O Papa Francisco e o Direito Espacial
Olá leitor!
Segue abaixo outro interessante
artigo escrito pelo Sr. José
Monserrat Filho e postado pelo
companheiro André Mileski ontem (28/09) em seu no Blog Panorama Espacial.
Duda Falcão
O Papa Francisco e o Direito Espacial
José Monserrat Filho*
“O século XXI, mantendo um
sistema de governança próprio de épocas passadas, assiste à perda de poder dos
Estados nacionais, sobretudo porque a dimensão econômico-financeira, de caráter transnacional, tende a prevalecer sobre
a política.”-- Papa Francisco, Encíclica
Laudato Si' sobre o Cuidado com a Casa Comum, 2015, parágrafo 175.
Ao discursar na Assembleia
Geral das Nações Unidas (ONU), em 25 de setembro, o Papa Francisco1 não falou
especificamente sobre o direito espacial, mas sobre o direito internacional, o
que, de certo modo, dá no mesmo. O direito espacial internacional é um
“Novíssimo Direito”, como bem definiu Haroldo Valadão (1901-1987), nosso
pioneiro na matéria, logo após o dia 4 de outubro de 19572, quando o Sputnik-1
inaugurou a Era Espacial.
Mas nem por isso o direito
espacial deixa de ser um ramo do direito internacional público. Tanto que o
Artigo 3º do Tratado do Espaço de 1967 – o código maior do setor – reza que “as
atividades dos Estados (...), relativas à exploração e ao uso do espaço
cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão efetuar-se em
conformidade com o direito internacional, inclusive a Carta das Nações Unidas,
com a finalidade de manter a paz e a segurança internacional e de favorecer a
cooperação e a compreensão internacionais”3.
Na realidade, o direito
espacial e o direito internacional, em que pesem as peculiaridades do primeiro,
são intimamente relacionados. E quanto mais essa relação for reconhecida e se
ampliar, melhor para ambos, sobretudo na missão suprema de manter a paz e a
segurança internacional, na Terra como no céu. O direito internacional é lex
generalis e o direito espacial, lex specialis.4
O Papa Francisco saudou os 70
anos da ONU, fonte do direito internacional contemporâneo, citando, “sem
pretender ser exaustivo”, algumas de suas principais conquistas: “a codificação
e o desenvolvimento do direito internacional, a construção da normativa
internacional dos direitos humanos, o aperfeiçoamento do direito humanitário, a
solução de muitos conflitos e operações de paz e reconciliação, e muitas outras
aquisições em todos os setores da projeção internacional das atividades
humanas”. O direito espacial cobre um setor de projeção global das atividades
humanas.
“Todas estas realizações são
luzes que contrastam a obscuridade da desordem causada por ambições
descontroladas e egoísmos coletivos. Apesar de ainda serem muitos os problemas
graves por resolver, é seguro e evidente que, se faltasse toda esta atividade
internacional, a humanidade poderia não ter sobrevivido ao uso descontrolado
das suas próprias potencialidades”, frisou o Papa. O regime nazista, por
exemplo, pagou no Tribunal de Nuremberg5 por seus crimes hediondos. Para o
Papa, a ONU deu a “resposta imprescindível” ao “poder tecnológico”, que, posto
“nas mãos de ideologias nacionalistas ou falsamente universalistas, é capaz de
produzir tremendas atrocidades”.
O Papa abordou, em particular,
os problemas da “limitação do poder” e das guerras. A seu ver, a
limitação do poder “é uma ideia implícita no conceito de direito”. Segundo a
definição clássica de justiça, lembrou ele, “dar a cada um o que lhe é devido
significa que nenhum indivíduo ou grupo humano pode se considerar
onipotente, autorizado a pisar a dignidade e os direitos dos outros indivíduos
ou dos grupos sociais.”
