Ainda não
percebemos bem que somos parte do todo e o todo é parte de nós. Estamos imersos
no mundo como o mundo está imerso em nós. Nosso destino sempre foi sermos
planetários. Temos conterrâneos por todo o globo, mesmo quando nós não os vemos,
nem eles nos vêem. Essa percepção, porém, ainda não se completou. Sendo
planetários, podemos ser universais, adentrando o espaço sideral, no rumo das
estrelas.
“Somos regentes do planeta, administradores da vida e predadores do que
administramos”, denuncia em seu livro A conexão planetária o pensador
Pierre Lévy, nascido na Tunísia em 1956 e formado na França, onde é professor e
pesquisador.(3) Mas, consola-nos ele, “a unidade da humanidade está se fazendo
agora. Após tantos esforços, é enfim chegada a unificação da humanidade, sob
uma forma que não esperávamos: não é um império, não é uma religião
conquistadora, uma ideologia, uma raça pretensamente superior, uma ditadura
qualquer; são imagens, canções, o comércio, o dinheiro, a ciência, a técnica, as
viagens, as miscigenações, a Internet, um processo coletivo e multiforme que
brota de todo lugar”. Lévy chama esse processo de “expansão da consciência”.(4)
Mas consciência de que?
É claro que a ciência e a técnica – o conhecimento, a tomada de consciência,
a descoberta, a invenção – precedem o comércio e o dinheiro, ainda que
esses poderosos recursos tenham sido muito usados no passado e continuem cada
vez mais usados, precisamente em favor do comércio e do dinheiro, no mundo
atrabiliário de hoje. O fato, contudo, é que a curiosidade e a ânsia de saber
dos seres humanos em geral surgiram milhões de anos antes do comerciante
(mercador) e do banqueiro, apesar das não poucas alegações em contrário.
Ser planetário não é ser consumidor do mundo através das novas tecnologias e
de seu endeusamento. É estar, sim, atualizado com as novas tecnologias sem
escravizar-se a elas e iludir-se com a ideia de que somente elas podem salvar o
planeta. É ter fome de conhecimento, sem a menor dúvida, e dar plena atenção à
autonomia e à criatividade dos indivíduos, mas sem egoismo, sem egocentrismo. É
imprescindível que eles estejam ligados à participação e às necessidades de
milhões de pessoas e à consciência de pertencer à humanidade. A essência da
globalização e da planetarização humana não está apenas no crescimento das
redes de transportes e comunicação, na proximidade cada vez maior e mais fácil
entre as pessoas, na eliminação das fronteiras e das barreiras que as separam e
as tornam adversárias, algozes e inimigas.
É verdade: quanto mais você se conecta e busca novas conexões, mais vasto
pode ser seu campo de interação, mais rico seu aprendizado e maior sua
experiência. Resta saber o que você vai fazer com todo esse ganho diante do
mundo e das outras pessoas. Hitler soube muito bem se conectar com o lumpen, o
povo, as elites e a aristocracia militar alemã. Deu no que deu: a mais
destuidora guerra de todos os tempos, com mais de 50 milhões de mortos
Conexões são formas, veículos, recipientes, envólucros, estruturas, vasos,
Internet, nuvens, redes sociais, celulares, tablets, computadores. Em
geral, cada novo sistema é mais rápido e moderno que o anterior. Obviamente,
elas resultam de importantes avanços científicos e tecnológicos. Mas por si
mesmas não resolvem nada. São produtos de um mecanismo chamado mercado, que
simplesmente não pode passar sem vender e vender e vender – é a maquiavélica
máquina do consumo, o moto perpétuo que dizem não existir... “A existência
dessa tecnologia é condição necessária, mas não suficiente para a possível
emergência de uma sociedade-mundo”, afirmam Edgar Morin, Emilio-Roger Ciurana e
Raul Motta, em Educar na Era Planetária.(5)
Daí que as conexões são boas ou más, úteis ou inúteis, benéficas ou
maléficas, construtivas ou destrutivas, dependendo do conteúdo que
divulguem e dos interesses a que servem. Todos nós vivemos acorrentados ao
mercado. E temos de suportá-lo cada vez mais impositivo e devorador. Mas ainda
podemos nos livrar do puro e devastador consumismo, escolhendo e usando o
celular ou o computador em função do que precisamos fazer com a ajuda deles e
não do que eles pretendem fazer de nós – idiotas super conectados e perdidos no
mundo, mais fáceis de lidar.
