Qual Será o Destino do “Destino Manifesto”?
Olá leitor!
Segue abaixo outro interessante
artigo escrito pelo Sr. José
Monserrat Filho e postado pelo
companheiro André Mileski ontem (02/09) em seu Blog Panorama Espacial.
Duda Falcão
Qual Será o Destino do
“Destino Manifesto”?
José Monserrat Filho*
“Precisamos de nova
solidariedade universal.”
Papa Francisco, Encíclica Laudato Si', 20151
“Caubóis no espaço –
Chauvinismo corrompe nos EUA a retórica sobre voos espaciais tripulados”. Sob
esse título a revista Scientific American Brasil, edição de setembro, publica
artigo fortemente crítico de Linda Billings, doutora em Comunicação, que vive e
trabalha em Washington. Linda começa dizendo:
“Na história dos voos espaciais
tripulados dos EUA, uma retórica tipicamente norte-americana, baseado no
ideário expansionista, tem dominado o discurso público e oficial. Tome-se como
exemplo o Space Frontier Foundation, grupo sem fins lucrativos 'dedicada à
abertura das fronteiras do espaço à colonização o mais rapidamente possível...
criando uma vida livre e próspera para cada geração com o uso dos recursos
materiais e energéticos ilimitados do espaço'. Essa retórica revela uma
ideologia sobre os voos orbitais – a crença no direito da nação de expandir sem
limites, colonizar outras terras e explorar seus recursos.”
Para Linda, segundo essa
ideologia, “o país precisa continuar sendo o 'número um' na comunidade mundial,
desempenhando o papel de líder político, econômico, científico, tecnológico e
moral, disseminando o capitalismo democrático”. A doutora em comunicação
considera que “a metáfora da fronteira, com sua imagem associada ao pioneirismo
na demarcação de terras, cultivo e domesticação, se agiganta dentro desse
sistema de crenças”. E a seu ver, “a retórica da viagem espacial humana
fortalece a concepção do espaço sideral como lugar livre com recursos
ilimitados – uma fronteira espacial”. O lugar certo, portanto, para conquistar
e explorar à exaustão.
Linda conta que ouviu “uma
autoridade da Casa Branca defender a ideia de uma industrialização em larga
escala da Lua como 'uma visão de longo prazo fenomenalmente inspiradora' para o
programa espacial” (dos EUA, como se lê na versão inglesa do artigo).
Ela também menciona a Reunião
de Cúpula sobre o Pioneirismo Espacial, realizada em Washington em fevereiro
último, quando o Tea Party in Space defendeu a “aplicação dos princípios
fundamentais de responsabilidade fiscal, governo limitado e mercados livres
para a rápida e permanente expansão da civilização americana na fronteira
espacial”. Civilização americana, não se deixa por menos.
Daí que Linda confessa: “Em
meus muitos anos de crítica à ideologia conhecida desde o século 19 nos EUA
como Destino Manifesto, pessoas de outros países me disseram reiteradas vezes
como a retórica dessa crença os deixa desconcertados quando não ofendidos.”
O Google diz que “a doutrina do
destino manifesto (em inglês, Manifest Destiny) expressa a crença de que o povo
dos EUA é eleito por Deus para civilizar a América, e por isso o expansionismo
americano é apenas o cumprimento da vontade Divina”.
E lembra a expressão "Be
strong while having slaves" (“Seja forte tendo escravos”, em tradução
livre), explicando que essa “frase de propaganda política do século XIX” era
usada “para que pessoas de outros países vissem os EUA como o melhor país do
mundo”. Assim, “o Destino Manifesto virou termo histórico padrão, usado como
ideia estímulo à expansão territorial dos EUA pela América do Norte e pelo
Oceano Pacífico”. Inúmeras populações indígenas foram exterminadas. Em 1803, os
EUA duplicaram seu território ao comprar a Louisiana da França. Em 1846,
avançaram mais ainda, adquirindo Oregon do Reino Unido. E a guerra com o
México, de 1846 a 48, arrebatou metade do território mexicano e rendeu ao país
os atuais estados da Califórnia, Nevada, Texas, Novo México, Utah e metade do
Colorado – um quarto dos EUA hoje.
