O Espaço do Ser Humano
Olá leitor!
Segue abaixo mais um interessante
artigo escrito pelo Sr. José
Monserrat Filho e postado pelo
companheiro André Mileski ontem (15/08) em seu no Blog Panorama Espacial.
Duda Falcão
O Espaço do Ser Humano
José Monserrat Filho *
“... o sistema de privilégios e privilegiados..., para se impor à
humanidade,
deve antes de
mais nada adormecê-la.”
Milton Santos
Mestre Milton Santos (1926-2001) lançou, em 1982, o livro Pensando o Espaço do
Homem, do qual já se publicaram várias edições e reimpressões. Graduado em
direito, Milton Santos é um dos nomes mais respeitados da geografia no Brasil.
Seus estudos sobre a urbanização nos países do terceiro mundo tiveram grande
repercussão acadêmica e política. Em 1994 ganhou o Prêmio Vautrin Lud,
considerado o Nobel da Geografia, e em 2006 foi agraciado postumamente com o
Prêmio Anísio Teixeira, da Capes, por suas contribuições ao desenvolvimento da
pesquisa e da formação de recursos humanos no país.
São dele também os livros Espaço e sociedade, 1979; O espaço dividido. Os dois
circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos, 1979; O Espaço do
Cidadão, 1987; Técnica, espaço, tempo – Globalização e meio técnico-científico
informacional, 1994; entre muitos outros.
Em Pensando o Espaço do Homem, esse baiano de Brotas de Macaúbas, que lecionou
e pesquisou em importantes universidades do mundo, fala do espaço globalizado em
todo o planeta Terra, cujo processo de formação iniciou-se nos primórdios do
capitalismo em meados do século XVI, há mais de 400 anos.
Ocorre que, a partir da segunda metade do século XX, o espaço global começa a
expandir-se pelo espaço exterior, graças a notáveis avanços científicos e
tecnológicos, que ensejaram os voos espaciais com a criação de foguetes,
satélites, sondas e estações espaciais. Iniciaram-se, então, a exploração e o
uso do novo ambiente pela espécie humana. Em quase 60 anos, milhares de objetos
construídos pela mão humana já foram lançados ao espaço, sobretudo às órbitas
da Terra, mas também à Lua, além de Marte e outros planetas, e ao espaço
profundo.
Tal movimento, inaugurado em 1957 e chamado de Era Espacial, tem imensos
efeitos econômicos, políticos, sociais e culturais, que vêm ampliando a
globalização terrestre para o que tem sido denominado de nosso oitavo
continente – o sem limites, incomensurável.
“Com a mundialização da sociedade, o espaço, tornado global, é um capital comum
de toda a humanidade”, salienta Milton Santos, e adverte: “Entretanto, sua
utilização é efetiva e reservada àqueles que dispõem de um capital particular.
Com isso, a noção de propriedade privada de um bem coletivo é reforçada.” A
novidade é que essa noção está englobando também o espaço exterior. Basta ver a
lei (HR 2262) sancionada pelo Presidente dos Estados Unidos em 25 de novembro
de 2015, que outorga às empresas norte-americanas o direito de propriedade
sobre as riquezas minerais e outros recursos naturais por elas extraídos de
asteroides e demais corpos celestes.
“Num mundo em que as determinações se verificam em escala internacional, num
mundo universalizado, os acontecimentos são comandados direta ou indiretamente
por forças mundiais”, afirma Milton Santos. A ideia de domínio das grandes
corporações globais aplica-se igualmente ao espaço exterior e às atividades lá
exercidas, hoje oligopolizadas em grande parte, embora sejam essenciais à vida
cotidiana de todos os povos da Terra.
Para Milton Santos, “hoje, quando se fala de espaço total, fala-se de uma
multiplicidade de influências superpostas: mundiais, nacionais, regionais,
locais”. Cabe acrescentar as influências espaciais, que só fazem crescer.