Há quem diga que este é um novo homem, aberto a mil possibilidades e
oportunidades. Ocorre que ele pode ser aberto e ao mesmo tempo vazio, oco ou
mero repetidor do que está em voga, um admirável papagaio. Mas basta ele se
conectar com a seiva, o núcleo, o conteúdo, a trajetória histórica, o mérito e
os valores de cada possibilidade e oportunidade, para, aí sim, ser um novo ser
humano, com pensamentos, competências, ideias e convicções próprias, além de
comprometido com a humanidade, que sempre garantiu e seguirá garantindo a vida
de todos nós.
O Papa Francisco vai além ao afirmar: “A verdadeira sabedoria, fruto da
reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as pessoas, não se adquire
com mera acumulação de dados, que, numa espécie de poluição mental, acabam por
saturar e confundir.”(6) Isso tende a substituir relações reais por relações
virtuais, artificiais, sem laços efetivos. É a rota da indigência intelectual.
No entanto, não é bem isso o que mais divide os planetários. É a
alarmante desigualdade econômica, social, política e cultural. Ela só faz
crescer em todo o mundo, ampliando a já gigantesca distância entre ricos cada
vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres, em escala global. Joseph
Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia de 2001, fala do “grande abismo que separa
os muito ricos – também conhecidos como 1% – dos demais”.
Ele conta que num “jantar oferecido por um brilhante e preocupado integrante
do 1%”, o anfitrião, “consciente do grande abismo”, “reuniu os principais
bilionários, acadêmicos e outras pessoas preocupadas com a desigualdade”.
Stiglitz ouviu “um bilionário – que começou a vida herdando uma fortuna –
conversando com outro sobre os americanos preguiçosos que procuravam viver às
custas dos outros”. “Em seguida, sem sobressaltos, eles passaram a tratar das
isenções fiscais, aparentemente sem se dar conta da ironia”, explícita naquela
conversa. Não por acaso, durante o jantar, ante “o risco” de que “a
desigualdade cresça demais”, “Maria Antonieta e a guilhotina foram citadas
várias vezes”. O tom da festa, goza Stiglitz, foi “lembre-se da guilhotina”.
E o pior: “estamos entrando num mundo mais dividido, não só entre ricos e
pobres, mas também entre países que nada fazem para combater a desigualdade e
os que lutam contra ela”. Nas sociedades divididas, frisa o economista, “os
ricos irão se isolar em comunidades fechadas, quase que totalmente separados
dos pobres, cujas vidas serão quase incompreensíveis para eles – assim como a
vida dos ricos será incompreensível para os pobres”.(7)
E isso em plena Era Planetária. Que planeta, afinal, estamos levando para o
espaço?!
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial
(SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial,
Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da
Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI)
e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.
Referências
1) Ver
https://vivenciaspedagogicas.wordpress.com/2011/11/23/o-que-e-ser-planetario/.
Pierre Lévy é filósofo, sociólogo e pesquisador em ciência da informação e da
comunicação e estuda o impacto da Internet na sociedade, as humanidades
digitais e o virtual. Nasceu na Tunísia, em 1956, mas formou-se e vive em Paris
e leciona no Departamento de Hipermídia da Universidade de Paris-VIII. Foi
aluno de Michel Serres e Cornelius Castoriadis. Especializou-se em abordagens
hipertextuais quando lecionou na Universidade de Otawa, no Canadá. Após sua
graduação, preocupou-se em analisar e explicar as interações entre Internet e
Sociedade. Desenvolveu um conceito de rede, junto com Michel Authier, conhecido
como Arbres de connaissances (Árvores do Conhecimento). Lévy também pesquisa a
inteligência coletiva focando em contexto antropológico, e hoje é um dos
principais filósofos da mídia. Suas pesquisas se concentram principalmente na
área da cibernética. Com isso, tornou-se um dos maiores estudiosos sobre a
Internet.
2) Ver http://www.estudopratico.com.br/homo-sapiens-sapiens/.
3) Lévy, Pierre. A conexão planetária: o mercado, o ciberespaço, a
consciência, São Paulo: Editora 14, 2001, p. 12.
4) Ibidem, p. 18 e 19.
5) Morin, Edgar; Ciurana, Emiluo-Roger; e Motta, Raúl Domingo, Educar na era
planetária – O pensamento complexo como método de aprendizagem pelo erro e
incerteza humana, São Paulo: Cortez Editora-UNESCO, 2003, p. 90.
6) Papa Francisco, Carta Encíclica LAUDATO SI' Sobre o Cuidado da Casa
Comum, São Paulo, Editora Paulinas, 2015, p. 37.
7) Stiglitz, Joseph E., O grande abismo – Sociedades desiguais e o que
podemos fazer sobre isso, Rio de Janeiro: Alta Books Editora, 2016, p. XI e p.
104.
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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