Para o Papa, apesar de seus
progressos, a ONU tem “constante necessidade de reforma e adaptação aos tempos,
avançando no rumo do objetivo final que é conceder a todos os países, sem
exceção, participação e incidência reais e equitativas nas decisões”. “Esta
necessidade de maior equidade” – salientou ele – “é especialmente verdadeira
nos órgãos com capacidade executiva real, como o Conselho de Segurança, os
organismos financeiros e os grupos ou mecanismos criados especificamente para
enfrentar as crises econômicas”. O Papa, portanto, apoia a reforma do Conselho
de Segurança, cuja composição já não reflete a realidade política do mundo. Não
por acaso, Alemanha, Brasil, Japão e Índia pleiteiam integrar esse órgão, mesmo
sem gozar do direito de veto, um privilégio, aliás, cada vez mais questionado.6
O acesso aos órgãos
financeiros, na visão do Papa, “ajudará a limitar qualquer espécie de abuso ou
usura especialmente em relação aos países em desenvolvimento. Os organismos
financeiros internacionais devem velar pelo desenvolvimento sustentável dos
países, evitando uma sujeição sufocante desses países a sistemas de crédito,
que, longe de promover o progresso, submetem as populações a mecanismos de
maior pobreza, exclusão e dependência”.
Ocorre que hoje, no dizer do
Papa, “o panorama mundial apresenta-nos muitos direitos falsos e, ao mesmo
tempo, amplos setores sem proteção são vítimas inclusive do mau exercício do
poder: o ambiente natural e o vasto mundo de mulheres e homens excluídos são
dois setores intimamente unidos entre si, que as relações políticas e
econômicas preponderantes transformaram em partes frágeis da realidade. Por
isso, é necessário afirmar vigorosamente os seus direitos, consolidando a
proteção do meio ambiente e pondo fim à exclusão”.
Daí que, para o Papa, “antes de
mais nada, é preciso afirmar a existência de um verdadeiro 'direito ambiental'
”, que, necessariamente, deve ser internacional. Por que? Porque todos os
humanos fazem parte do meio ambiente: “Os humanos têm um corpo constituído por
elementos físicos, químicos e biológicos, e só podem sobreviver e
desenvolver-se se o ambiente ecológico lhes for favorável. Por conseguinte,
qualquer dano ao meio ambiente é um dano à humanidade.”
O Papa ressaltou ainda: “O
abuso e a destruição do meio ambiente aparecem associados, ao mesmo tempo, com
um processo ininterrupto de exclusão. Na verdade, uma ambição egoísta e
ilimitada de poder e bem-estar material leva tanto a abusar dos meios materiais
disponíveis como a excluir os fracos e os menos hábeis, seja pelo fato de terem
habilidades diferentes (deficientes), seja por lhes faltarem conhecimentos e
instrumentos técnicos adequados ou revelarem capacidade insuficiente de decisão
política.”
E mais: “A exclusão econômica e
social é negação total da fraternidade humana e atentado gravíssimo aos
direitos humanos e ao meio ambiente. Os mais pobres são os que mais sofrem
esses ataques por um triplo e grave motivo: são descartados pela sociedade, ao
mesmo tempo são obrigados a viver de desperdícios, e devem sofrer injustamente
os efeitos do abuso do ambiente. Tais fenômenos são, hoje, a 'cultura do
descarte' tão difundida e inconscientemente consolidada.”
O Papa comemorou a adoção da
“Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, na Conferência de Paris sobre
mudanças climáticas, como “um sinal importante de esperança”. Mas com uma
ressalva: os compromissos solenemente assumidos não são suficientes, mesmo se
constituem um passo necessário para a solução dos problemas. E voltou a citar a
definição clássica de justiça, agora em latim: Iustitia est constans et
perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi. Ou seja: “A justiça é a vontade
constante e perpétua de dar a cada um o seu direito.”
Por isso, disse o Papa, “a
medida e o indicador mais simples e adequado do cumprimento da nova Agenda para
o desenvolvimento será o acesso efetivo, prático e imediato, de todos, aos bens
materiais e espirituais indispensáveis: habitação própria, trabalho digno e
devidamente remunerado, alimentação adequada e água potável; liberdade
religiosa e, mais em geral, liberdade do espírito e educação. Ao mesmo tempo,
estes pilares do desenvolvimento humano integral têm um fundamento comum, que é
o direito à vida, e, em sentido ainda mais amplo, aquilo a que poderemos chamar
o direito à existência da própria natureza humana.”
Para o Papa, “a crise
ecológica, junto com a destruição de grande parte da biodiversidade, pode pôr
em perigo a própria existência da espécie humana”.
O líder maior da Igreja
Católica também se pronunciou contra as guerras. A seu ver, “a guerra é a
negação de todos os direitos e uma agressão dramática ao meio ambiente; se se
quiser um desenvolvimento humano integral autêntico para todos, é preciso
continuar incansavelmente no esforço de evitar a guerra entre as nações e entre
os povos.”