Ele diz que “o espaço é maciço, contínuo, indivisível”. O espaço exterior
realmente não é maciço, mas tende a ser, cada vez mais, virtualmente contínuo e
indivisível. Isso, porém, não anula a necessidade de se fixar a
delimitação entre o espaço aéreo, onde vigora o princípio da soberania dos
Estados, e o espaço exterior, onde esse princípio não tem vigência. Não pode
haver continuidade entre dois sistemas jurídicos inteiramente distintos.
Segundo Milton Santos, “com o desenvolvimento das forças produtivas e a
extensão da divisão do trabalho, o espaço é manipulado para aprofundar as
diferenças de classes. Essa mesma evolução acarreta um movimento aparentemente
paradoxal: o espaço que une e separa os homens”. O espaço exterior, por sua
vez, une a humanidade, real ou potencialmente, pelos serviços vitais que é
capaz de prestar ou vender, e, ao mesmo tempo, a separa, pela desigualdade
crescente que produz.
Neste tema complexo, Milton Santos frisa: “O que une, no espaço [terrestre], é
a sua função de mercadoria ou de dado fundamental na produção de mercadoria. O
espaço, portanto, reúne homens tão fetichizados quanto a mercadoria que eles
vêm produzir nele. Mercadorias, eles próprios, sua alienação faz de cada homem
um outro homem. O espaço, como ponto de encontro (…) é uma reunião de sombras
ou, quando muito, um encontro de símbolos.”
Milton Santos diz mais: “Como o espaço se tornou também um produto no mercado,
é sua raridade que une os homens... Trata-se de um contra o outro, da separação
e não da união.” E conclui: “A unidade dos homens pelo espaço é, pois, uma
falsa unidade... É dessa falsa unidade que a separação se alimenta. Os
progressos de nossa infeliz civilização conduzem mais e mais a uma sociedade
atomizada por um espaço que dá a impressão de reunir.” E também: “O espaço
[terrestre], habitação do homem, é também o seu inimigo, a partir do momento em
que a unidade humana da coisa inerte é um instrumento de sua alienação.” E
ainda: “Os homens vivem cada vez mais amontoados lado a lado em aglomerações
monstruosas, mas estão isolados um dos outros.”
Se Milton Santos tiver razão, estaremos levando para o espaço exterior, junto
com nossa ciência e tecnologias de ponta, as maiores mazelas sociais
desenvolvidas aqui na Terra – paradoxalmente, talvez o único planeta habitado
por seres inteligentes.
Daí a recomendação e o apelo de Milton Santos sobre o que fazer do espaço
terrestre, mas, a nosso ver, igualmente válido para o espaço exterior, se suas
críticas à situação atual se confirmarem e nada for feito para superar os
dramáticos problemas apontados:
“Devemos nos preparar para estabelecer os alicerces de um espaço
verdadeiramente humano, de um espaço que possa unir os homens para e por seu
trabalho, mas não para em seguida dividi-los em classes, em exploradores e
explorados; de um espaço matéria-inerte que seja trabalhada pelo homem mas não
se volte contra ele; um espaço Natureza social aberto à contemplação direta dos
seres humanos, e não um fetiche; um espaço instrumento de reprodução da vida, e
não uma mercadoria trabalhada por outra mercadoria, o homem fetichizado.”
Na visão do geógrafo, “desfetichizar o homem e o espaço é arrancar à Natureza
os símbolos que ocultam a sua verdade, vale dizer: ...é revalorizar o trabalho
e revalorizar o próprio homem, para que ele não seja mais tratado como valor de
troca”.
Não será isso o que mais inspiram aos humanistas “as vastas perspectivas que a
descoberta do espaço cósmico pelo homem oferece à humanidade”, como diz a
primeira linha do preâmbulo do Tratado do Espaço, de 1967 – a lei maior das
atividades espaciais?
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial
(SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial,
Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da
Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI)
e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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