Do século 19 saltamos para o
século 21. O retórica dominante sobretudo entre os líderes do Partido
Republicano parece inspirada no Destino Manifesto, que há muito deixou de ter o
apoio da grande maioria dos americanos. Isso é particularmente claro na área
espacial, definida, não por acaso, de “fronteira”, ou seja, espaço –
território a ser conquistado. Resta saber como.
Será que por meio de projetos
de lei, como o aprovado pela House of Representatives (Câmara de
Representantes) do Congresso dos EUA em 21 de maio deste ano? Trata-se da Lei
dos Asteroides, oficialmente batizada como Lei sobre Exploração e Uso dos
Recursos Espaciais (Space Resource Exploration ad Utilization Act). Se for
também aprovada pelo Senado, ela poderá ser sancionada pela Casa Branca E aí
ficará lavrado, como seu texto reza na parte sobre “direitos de propriedade”,
que “quaisquer recursos de asteroide obtidos no espaço exterior são propriedade
da entidade que obteve tais recursos, a quem deve ser conferido o título de
propriedade sobre eles, de acordo com as normas da Lei Federal e as obrigações
internacionais em vigor”.2
Ou seja, empresas americanas,
graças a uma lei americana, poderão extrair recursos naturais da Lua, de
asteroides e de qualquer outro corpo celeste, inclusive de planetas como Marte.
O fato, se acontecer, será inédito na Era Espacial. Um país estará outorgando a
si mesmo o direito de estabelecer o regime de propriedade sobre recursos
naturais situados fora de sua jurisdição nacional, isto é, muito além de suas
fronteiras nacionais reconhecidas pela comunidade internacional.
O destino manifesto do século
19 não terá ido longe demais?
A resposta só pode estar
naquilo que os países membros das Nações Unidas decidiram a respeito e muitos
deles assinaram em baixo. Dois princípios são essenciais no caso.
1) “O espaço exterior,
inclusive a Lua e demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado por
todos os Estados sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em
conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a
todas as regiões dos corpos celestes.” É o que determina o Artigo I, § 2º, do
Tratado do Espaço de 1967, ainda hoje definido como o código maior das
atividades espaciais, ratificado por 103 países, entre eles os EUA, assinado
por 25 outros, e também considerado costume internacional porque os demais
países nunca expressaram protestos ou restrições a seu respeito.
2) A seguir, garantindo o livre
acesso de todos os países, o Artigo II estabelece que “o espaço exterior,
inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação
nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer
outro meio”.
É óbvio que os recursos
naturais da Lua, dos asteroides e de outros corpos celestes poderão um dia ser
extraídos (de forma sustentável) e trazidos para a Terra. Só que esse novo
destino manifesto terá que ser devidamente regulamentado por acordo entre todos
os países e beneficiar a todos sem exceção.
Essa exigência é decorrência
lógica do Artigo I, § 1°, do Tratado do Espaço, que afirma com total clareza:
“A exploração e uso do espaço exterior, incluindo a Lua e demais corpos
celestes, deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer
que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência
de toda a humanidade.”
É a “cláusula do bem comum”,
que encabeça o Tratado.
Não será o destino manifesto
apropriado para o século 21?
* Vice-Presidente da
Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor
Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da
Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de
Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Esse artigo
expressa exclusivamente a opinião do autor.
Referências
1) Ediora Paulinas, 2015, p. 14.
2) Texto original em inglês: “Any asteroid resources obtained in outer
space are the property of the entity that obtained such resources, which shall
be entitled to all property rights thereto, consistent with applicable
provisions of Federal law and existing international obligations.”
Fonte: Blog Panorama Espacial - http://panoramaespacial.blogspot.com.br/
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