Sem o reconhecimento de alguns
limites éticos naturais inultrapassáveis e sem a imediata atuação dos referidos
pilares do desenvolvimento humano integral, o ideal de “preservar as gerações
vindouras do flagelo da guerra” e “promover o progresso social e um padrão mais
elevado de viver em maior liberdade”, conforme a Carta da ONU, “corre o risco
de se tornar miragem inatingível ou, pior ainda, palavras vazias que servem
como desculpa para qualquer abuso e corrupção ou para promover uma colonização
ideológica através da imposição de modelos e estilos de vida anormais, alheios
à identidade dos povos e, em última análise, irresponsáveis”.
Os debates sobre a limitação de
poder, os superpoderes tecnológicos, a eliminação das guerras, as desigualdades
entre pessoas, povos e países, e a defesa do meio ambiente, entre outros temas
abordados pelo Papa, são de enorme interesse para o direito espacial, pois
trazem perigos às atividades espaciais, sempre muito caras e indispensáveis à
vida cotidiana e à segurança da Terra.
Grandes potências – empenhadas
naquilo que parece ser uma nova Guerra Fria – preparam-se para instalar armas
em órbitas da Terra e transformar o espaço em campo de batalha e teatro de
guerra. Corporações bilionárias, com o apoio de seus Estados, arregimentam-se,
de forma unilateral, para explorar industrial e comercialmente os mais valiosos
recursos naturais da Lua, de asteroides e de outros corpos celestes, sem a
imprescindível base jurídica internacional e sem avaliar devidamente o impacto
de seus negócios sobre a economia do planeta, com o provável aumento das
desigualdades entre os países e os povos, entre os “have” e os “have not”, bem
como sobre o meio ambiente dos corpos celestes minerados.
O Instituto de Haia, dos Países
Baixos, reuniu, em 5 de dezembro de 2014, cientistas, líderes industriais,
engenheiros, diplomatas, juristas e homens públicos de inúmeros países, num diálogo
para discutir e propor soluções sobre a falta hoje de um marco legal para a
exploração de recursos minerais do espaço.7 O evento concluiu que a
comercialização e o uso desses recursos “produzirão consideráveis ganhos
econômicos, mas também levantarão questões de distribuição [de renda] e de
equidade, porque muitos países, especialmente do hemisfério Sul, ficarão fora
do novo setor”. Por isso, participantes do encontro enfatizaram “a necessidade
de modelos responsáveis de exploração comercial dos recursos minerais do
espaço”, capazes de atender aos interesses de todos os setores envolvidos e não
apenas do setor privado.
Por sua vez, o “Estudo
Internacional sobre a Governança Global do Espaço”8, lançado em 2015 pelo
Instituto de Direito Aeronáutico e Espacial da Universidade McGill, em
Montreal, Canadá, para subsidiar a Conferência Internacional sobre o tema, a
realizar-se em 2016, considera que “o uso militar do espaço está se
expandindo”; “há preocupação crescente com a colocação de armas no espaço”; e
“estações espaciais privadas, planos de mineração no espaço, novo turismo
espacial comercial e o transporte hipersônico em trajetos suborbitais complicam
ainda mais nosso complexo mundo. O estudo assinala ainda que as atividades
espaciais já não se limitam às pesquisas científicas. Elas movimentam hoje nada
menos de 360 bilhões de dólares, tendo aumentado em 11% desde 2014. Assim, o
interesses privado ganha precedência e poder sobre o interesse público. Daí a
premência de pensar em fórmulas mais equânimes e justas de governança global do
espaço.
* Vice-Presidente da
Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor
Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da
Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de
Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Esse artigo
expressa exclusivamente a opinião do autor.
Referências
2) Valladão, Haroldo,
Direito Interplanetário e Direito Inter Gentes Planetárias, in Paz, Direito,
Técnica, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1959, pp. 339-431.
3) Ver no site www.sbda.org.br.
4) Cologne Commentary on Space Law, Volume 1 – Outer Space Treaty, Hobe,
Schmidt, Schrogl (ed.) and Goh (assist. ed.), Germany: Carl Heymanns Verlag,
2009, p. 65.
5) Regras, João das
(Wisemann, Karl), Um novo direito internacional – Nuremberg, Rio de Janeiro: A
Nação, 1947. Ver www.vho.org/aaargh/fran/livres6/DASREGRAS.pdf.
8) Ver www.mcgill.ca/iasl.
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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